segunda-feira, 21 de setembro de 2009

INFERNO- CANTO XXXIV


Aqui se trata do último canto do "Inferno", que é formado por 34 cantos. Para começar a leitura desde o comentário ao Canto I, o visitante é convidado a ir para a primeira postagem, em 12 de março de 2009. 

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Lúcifer- Francesco Scaramuzza
             O aspecto visual domina este último canto do Inferno, aspecto esse também muito presente nos que o precederam. Como se viu, a poesia de Dante é eminentemente visual, e é de se estranhar, por isso, que até hoje não exista um grande filme baseado nesse poema fascinante, ao contrário do que acontece na pintura, em que já inspirou artistas notáveis como Botticelli, Blake, Doré, Dali etc (na escultura, inspirou Rodin, na música, Franz Liszt, dentre outros).
Lúcifer- G.Doré

            O impacto visual, no caso, decorre principalmente da impressão causada pela figura imaginada de Lúcifer (ou Dite, como Virgílio o chama no v.20, nome dado na antiguidade a Plutão, rei do mundo subterrâneo) (1) que Dante enfim encontra na área mais recôndita do fundo do Inferno, no seu último círculo, chamada Judeca. Nessa área, cujo nome decorre naturalmente do nome do apóstolo que traiu Cristo, está reservada aos que traíram seus benfeitores, vale dizer aos que incorreram no mais grave dos pecados na opinião do poeta.

            Lúcifer, com seu tamanho imenso, bem maior do que a dos gigantes antes referidos (pois a altura de um gigante equivale apenas a uma parte de seu braço), está encravado no gelo, até o meio do peito: “O imperador do reino doloroso/ saía fora do gelo do meio do peito para cima;” (Lo ‘mperador del doloroso regno/ da mezzo ‘l petto uscia fuor de la ghiaccia;) (v.28-29). Ele, que representa o Mal, possui uma cabeça com três faces, alusão, segundo os comentaristas, à Santíssima Trindade, ou a Deus, que não é um só mas três-- o Pai, o Filho e o Espírito Santo (2), contrapondo-se assim ao Bem. Suas três bocas trituram, cada uma, um pecador: na da frente, está Judas Iscariotes (com as pernas de fora, a cabeça dentro da boca), que é o mais penalizado; nas laterais, Brutus e Cássio, que traíram Júlio César (eles pendem da boca, em situação inversa, com a cabeça de fora).

Con sei occhi piangëa, e per tre menti
gocciava ‘l pianto e sanguinosa bava.

Da ogne bocca dirompea co’ denti
un peccatore, a guisa di maciulla,
sì che tre ne facea così dolenti.

A quel dinanzi il mordere era nulla
verso ‘l graffiar, che tal volta la schiena
rimanea de la pelle tutta brulla. (v.53-60)

Com seis olhos chorava, e por três queixos/ corriam lágrimas e baba sangrenta.
Dentro de cada boca triturava com os dentes/ um pecador, como um moinho,/ de modo a atormentar três ao mesmo tempo.
No da frente as mordidas eram nada,/ comparadas ao dano provocado pelas garras/ que lhe arrancava a pele das costas.

            Como se vê, Judas sofria mais do que Cássio e Brutus, este filho adotivo de César.  A referência aos dois lembra o Império Romano, que para Dante era sinônimo de poder temporal, enquanto a Igreja representava o poder espiritual. Ambas as instituições ocupavam um papel fundamental na visão de mundo de Dante.  

            Na Judeca existem ainda inúmeros outros pecadores, encerrados dentro do gelo, nas posições mais diversas (em pé, sentados, deitados etc). Dante os compara a palhinhas vistas dentro do vidro, uma outra imagem também visualmente muito sugestiva.

Già era, e con paura il metto in metro,
là dove l’ombre tutte eran coperte,
e trasparien come festuca in vetro. (v.10-12)

Já estava—e com medo o ponho em verso---/ lá onde todas as sombras eram cobertas,/ e transpareciam como palhinhas no vidro.

            O monstro tem grandes asas como as de morcego. A cada face corresponde um par de asas, e o conjunto dá a impressão de um moinho de vento. O bater dessas asas é a origem de um vento muito frio que gela o rio Cocito e toda essa região do Inferno.

            Lúcifer está encravado no gelo, no centro da terra, porque foi aí que caíu quando despencou do céu. Nos tempos (míticos) do início do mundo, anteriores às sociedades humanas, ele era o mais belo dos anjos (Lúcifer significa o que transporta luz) mas por soberba rebelou-se contra Deus, e sofreu assim as consequências dessa atitude. Caiu de cabeça no hemisfério sul e toda a terra, por isso, fugiu dele (cf a personificação), acumulando--se no hemisfério norte. O hemisfério sul passou a ser constituído apenas de água, com a exceção da terra que ali permaneceu e formou o monte do Purgatório (3). 

            Os dois poetas, avançando em sua jornada, cruzam o centro da terra, apoiando-se inclusive nos pelos do corpanzil do próprio Lúcifer, que nele está encravado. Num certo momento Virgílio, carregando Dante, muda de posição, colocando a cabeça no lugar dos pés. A partir desse ponto, passam para o hemisfério sul e Dante se admira depois de ver Lúcifer, no alto, de pernas para cima...


G.Doré
            No final do canto, Dante explica que no local mais distante onde está Belzebu (outro nome de Lúcifer) há um regato que é reconhecido não pela vista mas pelo som (Mandelbaum et al. afirmam que esse regato é provavelmente o rio Letes, do esquecimento, que procede do Purgatório, carregando para o Inferno os pecados lavados dos que lá estão) (4). Os poetas seguem esse caminho escondido e saem afinal do Inferno por um buraco redondo formado pelo próprio regato, quando então revêem as estrelas (os últimos versos das três partes da “Commedia” fazem referência às estrelas):


G.Doré
Lo duca e io per quel cammino ascoso
intrammo a ritornar nel chiaro mondo;
e sanza cura aver d’ alcun riposo,

salimmo sù, el primo e io secondo,
tanto ch’ i’ vidi de le cose belle
che porta ‘l ciel, per um pertugio tondo.

E quindi uscimmo a riveder le stelle. (v.133-139)

Meu guia e eu nesse caminho escondido/ entramos para retornar ao claro mundo;/ e sem cuidar de ter algum repouso
subimos, ele adiante e eu atrás,/ até que vi as coisas belas/ que o céu contém por um buraco redondo.
E dali saímos para rever as estrelas.


NOTAS
 
(1) Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 981.
(2) Dante Alighieri- “Obras Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- v.4, p. 441
(3) Id., ib, p. 467, 477-478.
(4) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books, 1982- p. 394

Ilustração de antigo manuscrito 1474-1482

G.Stradano


Alessandro Vellutelo, 1564



Canto XXXIV- Amos Nattini

Canto XXXIV- Aparição de Dite- S.Dalí, 1951









3 comentários:

  1. Maravilhoso poema,não é mesmo?! Terminei o Inferno. Mas uma leitura apenas não é suficiente. Reler em breve. Vamos ao Purgatório.

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  2. Maravilhoso trabalho, Domingos!
    Oportunidade única, rever esse brilhante resumo dessa grandiosa obra ! Parabéns

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  3. Email de: Mônica Mariano
    Parabéns professor pelo seu trabalho com Dante. Estou encantada com essa obra genial e surpresa com seu trabalho primoroso e que muito tem me auxiliado a desvendar esse mar obscuro e tão sublime. Seus livros precisam e merecem ser divulgados. Muito grata!!!


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