Amos Nattini- canto XXI |
Virgílio e Dante avistam agora, do alto do rochedo, a quinta vala do Malebolge, que é “estranhamente escura” (mirabilmente oscura- v.6), diferente das outras, que todavia também são escuras (pois no Inferno não há estrelas). Esse é o lugar onde expiam sua culpa os traficantes de influência, que usaram o cargo público em proveito próprio, (recebendo suborno). Eles incorreram no pecado da “barataria”, equivalente civil, segundo Mandelbaum et al., à simonia do Canto XIX (1).
Os
condenados estão imersos numa represa fervente de piche, e quando se erguem
dali recebem arpoadas dos demônios presentes em suas margens (o piche é que deve dar à escuridão dessa vala um caráter peculiar). Assim como a prática da barataria não é feita às claras (ela exige que a administração pública não seja transparente, como se diz hoje), tais pecadores devem permanecer ocultos, i.e. submersos no piche.
Dante-autor faz aqui uma comparação curiosa (a partir do v.7): o lago de piche e seus ocupantes são associados àquele usado por um arsenal de Veneza, onde trabalhadores executam, no inverno, diferentes serviços de reparação de navios, realizados simultaneamente.
Dante, distraído, olhando para
baixo, não percebe a aproximação, por trás, de um diabo negro. Virgílio o
alerta e o puxa para si. Mas o diabo na realidade só está vindo no mesmo
rochedo, ou na mesma “ponte” em que eles estão, para chegar ao seu destino
final, que é o lago fervente de piche. Ele vem correndo pelo rochedo e traz nos
ombros um homem, segurando-o pelos tornozelos. Mas Dante diz a respeito desse
diabo:
Ahi
quant'elli era ne l'aspetto fero!
e quanto
mi parea ne l'atto acerbo,
com l'ali
aperte e sovra i piè leggero! (v.31-33)
Ah quanto o aspecto dele era feroz!/ e
quanto me parecia ameaçador/ com as asas abertas e os pés ligeiros!
Em seguida, o diabo dirige-se para
os seus colegas:
/.../ O
Malebranche,
ecco un
de li anzïan di Santa Zita!
Mettetel
sotto, ch'i' torno per anche
a quella
terra, che n'è ben fornita:
ogn' uom
v'è barattier, fuor che Bonturo;
del no,
per li denar, vi si fa ita.” (v. 37-42)
O Malebranche (= “más
garras”, nome coletivo dos demônios do quinto “bolgia”),/ eis
um dos anciãos de santa Zita!/ Atirem-no abaixo, que eu volto para buscar mais
àquela terra, que deles é bem fornida:/ lá
todos são venais, exceto Bonturo;/ por dinheiro, o não se
transforma em sim.
Segundo os comentaristas, o “ancião de Santa Zita” é na realidade um
dos magistrados de Lucca, cidade da Toscana cuja padroeira é Santa Zita; a
menção a Bonturo, por sua vez, é irônica, pois trata-se de um político da época
conhecido por sua venalidade.
Assim, o diabo retorna à venal
Lucca, e sua pressa sugere a Dante-autor outra comparação: “jamais mastim solto/ foi com tanta pressa
atrás do ladrão” (/.../ e mai non fu mastino sciolto/ con
tanta fretta a seguitar lo furo.- v.44-45).
Também o recém-chegado pecador atirado no lago de piche fervente e mantido lá
(quando ele se ergueu acima do piche recebeu cem pontaços) inspira a comparação
dessa situação com a do cozinheiro:
Non
altrimenti i cuoci a' lor vassalli
fanno
attuffare in mezzo la caldaia
la carne
con li uncin, perché non galli. (v.56-57).
Não de outra forma procede o cozinheiro/
ao mandar seus ajudantes espetar, para o fundo do caldeirão,/ a carne, a fim de
que não boie.
Virgílio então avança sozinho pela
ponte e inicia a descida, depois de mandar Dante refugiar-se atrás de um
rochedo. Os demônios aproximam-se de Virgílio ameaçadoramente:
Con quel
furore e con quella tempesta
ch'
escono i cani a dosso al poverello
che di
sùbito chiede ove s'arresta,
usciron
quei di sotto al ponticello,
e volser
contra lui tutt'i runcigli;
ma el
gridò: “Nessun di voi sia fello! (v. 67-72)
Com o mesmo furor e o alarido/ de cães
quando perseguem o mendigo/ que então para, exausto, como para pedir esmola,
assim eles saíram de sob a ponte/ e
voltaram-se contra meu guia com seus forcados,/ mas este gritou: “Que nenhum se
atreva!”
Virgílio chama um dos demônios para
ouvi-lo e decidir se devem atacá-lo ou não. Os diabos mandam Malacoda (= ”má
cauda”), a quem Virgílio diz que está ali pela vontade divina: “Vamos seguir, pois no céu é desejado/ que eu
mostre a alguém este caminho silvestre” (Lascian'
andar, ché nel cielo è voluto/ ch'i' mostri altrui questo cammin silvestro.- v.
83-84). Ante isso, Malacoda deixa cair o seu
forcado e diz aos outros para não os ferirem. Dante sai então de seu abrigo e
se aproxima, ainda temeroso, de Virgílio. O poeta compara sua situação à dos soldados
de Caprona que, após a rendição, viu tremerem ao passar pelos inimigos (esse
castelo no vale do Arno foi tomado em 1289 pelos guelfos de Florença -- um dos
quais Dante, a julgar por essa passagem-- e de outras cidades) (2).
O zombeteiro
Scarmiglione (= “desgrenhado”) (3) ameaça espetar Dante no traseiro, mas
Malacoda manda-o aquietar-se. Depois diz a Virgílio que para prosseguir viagem
ele não pode seguir por aquela ponte pois ela foi destruída há mil duzentos e
sessenta e seis anos (devido ao terremoto que ocorreu por ocasião da morte de
Cristo; essa quantidade de anos, acrescida da idade de Cristo pelo critério dos
antigos, que inclui o período de sua gestação (4), resulta no ano em que
transcorre a ação do poema- 1300). Afirma também que há um outro caminho e que
ele poderá confiar no grupo de dez demônios que os acompanharão, grupo esse que
está sendo enviado para assegurar que os condenados não se erguerão do piche. E
convoca Alichino, Calcabrina, Cagnazzo, Barbariccia (= “barba eriçada”) (5),
que guiará o grupo, Libicocco, Draghignazzo, o dentudo (sannuto) Ciriatto,
Graffiacane, Farfarello e o insano (pazzo)
Rubicante. Mais importante, esteticamente, que o significado desses nomes imaginados
por Dante é o “carnaval de sons” (6) que eles produzem, contribuindo assim para
a (bela) sonoridade do poema.
Dante
prefere ir sem essa escolta. Acha que Virgílio não deve confiar neles, a julgar
pelos seus dentes, que rangem, e semblantes ameaçadores. Mas o mestre diz ao
discípulo que tal aspecto não é por causa deles e sim pelos condenados.
Todos
se põem em marcha então, voltando-se para a esquerda. Antes, os diabos haviam apertado
a língua com os dentes para Barbariccia, como um sinal, e este “fizera do cu trombeta” (ed elli avea del cul fatto trombetta- v. 139). O sinal que os diabos fizeram seria de obediência às
ordens do chefe (7), o qual em seguida age da forma grosseira indicada. Coerentemente,
Dante usa aqui uma linguagem correspondente ao ambiente em que estão os
protagonistas. No Paraíso, com certeza, a linguagem adotada será outra...
NOTAS
(1)
“The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen
Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 375
(2) Id., ib, p. 375
(3) Dante Alighieri- “A Divina Comédia”. Introdução,
tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2005-p.199
(4)
“The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 375
(5) Dante Alighieri- “A Divina Comédia”. Introdução,
tradução e notas de Vasco Graça Moura, op cit, p. 201
(6) “The Divine Comedy of Dante Alighieri-
Inferno”, op cit, p.376
(7) Dante Alighieri- “A Divina Comédia”. Tradução, prefácio e notas
prévias de Hernâni Donato. São Paulo:
Abril Cultural, 1981- p. 85
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