Maomé- G.Doré |
Inicialmente Dante evoca uma série
de eventos ocorridos na Apúlia (i.e. na Itália meridional) que produziram muito
derramamento de sangue. Ainda que se reunissem todas as vítimas das lutas aí
travadas, com seus corpos mutilados, isso não igualaria ao que o poeta diz ter
visto na nona “bolgia”, a dos “semeadores de escândalos e de cismas”
(seminator di scandalo e di scisma- v.35). As lutas seguintes são
citadas rapidamente: a dos troianos (ou seja, dos romanos, descendentes de Eneas)
contra outros povos; a “longa guerra/ que
de anéis fez tantos despojos” (la lunga guerra/ che de l' anella
fé sì alte spoglie- v.10-11), ou seja a segunda guerra púnica, em que Aníbal levou para
Cartago uma pilha de anéis de ouro retirados dos romanos abatidos, conforme o
historiador Tito Lívio (note-se aqui a maestria formal de Dante-autor que usa
um pormenor – o anel, seu acúmulo – para indicar indiretamente toda a magnitude
da carnificina); a luta travada entre Robert Guiscard e os gregos e sarracenos;
a batalha de Ceprano, em que Manfredo foi derrotado pelas forças de Charles
d'Anjou, por ter sido traído pelos barões de Apúlia, e logo depois a batalha de Tagliacozzo, em que Charles d’Anjou,
seguindo o conselho de seu general Erard de Valery, “o velho Alardo” (il vecchio Alardo- v. 18), derrotou Conradin,
sobrinho de Manfredo...(1)
Quanto às vítimas dessas lutas, “ainda que seus membros furados ou decepados/ mostrassem, isso não
igualaria/ ao modo da nona vala suja”:
e qual forato suo membro e qual mozzo
mostrasse, d' aequar sarebbe nulla
il modo de la nona bolgia sozzo. (v.19-21)
Dante vê aproximar-se alguém
rotto dal
mento infin dove si trulla.
Tra le gambe pendevan le minugia;
la corata pareva e 'l tristo sacco
che merda fa di quel che si trangugia. (v.24-27)
rasgado desde o queixo até onde se peida.
Por entre as pernas pendiam os intestinos;/
apareciam as vísceras e o triste saco,/ que merda faz daquilo que se engole.
Trata-se de Maomé, que dirige a palavra
a ele. Afirma quem é, e diz que adiante vai Ali, fendido do queixo ao topete. Destaque-se
a complementaridade desses dois ferimentos, representativos dos cismas
religiosos. Ali, assim como seu sogro Maomé, também criou uma cisão. Enquanto
Maomé dividiu o Cristianismo, Ali fez o mesmo, só que no âmbito do próprio
Islamismo, pois sua reivindicação do califado não foi aceita por muitos, do que
resultou a cisão entre sunitas e xiitas, conforme Mandelbaum et al. (2) ).
Maomé diz ainda que atrás dos condenados vem um diabo com
uma espada que os mutila novamente, tão logo fecham suas feridas, após eles
completarem “a volta da dolorosa estrada”.
Ao partir, Maomé pede a Dante, quando retornar ao nosso mundo (“tu que talvez o sol verás em breve”: tu che
forse vedra ' il sole in breve- v.56), recomendar a Fra Dolcino prover-se de víveres “para que a neve, o cercando,/ não traga
vitória ao novarês” (segundo os
comentaristas, Dolcino liderava uma seita
herética, banida pelo papa, que defendia o comunismo de bens e de mulheres. Ele
e seus seguidores refugiaram-se nas colinas perto de Novara, onde resistiram às
forças papais. Sitiados, foram obrigados pela fome a render-se. Morreu em 1307,
juntamente com sua companheira, ambos queimados vivos na fogueira) (3). Seu
destino será essa mesma região do Inferno, reservada aos que criaram cisões, no
caso religiosas. A recomendação a Fra Dolcino refere-se a fatos já ocorridos.
Dante usa aqui mais uma vez o artifício de tratar o passado como se ainda
estivesse por se realizar.
Antes de prosseguir, vale a pena destacar o modo como
Dante se expressa ao referir-se à despedida de Maomé: as palavras contendo aquela
recomendação (que abrangem os versos 55 a 60) são ditas, segundo o poema, enquanto
ele erguia um pé e o pousava no solo, o que não corresponde, como é óbvio, ao
tempo efetivamente transcorrido para dizê-las. Isso demonstra um aspecto interessante
da técnica poética de Dante, ao jogar desse modo com o elemento tempo:
Poi che l’un
piè girsene sospese,
Mäometto
mi disse esta parola;
indi a
partirsi in terra lo distese. (v.61-63)
Erguendo um pé para partir,/ Maomé me disse
estas palavras;/ pousou-o em terra, e se foi.
Outro condenado agora se destaca da
turba que ali está:
Un altro,
che forata avea la gola
e tronco 'l naso infin sotto le ciglia,
e non avea mai ch' una orecchia sola, (v. 64-66)
Um outro, que furada tinha a garganta,/ o
nariz cortado até a sobrancelha,/ e não mais que uma só orelha,
É Pier da Medicina, que semeou a
discórdia entre as famílias Polenta e Malatesta (4). Mais uma vez um morto
exerce a sua faculdade de antever os fatos terrenos. Pier previne Dante quanto
aos “dois melhores homens” da cidade
de Fano, “Messer Guido e Angiolello”
(Guido del Cassero e Angiolello di Carignano): eles serão lançados do barco e
afogados, após serem convidados a parlamentar com o tirano “de um olho só” (Malatestino), senhor de
Rimini, cuja vista um companheiro seu detesta. Dante quer saber quem é esse
companheiro. Pier então põe as mãos sobre a mandíbula desse seu acompanhante e
abrindo-lhe a boca, grita: “Este é ele,
mas não fala” (Questi è desso, e non favella. v.96) pois sua língua foi cortada. Trata-se de
Curio, que aconselhou César a atravessar o Rubicão e assim avançar sobre a sua
própria Roma para combater as forças de Pompeu, iniciando uma guerra civil. A
vista de Rimini lhe é amarga, pois essa cidade é próxima do local onde o rio
Rubicão (que fazia então fronteira entre a Gália e a República Romana) se lança
no Adriático (5).
Gustave Doré |
Outro pecador que se aproxima tem as mãos decepadas.
Ergue para o alto os cotos dos braços e, dirigindo-se a Dante,
gridò: “Ricordera'ti anche del Mosca,
che disse, lasso!, 'Capo ha cosa fatta,'
che fu mal seme per la gente tosca.”
E io li aggiunsi: “E morte di tua schiatta”;
per ch 'elli, accumulando duol com duolo,
sen gio come persona trista e matta. (v.106-111)
gritou: “Lembra-te de Mosca/ que disse-- ai de mim-- 'Uma coisa
feita, deve ter seu fim'/ que foi a semente do mal para a gente toscana”.
E eu acrescentei: “E a morte da tua raça”;/ então ele, acumulando
dor sobre dor,/ partiu, como pessoa triste e louca
Com sua opinião imprudente o guibelino
Mosca de' Lamberti, em 1215, instigou um assassínio, que teria um trágico
desdobramento: renovou o conflito entre famílias guelfas e gibelinas que
perduraria por muitos anos (6).
Bertran de Born-Gustave Doré |
Por sim surge a figura mais impressiva de todas que aparecem
neste Canto. Diz o poeta:
Io vidi certo, e ancor par ch' io 'l veggia,
un busto sanza capo andar sì come
andavan li altri de la trista greggia;
e 'l capo tronco tenea per le chiome,
pesol con mano a guisa di lanterna: (v. 118-122).
Vi certamente, e ainda parece que o vejo,/ um
corpo sem a cabeça andar, como/ andavam os outros da triste turba;
e levava pelos cabelos a cabeça cortada/ que
pendia da mão à guisa de lanterna
Bem debaixo da ponte onde estão os
poetas, o tronco ergue a cabeça para aproximá-la de Dante, que assim poderá
ouvir melhor as palavras que profere (a imagem é assim um pouco diferente do
modo como Gustave Doré ilustrou essa cena). Suas palavras começam assim:
/.../ Or
vedi la pena molesta,
tu che, spirando, vai veggendo i morti:
vedi s'alcuna è grande come questa. (v. 130-132)
Agora vê a pena atroz/ tu que, ainda
respirando, visitas os mortos:/ vê se alguma é tão grande quanto esta.
Na sequência ele se identifica como
Bertran de Born, um trovador provençal que semeou a discórdia entre o rei da
Inglaterra e seu jovem filho. Ele é comparado a Aquitofel, da Bíblia (II Samuel
17:1-23), que instigou Absalão a revoltar-se contra o rei Davi, seu pai (7). Conforme os últimos versos do Canto, Bertran,
pela “lei do contrapasso”, sofre a punição correspondente à sua falta. Assim
como estimulou a separação entre o rei e seu filho, também sua cabeça agora
está separada do corpo. Podemos aplicar esse mesmo raciocínio aos pecadores
antes mencionados: assim como eles semearam discórdia, quer dizer, cortaram em
partes (formando grupos ou seitas) o todo relativo à união das pessoas preexistente,
eles são agora, para sempre, retaliados pelos demônios.
NOTAS
(1) “The
Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen
Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books, 1982- p.384
(2)
Id., ib., p. 384-385
(3)
Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários)
in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New
York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p.958
(4) “The
Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p.385
(5) Musa,
Mark-- "Inferno", op cit, p. 959
(6) “The
Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 385
(7)
Id., ib., p. 385. A citação bíblica correta é II
Samuel 17:1-23 e não como aí consta (II Samuel 15: 17-23)
Bertran de Born- Salvador Dalí, 1951 |
Canto XXVIII- Giovanni Stradano |
Caro Domingos. Não sei se ainda acompanhas esta seção de comentários. Caso acompanhes, agradeço-te imensamente pelas explicações que proferiste sobre esta grandiosa obra. Desejo-te bênçãos. Grande abraço.
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