Gustave Doré- Ciampolo |
Relacionando-se ao último
verso do canto anterior, o Canto XXII inicia por registrar a admiração de Dante
ao ver cavaleiros e infantes moverem-se pelo som de tão estranha trombeta. Os
dois poetas seguem com os dez demônios, cujo chefe era Barbariccia: “Ah, feroz companhia! Mas na igreja/ com os
santos, e na taverna com os glutões” (Ahi fiera
compagnia! ma ne la chiesa/ coi santi, e in taverna coi ghiottoni.- v.14-15).
A atenção de Dante, porém, estava
voltada só para a lagoa de piche fervente. E o poeta faz aqui duas comparações
curiosas, em relação aos condenados nela imersos. A primeira os associa aos
golfinhos, que mostram o dorso na superfície da água, assim como fazem os
condenados, por um momento, para aliviar sua pena. A segunda comparação é com as
rãs:
E come a
l'orlo de l'acqua d'un fosso
stanno i
ranocchi pur col muso fuori,
sì che
celano i piedi e l'altro grosso,
sì stavan
d'ogne parte i peccatori;
ma come
s'appressava Barbariccia,
così si
ritraén sotto i bollori. (v.25-30)
E como, na margem de um fosso,/ ficam as
rãs, só com os focinhos de fora da água/ e escondem seus pés e a carne gorda,
assim estavam em toda parte os pecadores;/
mas quando se aproximava Barbariccia/ rapidamente mergulhavam no piche
fervente.
Dante viu um que se atrasou em
mergulhar e foi fisgado pela empastada cabelereira por Graffiacane, que ao ser
suspenso parecia uma lontra. Os outros demônios então dizem:
“O
Rubicante, fa che tu li metti
li
unghioni a dosso, sì che tu lo scuoi!”
gridavan
tutti insieme i maladetti. (v.40-42)
“Ó Rubicante, crava-lhe as garras (do
forcado)/ nas costas, para esfolá-lo!”/ gritavam todos juntos os malditos.
Esse infeliz depois, instado a falar
por Virgílio, a pedido de Dante, afirma que é de Navarra, tendo servido na
corte do rei Teobaldo, onde praticou barataria (1) e por isso é punido ali, o
que é ilustrado por estas metáforas: “Entre
gatas más caíra o rato” (Tra male gatte era
venuto 'l sorco; - v. 58). Antigos
comentaristas lhe dão o nome de Ciampolo ou Giampolo e referem-se ao uso que
fez em proveito próprio das funções que exercia naquela corte (2).
Após Ciriatto cravar nele uma de
suas presas, Barbariccia o prende com os braços, e pergunta a Virgílio se não
quer lhe fazer mais perguntas antes que os outros demônios o dilacerem (o Canto
consiste, principalmente, no diálogo de Ciampolo com Virgílio, e também com Cagnazzo).
O autor da “Eneida” quer saber se lá onde ele estava, no piche, havia algum
latino (i.e. italiano). E o navarrês lhe diz que sim, que lá estavam Frei
Gomita de Gallura e também D. Michele Zanche, praticantes do mesmo pecado da
barataria (ambos eram da Sardenha; o primeiro acabou enforcado por ordem do
governador de Pisa, a quem a Sardenha estava então subordinada, por ter
aceitado subornos para deixar fugir alguns prisioneiros; quanto ao segundo, acredita-se
que ele tenha sido governante de Logodoro, uma das quatro áreas em que a Sardenha
estava dividida no século XIII) (3). Essa informação é dada por Ciampolo enquanto
sentia a ferida que lhe fizera o arpão de Libicocco... Barbariccia impede
Draghignazzo de também lançar o seu arpão. E ainda o salva de Farfarello, a quem
chama de “malvado pássaro” (malvagio uccello- v. 96).
Na sequência, o navarrês propõe dali
mesmo chamar por assovio, conforme seu código, toscanos ou lombardos (“sendo um só farei vir sete”: per un ch' io son, ne farò venir sette- v.103), caso mantenham os Malebranche afastados. Cagnazzo
não acredita nele, e alerta os outros para sua intenção real, que é escapar dos
demônios e mergulhar de volta no piche, evitando assim ser dilacerado. Alichino
diz que isso não vai adiantar pois ele irá no seu encalço, não a galope mas
batendo asas.
Então os demônios se afastam (buscam
a outra margem do fosso), o primeiro sendo justamente Cagnazzo, o que lançara
dúvidas quanto à proposta de Ciampolo. Dante então fala com o leitor:
O tu che
leggi, udirai nuovo ludo:
ciascun
da l'altra costa li occhi volse,
quel
prima, ch' a ciò fare era più crudo. (v.118-120)
O tu que
lês, ouvi agora sobre esse novo jogo:/ cada um volta os olhos para a outra
margem/ primeiro aquele que tinha sido antes o mais hesitante.
O navarrês aproveita a oportunidade
e escapa deles, mergulhando no lago de piche. Alichino não consegue apanhá-lo.
Suas “asas não foram mais rápidas que o
medo” (ché l' ali al sospetto/ non potero
avanzar- v.127-8). Enquanto o pecador mergulha para o
fundo, o outro voa para o alto. Dante estabelece aqui mais uma comparação:
non
altrimenti l' anitra di botto,
quando 'l
falcon s'appressa, giù s'attuffa,
ed ei
ritorna sù crucciato e rotto. (v.130-132)
não de outro modo o pato mergulha/
precipitadamente quando o falcão se aproxima/ e este-- exausto, contrariado –
retorna para cima.
Ciampolo consegue assim lograr os
demônios. Calcabrina seguiu Alichino, irado com este, pois induzira todos ao
erro (Alichino dissera ao navarrês que não adiantaria tentar escapar; ele com
suas asas o venceria na corrida). Vendo que o navarrês conseguiu safar-se,
Calcabrina investe contra Alichino, que por sua vez revida, cravando-lhe as
garras. Ambos se atracam e acabam por cair no piche fervente. Não conseguem
dali sair pois suas asas ficam muito pesadas e viscosas. Barbariccia manda
então quatro de seus comandados em socorro deles, que se posicionam nas margens
e, para ajudá-los a sair dali, estendem-lhes os arpões. É assim,
atarefados, que os poetas os deixam.
Gustave Doré- Alichino e Calcabrina |
Como se vê, esse é um Canto muito
movimentado, em que os protagonistas são os demônios (assim como no Canto
anterior). Chama a atenção nele as comparações e metáforas que envolvem animais
(golfinhos, rãs, lontra, gatas, rato, falcão, pato). Também há uma referência
aos pássaros, no modo como Barbariccia chama Farfarello, que aliás
perdem a conotação positiva que tinham no Canto V. Isso certamente não ocorre
por acaso. O ser humano, para Dante, está no topo da hierarquia dos seres
vivos. Mas ao pecar ele se degrada, e passa a ocupar posição equivalente à dos
animais nessa hierarquia. Saliente-se
que as referências a animais continuam no começo do próximo Canto (rã, rato, falcão,
cão, lebre)...
Outra observação pertinente diz
respeito à falta de lógica própria da linguagem poética, que fica bem evidente
neste Canto. Aqui Ciampolo tem carne, corpo, sente a arpoada de Libicocco. Mas
já vimos em outro canto os condenados serem chamados de “sombras” e se
admirarem que Dante tivesse peso (pois ainda está vivo, é a explicação...).
NOTAS
(1)
Barataria, segundo o dicionário Aurélio, é definido como ”Ação de dar tendo uma
retribuição em vista”.
(2) Mark Musa- “Inferno” (tradução para o inglês, notas e
comentários) in "World Masterpieces". Third
Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 933
(3) Id., ib., p. 934
Sensacional, Domingos! Agradecido.
ResponderExcluirMuito obrigada por esse conteúdo!!!
ResponderExcluirMuito bom. Esclarecedor sempre.
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