segunda-feira, 21 de setembro de 2009

INFERNO- CANTO XXII



Gustave Doré- Ciampolo

           Relacionando-se ao último verso do canto anterior, o Canto XXII inicia por registrar a admiração de Dante ao ver cavaleiros e infantes moverem-se pelo som de tão estranha trombeta. Os dois poetas seguem com os dez demônios, cujo chefe era Barbariccia: “Ah, feroz companhia! Mas na igreja/ com os santos, e na taverna com os glutões” (Ahi fiera compagnia! ma ne la chiesa/ coi santi, e in taverna coi ghiottoni.- v.14-15).

            A atenção de Dante, porém, estava voltada só para a lagoa de piche fervente. E o poeta faz aqui duas comparações curiosas, em relação aos condenados nela imersos. A primeira os associa aos golfinhos, que mostram o dorso na superfície da água, assim como fazem os condenados, por um momento, para aliviar sua pena. A segunda comparação é com as rãs:

E come a l'orlo de l'acqua d'un fosso
stanno i ranocchi pur col muso fuori,
sì che celano i piedi e l'altro grosso,

sì stavan d'ogne parte i peccatori;
ma come s'appressava Barbariccia,
così si ritraén sotto i bollori. (v.25-30)

E como, na margem de um fosso,/ ficam as rãs, só com os focinhos de fora da água/ e escondem seus pés e a carne gorda,
assim estavam em toda parte os pecadores;/ mas quando se aproximava Barbariccia/ rapidamente mergulhavam no piche fervente.

            Dante viu um que se atrasou em mergulhar e foi fisgado pela empastada cabelereira por Graffiacane, que ao ser suspenso parecia uma lontra. Os outros demônios então dizem:

“O Rubicante, fa che tu li metti
li unghioni a dosso, sì che tu lo scuoi!”
gridavan tutti insieme i maladetti. (v.40-42)

“Ó Rubicante, crava-lhe as garras (do forcado)/ nas costas, para esfolá-lo!”/ gritavam todos juntos os malditos.

            Esse infeliz depois, instado a falar por Virgílio, a pedido de Dante, afirma que é de Navarra, tendo servido na corte do rei Teobaldo, onde praticou barataria (1) e por isso é punido ali, o que é ilustrado por estas metáforas: “Entre gatas más caíra o rato” (Tra male gatte era venuto 'l sorco; - v. 58). Antigos comentaristas lhe dão o nome de Ciampolo ou Giampolo e referem-se ao uso que fez em proveito próprio das funções que exercia naquela corte (2).  

            Após Ciriatto cravar nele uma de suas presas, Barbariccia o prende com os braços, e pergunta a Virgílio se não quer lhe fazer mais perguntas antes que os outros demônios o dilacerem (o Canto consiste, principalmente, no diálogo de Ciampolo com Virgílio, e também com Cagnazzo). O autor da “Eneida” quer saber se lá onde ele estava, no piche, havia algum latino (i.e. italiano). E o navarrês lhe diz que sim, que lá estavam Frei Gomita de Gallura e também D. Michele Zanche, praticantes do mesmo pecado da barataria (ambos eram da Sardenha; o primeiro acabou enforcado por ordem do governador de Pisa, a quem a Sardenha estava então subordinada, por ter aceitado subornos para deixar fugir alguns prisioneiros; quanto ao segundo, acredita-se que ele tenha sido governante de Logodoro, uma das quatro áreas em que a Sardenha estava dividida no século XIII) (3).  Essa informação é dada por Ciampolo enquanto sentia a ferida que lhe fizera o arpão de Libicocco... Barbariccia impede Draghignazzo de também lançar o seu arpão. E ainda o salva de Farfarello, a quem chama de “malvado pássaro” (malvagio uccello- v. 96).

            Na sequência, o navarrês propõe dali mesmo chamar por assovio, conforme seu código, toscanos ou lombardos (“sendo um só farei vir sete”: per un ch' io son, ne farò venir sette- v.103), caso mantenham os Malebranche afastados. Cagnazzo não acredita nele, e alerta os outros para sua intenção real, que é escapar dos demônios e mergulhar de volta no piche, evitando assim ser dilacerado. Alichino diz que isso não vai adiantar pois ele irá no seu encalço, não a galope mas batendo asas.

            Então os demônios se afastam (buscam a outra margem do fosso), o primeiro sendo justamente Cagnazzo, o que lançara dúvidas quanto à proposta de Ciampolo. Dante então fala com o leitor:

O tu che leggi, udirai nuovo ludo:
ciascun da l'altra costa li occhi volse,
quel prima, ch' a ciò fare era più crudo. (v.118-120)

O tu que lês, ouvi agora sobre esse novo jogo:/ cada um volta os olhos para a outra margem/ primeiro aquele que tinha sido antes o mais hesitante.

            O navarrês aproveita a oportunidade e escapa deles, mergulhando no lago de piche. Alichino não consegue apanhá-lo. Suas “asas não foram mais rápidas que o medo” (ché l' ali al sospetto/ non potero avanzar- v.127-8). Enquanto o pecador mergulha para o fundo, o outro voa para o alto. Dante estabelece aqui mais uma comparação:

non altrimenti l' anitra di botto,
quando 'l falcon s'appressa, giù s'attuffa,
ed ei ritorna sù crucciato e rotto. (v.130-132)

não de outro modo o pato mergulha/ precipitadamente quando o falcão se aproxima/ e este-- exausto, contrariado – retorna para cima.

            Ciampolo consegue assim lograr os demônios. Calcabrina seguiu Alichino, irado com este, pois induzira todos ao erro (Alichino dissera ao navarrês que não adiantaria tentar escapar; ele com suas asas o venceria na corrida). Vendo que o navarrês conseguiu safar-se, Calcabrina investe contra Alichino, que por sua vez revida, cravando-lhe as garras. Ambos se atracam e acabam por cair no piche fervente. Não conseguem dali sair pois suas asas ficam muito pesadas e viscosas. Barbariccia manda então quatro de seus comandados em socorro deles, que se posicionam nas margens e, para ajudá-los a sair dali, estendem-lhes os arpões. É assim, atarefados, que os poetas os deixam.

Gustave Doré- Alichino e Calcabrina 

            Como se vê, esse é um Canto muito movimentado, em que os protagonistas são os demônios (assim como no Canto anterior). Chama a atenção nele as comparações e metáforas que envolvem animais (golfinhos, rãs, lontra, gatas, rato, falcão, pato). Também há uma referência aos pássaros, no modo como Barbariccia chama Farfarello, que aliás perdem a conotação positiva que tinham no Canto V. Isso certamente não ocorre por acaso. O ser humano, para Dante, está no topo da hierarquia dos seres vivos. Mas ao pecar ele se degrada, e passa a ocupar posição equivalente à dos animais nessa hierarquia. Saliente-se que as referências a animais continuam no começo do próximo Canto (rã, rato, falcão, cão, lebre)... 

            Outra observação pertinente diz respeito à falta de lógica própria da linguagem poética, que fica bem evidente neste Canto. Aqui Ciampolo tem carne, corpo, sente a arpoada de Libicocco. Mas já vimos em outro canto os condenados serem chamados de “sombras” e se admirarem que Dante tivesse peso (pois ainda está vivo, é a explicação...).

  
 NOTAS

(1) Barataria, segundo o dicionário Aurélio, é definido como ”Ação de dar tendo uma retribuição em vista”.
(2) Mark Musa- “Inferno” (tradução para o inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 933
(3) Id., ib., p. 934


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