segunda-feira, 21 de setembro de 2009

INFERNO- CANTO XXIII

Canto XXIII (Caifás)- Giovanni  Stradano

            Os dois poetas seguem agora sós, sem a escolta dos demônios. A situação que há pouco testemunharam -- o episódio do final do canto anterior, em que Calcabrina e Alichino, ao perseguirem o Navarrês, acabam levando a pior -- faz Dante associá-la à fábula atribuída a Esopo, da rã e do rato. Aquela procurava afogar este, preso às suas costas na travessia de um rio. Mas ambos tornam-se vítimas do falcão no final (1). Também os dois diabos em disputa acabam caindo no lago de piche fervente...

            Na sequência Dante se aflige pensando na reação dos demônios, irados por terem sido enganados pelo Navarrês. Imagina-os vindo atrás deles. Compara-os ao cão que persegue a lebre:

Se l'ira sovra 'l mal voler s'aggueffa,
ei ne verranno dietro più crudeli
che 'l cane a quella lievre ch'elli acceffa”. (v.16-18)

Se a ira se adiciona à sua malícia/ eles virão atrás de nós, mais ferozes/ que o cão cujos dentes apanham a lebre.

            O medo dos Malebranche faz seus pelos eriçarem (Già mi sentia tutti arricciar li peli/ de la paura/.../- v.19-20). Diz a Virgílio que eles devem procurar se esconder dos demônios. Virgílio lhe responde afirmando que se fosse um espelho refletiria antes a imagem interior de Dante do que a externa, demonstrando conhecer bem as reações do discípulo. Para escapar dos demônios, decide descer para a outra “bolgia” (bolsa, vala), a sexta, pela encosta direita. Ao ver os diabos se aproximando, com as asas abertas,

Lo duca mio di sùbito mi prese,
come la madre ch' al romore è desta
e vede presso a sé le fiamme accese,

che prende il figlio e fugge e non s'arresta,
avendo più di lui che di sé cura,
tanto che solo una camiscia vesta; (v. 37-42)

O guia subitamente me agarrou/ como a mãe que, acordada por um rumor/ e vendo perto dela arderem as chamas/ agarrará seu filho e correrá,/ cuidando mais do filho que de si mesma, tanto que só uma camisa veste; 

(esta, como se vê, é mais uma comparação, dentre as inúmeras que a imaginação fértil do poeta florentino concebeu para o seu poema).

            Assim, levando Dante junto ao peito, “como seu filho, não como companheiro” (come suo figlio, non come compagno- v.51), com ele escorregou pela encosta para a outra vala. Mal seus pés tocaram o fundo da vala, os demônios apareceram na beirada da rocha, acima de suas cabeças. Aos demônios da quinta fossa, porém, era proibido sair dali,

ché l'alta provedenza che lor volle
porre ministri de la fossa quinta,
poder di partirs' indi a tutti tolle. (v. 55-57)

pois a Alta Providência, que os queria ministros da quinta fossa,/ negava-lhes o poder de sair dali.

Gustave Doré

            Na sexta vala, a dos hipócritas, os dois poetas encontram uma gente chorando, “com semblante exausto e derrotado”, de capa dourada e capuz baixo, quase cobrindo os olhos, que se desloca vagarosamente. Quanto às capas,

Di fuor dorate son, sì ch'elli abbaglia;
ma dentro tutte piombo, e gravi tanto,
che Federigo le mettea di paglia. (v.64-66)

Por fora eram douradas e resplendiam;/ mas por dentro eram de chumbo, tão pesadas/ que a capas de Frederico eram de palha, comparadas a elas.

            Consta que Frederico II, imperador do Sacro Império Romano, castigava os traidores mandando-os vestir uma capa de chumbo, para serem depois lançados num caldeirão fervente (2).

            A lei do contrapasso se faz sentir aqui de forma bem evidente. Assim como os hipócritas têm uma personalidade falsa, em que sua aparência externa não corresponde à sua natureza interior, o castigo que lhes é atribuído consiste em vestir uma capa e capuz excessivamente pesados, por fora de ouro e por dentro de chumbo.

Gustave Doré- Os hipócritas

            Dante pede a Virgílio para identificar ali alguém “cujo nome ou fato se conheça” ( /.../ “Fa che tu trovi/ alcun ch'al fatto o al nome si conosca,- v.73-74). E um deles, atrás, reconhecendo a fala toscana de Dante, manifesta-se, dizendo que poderá lhe dar as informações que procura. Dante é aconselhado por Virgílio a esperar até que cheguem onde está, e depois a acompanhá-los no seu mesmo passo, muito lento por causa de sua vestimenta insólita. Dante espera, e vê dois deles, cujos rostos mostravam que estavam ansiosos por estar com ele.

Quando fuor giunti, assai com l'occhio bieco
mi rimiraron sanza far parola;
poi si volsero in sé, e dicean seco:

“Costui par vivo a l'atto de la gola;
e s'é son morti, per qual privilegio
vanno scoperti de la grave stola?” (v.85-90)

Ao chegar, me olharam/ obliquamente, sem pronunciar palavra;/ depois, voltando-se, disseram para si:/ “A garganta deste revela que está vivo;/ e se estão mortos, por qual privilégio/ andam sem usar o pesado manto?”
(seu olhar é oblíquo por causa do peso do capuz) (3).

            Atendendo ao seu pedido, Dante se identifica, dizendo que nasceu e criou-se às margens do rio Arno, na “grande cidade” (gran villa- v. 95) (Florença). Depois pergunta: “Mas vós quem sois, em quem eu vejo/ a dor destilar pelas faces? (Ma voi chi siete, a cui tanto distilla/ quant' i' veggio dolor giù per le guance?- v.97-98),
versos em que Dante, em vez de usar a palavra “lágrimas” usa “dor”, tomando a causa pelo efeito (procedimento imitado por Petrarca) (4).

            Os condenados explicam então a natureza de seu suplício: sob as capas douradas devem arcar com o peso excessivo do seu revestimento de chumbo. Eles foram “frades gaudentes” (ou “joviais”), uma ordem fundada por volta de 1260 para “manter a paz entre facções políticas, reconciliar famílias e proteger os fracos contra os opressores”. O nome do frade que fala com Dante é Catalano, e o de seu acompanhante é Loderingo. Por serem estrangeiros -- pois ambos eram de Bolonha -- e de partidos diferentes -- o primeiro guelfo e o segundo guibelino -- foram eleitos dirigentes de Florença, visando assegurar a paz na cidade, o que não aconteceu, dada a sua parcialidade (5). Dante os considera assim hipócritas, pois não atuaram da forma correspondente à imagem que tinham, de pacificadores.  

            Em seguida Dante vê no caminho por onde todos deviam passar, aumentando o seu suplício, um crucificado no chão, com três estacas. O frade Catalano então lhe explica:

/.../ “Quel confitto che tu miri,
consigliò i Farisei che convenia
porre un uom per lo popolo a’ martìri. (v.115-117)

Esse que tu vês/ aconselhou os fariseus que convinha/ deixar um homem sofrer, em vez de um povo.

            Esse crucificado é Caifás, segundo os comentaristas, que -- com seu sogro, Anás, e outros, membros do Sinédrio Judaico -- foi responsável pela condenação à morte de Cristo (6). Todos eles sofrem naquela vala igual tormento. 

            No final do Canto, Virgílio recebe informação do frade sobre como sair dali e alcançar a próxima vala. Constata então que Malacoda havia mentido para ele a respeito do caminho a seguir (cf. Canto XXI). O frade não se surpreende com isso, pois em Bologna ouvira falar sobre os muitos vícios do diabo, e de que “ele é mentiroso, e pai das mentiras” (ch'elli è bugiardo e padre di menzogna- v. 144).


NOTAS

(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p.377 
(2) Id., ib., p. 361 e 377 
(3) Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 392 
(4) Id., ib, p. 394 
(5) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 378 
(6) Dante Alighieri- “Obras Completas”, op cit, v.3, p. 395











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