Canto XXIII (Caifás)- Giovanni Stradano |
Os dois poetas seguem agora sós, sem a escolta dos
demônios. A situação que há pouco testemunharam -- o episódio do final do canto
anterior, em que Calcabrina e Alichino, ao perseguirem o Navarrês, acabam
levando a pior -- faz Dante associá-la à fábula atribuída a Esopo, da rã e do
rato. Aquela procurava afogar este, preso às suas costas na travessia de um rio.
Mas ambos tornam-se vítimas do falcão no final (1). Também os dois diabos em
disputa acabam caindo no lago de piche fervente...
Na sequência Dante se aflige pensando na reação dos
demônios, irados por terem sido enganados pelo Navarrês. Imagina-os vindo atrás
deles. Compara-os ao cão que persegue a lebre:
Se l'ira
sovra 'l mal voler s'aggueffa,
ei ne
verranno dietro più crudeli
che 'l cane a quella lievre ch'elli acceffa”. (v.16-18)
Se a ira se adiciona à sua malícia/ eles
virão atrás de nós, mais ferozes/ que o cão cujos dentes apanham a lebre.
O medo dos Malebranche faz seus pelos eriçarem (Già mi
sentia tutti arricciar li peli/ de la paura/.../- v.19-20). Diz a Virgílio que eles
devem procurar se esconder dos demônios. Virgílio lhe responde afirmando que se
fosse um espelho refletiria antes a imagem interior de Dante do que a externa,
demonstrando conhecer bem as reações do discípulo. Para escapar dos demônios,
decide descer para a outra “bolgia” (bolsa, vala), a sexta, pela encosta
direita. Ao ver os diabos se aproximando, com as asas abertas,
Lo duca
mio di sùbito mi prese,
come la
madre ch' al romore è desta
e vede
presso a sé le fiamme accese,
che
prende il figlio e fugge e non s'arresta,
avendo
più di lui che di sé cura,
tanto che
solo una camiscia vesta; (v. 37-42)
O guia subitamente me agarrou/ como a mãe
que, acordada por um rumor/ e vendo perto dela arderem as chamas/ agarrará seu
filho e correrá,/ cuidando mais do filho que de si mesma, tanto que só uma
camisa veste;
(esta, como se vê, é mais
uma comparação, dentre as inúmeras que a imaginação fértil do poeta florentino
concebeu para o seu poema).
Assim, levando Dante junto ao peito, “como seu filho, não como companheiro” (come suo
figlio, non come compagno- v.51), com ele escorregou pela encosta para a outra vala. Mal seus pés
tocaram o fundo da vala, os demônios apareceram na beirada da rocha, acima de
suas cabeças. Aos demônios da quinta fossa, porém, era proibido sair dali,
ché
l'alta provedenza che lor volle
porre
ministri de la fossa quinta,
poder di
partirs' indi a tutti tolle. (v. 55-57)
pois a Alta Providência, que os queria
ministros da quinta fossa,/ negava-lhes o poder de sair dali.
Na sexta vala,
a dos hipócritas, os dois poetas
encontram uma gente chorando, “com semblante exausto e derrotado”, de capa dourada e capuz
baixo, quase cobrindo os olhos, que se desloca vagarosamente. Quanto às capas,
Di fuor
dorate son, sì ch'elli abbaglia;
ma dentro
tutte piombo, e gravi tanto,
che
Federigo le mettea di paglia. (v.64-66)
Por fora eram douradas e resplendiam;/ mas
por dentro eram de chumbo, tão pesadas/ que a capas de Frederico eram de palha,
comparadas a elas.
Consta que Frederico II, imperador do Sacro Império
Romano, castigava os traidores mandando-os vestir uma capa de chumbo, para
serem depois lançados num caldeirão fervente (2).
A lei do contrapasso se faz sentir aqui de forma bem
evidente. Assim como os hipócritas têm uma personalidade falsa, em que sua
aparência externa não corresponde à sua natureza interior, o castigo que lhes é
atribuído consiste em vestir uma capa e capuz excessivamente pesados, por fora
de ouro e por dentro de chumbo.
Dante pede a Virgílio para identificar ali alguém “cujo nome ou fato se conheça” ( /.../ “Fa che tu
trovi/ alcun ch'al fatto o al nome si conosca,- v.73-74). E um deles, atrás,
reconhecendo a fala toscana de Dante, manifesta-se, dizendo que poderá lhe dar
as informações que procura. Dante é aconselhado por Virgílio a esperar até que
cheguem onde está, e depois a acompanhá-los no seu mesmo passo, muito lento por
causa de sua vestimenta insólita. Dante espera, e vê dois deles, cujos rostos
mostravam que estavam ansiosos por estar com ele.
Quando
fuor giunti, assai com l'occhio bieco
mi rimiraron sanza far parola;
poi si
volsero in sé, e dicean seco:
“Costui
par vivo a l'atto de la gola;
e s'é son
morti, per qual privilegio
vanno
scoperti de la grave stola?” (v.85-90)
Ao chegar, me olharam/ obliquamente, sem
pronunciar palavra;/ depois, voltando-se, disseram para si:/ “A garganta deste
revela que está vivo;/ e se estão mortos, por qual privilégio/ andam sem usar o
pesado manto?”
(seu olhar é oblíquo por
causa do peso do capuz) (3).
Atendendo ao seu pedido, Dante se identifica, dizendo que
nasceu e criou-se às margens do rio Arno, na “grande cidade” (gran villa- v. 95) (Florença). Depois
pergunta: “Mas vós quem sois, em quem eu
vejo/ a dor destilar pelas faces? (Ma voi chi siete, a cui tanto
distilla/ quant' i' veggio dolor giù per le guance?- v.97-98),
versos em que Dante, em
vez de usar a palavra “lágrimas” usa “dor”, tomando a causa pelo efeito (procedimento
imitado por Petrarca) (4).
Os condenados explicam então a natureza de seu suplício:
sob as capas douradas devem arcar com o peso excessivo do seu revestimento de
chumbo. Eles foram “frades gaudentes” (ou “joviais”), uma ordem fundada por
volta de 1260 para “manter a paz entre facções políticas, reconciliar famílias
e proteger os fracos contra os opressores”. O nome do frade que fala com Dante
é Catalano, e o de seu acompanhante é Loderingo. Por serem estrangeiros -- pois
ambos eram de Bolonha -- e de partidos diferentes -- o primeiro guelfo e o
segundo guibelino -- foram eleitos dirigentes de Florença, visando assegurar a
paz na cidade, o que não aconteceu, dada a sua parcialidade (5). Dante os
considera assim hipócritas, pois não atuaram da forma correspondente à imagem que
tinham, de pacificadores.
Em seguida Dante vê no caminho por onde todos deviam
passar, aumentando o seu suplício, um crucificado no chão, com três estacas. O
frade Catalano então lhe explica:
/.../ “Quel
confitto che tu miri,
consigliò
i Farisei che convenia
porre un uom
per lo popolo a’ martìri. (v.115-117)
Esse que tu vês/ aconselhou os fariseus que
convinha/ deixar um homem sofrer, em vez de um povo.
Esse crucificado é Caifás, segundo os comentaristas, que
-- com seu sogro, Anás, e outros, membros do Sinédrio Judaico -- foi
responsável pela condenação à morte de Cristo (6). Todos eles sofrem naquela
vala igual tormento.
No final do Canto, Virgílio recebe informação do frade
sobre como sair dali e alcançar a próxima vala. Constata então que Malacoda havia
mentido para ele a respeito do caminho a seguir (cf. Canto XXI). O frade não se
surpreende com isso, pois em Bologna ouvira falar sobre os muitos vícios do
diabo, e de que “ele é mentiroso, e pai
das mentiras” (ch'elli è bugiardo e padre di menzogna- v. 144).
NOTAS
(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A
verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel
Marruzzo with Laury Magnus. Bantam
Books,1982- p.377
(2) Id., ib., p. 361 e 377
(3)
Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-
“Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto
de Campos- p. 392
(4)
Id., ib, p. 394
(5) “The
Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 378
(6)
Dante Alighieri- “Obras Completas”, op cit, v.3, p. 395
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