segunda-feira, 21 de setembro de 2009

INFERNO- CANTO XIX






            Dante inicia o Canto XIX dirigindo-se a Simão Mago e seus sequazes. Simão, segundo os comentaristas, é o personagem referido na Bíblia que quis comprar os dons do Espírito Santo e foi censurado por S.Pedro. De seu nome deriva o termo “simonia”, que designa o pecado da venda das coisas sagradas. Os dois poetas visitam neste Canto o terceiro “bolgia”, a vala dos simoníacos.
           
            Do alto do rochedo, eles avistam o fundo do fosso onde há buracos redondos semelhantes aos poços que havia no batistério da igreja de San Giovanni, em Florença. Ao contrário do ritual do batismo, nesses buracos os condenados estão mergulhados de cabeça para baixo. De fora, só ficam seus pés e as pernas. As plantas dos pés ardem sob a ação do fogo. Dante quer saber quem é aquele que se debate mais que os outros, “e a quem chama mais rubra aquece”. Virgílio então o levará até o fundo do fosso para que o condenado mesmo, aquele “que se lamentava com as pernas”, responda à sua pergunta:

“O qual che se' che 'l di sù tien di sotto,
anima trista come pal commessa,”
comincia' io a dir, “se puoi, fa motto.”

Io stava come'l frate che confessa
lo perfido assessin, che, poi ch'è fitto,
richiama lui per che la morte cessa. (v.46-51)

Quem quer que sejas, alma triste,/ de cabeça para baixo, metido no solo como uma estaca,” comecei a dizer, “se podes falar, fala.”
Eu era como o frade que confessa/ o pérfido assassino, já semienterrado,/ que o chama, e assim retarda a morte
(essa última observação refere-se a uma forma de condenação à morte pela Justiça da época, em que o criminoso era enterrado vivo).

            O condenado alguns versos adiante vai fornecer subsídios que permitem a sua identificação:

sappi ch' i' fui vestito del gran manto;

e veramente fui figliuol de l'orsa,
cupido sì per avanzar li orsatti,
che sù l'avere e qui me misi in borsa. (v.69-72)

sabe tu que eu já vesti o grande manto;/ e verdadeiramente fui filho da ursa, / tão cúpido em promover ursinhos/ que embolsei ouro lá em cima e acabei aqui embolsado
 (notar a referência à bolsa, que realça o fato de que ele está em um dos “bolsões do mal”, o Malebolge)

            Trata-se do papa Nicolau III, que era da família Orsini, conhecida como a dos “filhotes da ursa”, segundo Mandelbaum et al  (1). Quando Dante lhe faz a indagação, Nicolau o toma pelo papa Bonifácio VIII, que chega antes do previsto para substituí-lo (ele então irá mais para o fundo, assim como sucedeu com os outros condenados, que o antecederam:
Di sotto al capo mio son li altri tratti
che precedetter me simoneggiando,
per le fessure de la pietra piatti. ( v.73-75 )

Debaixo da minha cabeça estão/ os que me precederam simoniando;/ eles tapam as fissuras da pedra.

            Depois de Bonifácio, diz o condenado, “virá do poente um de obra mais feia,/ um pastor sem lei,/ por quem eu e o outro seremos empurrados mais para o fundo” :

ché dopo lui verrà di più laida opra,
di ver' ponente, un pastor sanza legge,
tal che convien che lui e me ricuopra. (v.82-84)

            Os comentaristas o identificam como Clemente V, que para tornar-se papa aceitou as condições impostas pelo rei Felipe o Belo, de França. Foi Clemente V quem transferiu, em 1309, a sede do papado para Avignon, que aí permaneceu até 1377 (2) (ele era, portanto, o papa quando Dante escreveu boa parte da “Divina Comédia”, iniciada segundo Mandelbaum et al em 1307-1308 (3) ). Dante o compara a Jasão, mencionado no livro dos “Macabeus”, que obteve a posição de Sumo Sacerdote dos judeus subornando o rei Antíoco da Síria, o qual dominava então Jerusalém (4).

            A seguir, do v.90 ao v. 117, Dante-personagem, dirigindo-se a Nicolau III, faz contundente critica à simonia dos papas, iniciando por perguntar: “Quanto ouro, me diz, pediu/ Nosso Senhor antes de dar/ as chaves a S.Pedro? /Certo é que nada pediu a não ser 'vem comigo!' :

Deh, or mi dì: quanto tesoro volle

Nostro Segnore in prima da san Pietro
ch'ei ponesse le chiavi in sua balìa:
Certo non chiese se non “Viemmi retro.” (v.90-93)

            Em sua censura cita S.João Evangelista: “De vós pastores ocupou-se o Evangelista/ quando viu aquela que se assenta sobre as águas (a Igreja)/ prostituir-se com os reis;
aquela que nasceu com sete cabeças/ teve a força e o apoio de dez cornos,/ enquanto a virtude agradava ao seu marido” (o papa):

Di voi pastor s'accorse il Vangelista,
quando colei che siede sopra l'acque
puttaneggiar coi regi a lui fu vista;

quella che con le sette teste nacque,
e da le diece corna ebbe argomento,
fin che virtute al suo marito piacque. (v.106-111).

            Note-se aqui, além da linguagem (cf. puttaneggiar- v. 108), a alegoria, inspirada numa figura do Apocalipse: “aquela que se assenta sobre as águas” é a Igreja, as “sete cabeças” representam os sete sacramentos e os “dez cornos”, os dez mandamentos (5) . A referência a “seu marido”  consiste em  metáfora do papa (6).

            Depois, Dante invoca o imperador Constantino, lamentando que, após a conversão deste, a Igreja Católica tenha adquirido poder temporal.  Constantino transferiu a sede do Império para Constantinopla deixando Roma a cargo do papa Silvestre I, il primo ricco patre (7):  

Ahi, Constantin, di quanto mal fu matre,
non la tua conversion, ma quella dote
che da te prese il primo ricco patre!  (v.115-117)

Ah, Constantino, de quanto mal foi madre/ não a tua conversão, mas aquele dote/ que de ti recebeu o primeiro rico padre!
(destaque-se a aliteração do v. 117)

            Nos versos finais do Canto, Virgílio, abraçando Dante contra seu peito, auxilia-o a subir rochedo acima, ao refazer o caminho por onde vieram. Dali eles avistam a próxima vala.

            O sentido do Canto é bem evidente: o católico Dante se ressente de que sua Igreja distanciou-se das próprias origens, apresentando-se agora desvirtuada e passível de crítica, pois incorre no pecado da simonia. O poeta quer o retorno da Igreja à pureza primitiva.



NOTAS

(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 372
(2) Id. ib., p. 372-373
(3) Id. ib., p. I
 (4) Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p.275
(5) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 373; para o Mons. Pinto de Campos, que adota outra interpretação, a prostituta não é a Igreja católica mas “Roma, da Cúria papal, do poder mundano dos Papas”- cf. Dante Alighieri- “Obras Completas”, op cit- v.3, p. 277-278
 (6) Dante Alighieri- “Obras Completas”, op cit- v.3, p. 279
 (7) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 373.



       

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