Dante inicia o Canto XIX
dirigindo-se a Simão Mago e seus sequazes. Simão, segundo os comentaristas, é o
personagem referido na Bíblia que quis comprar os dons do Espírito Santo e foi
censurado por S.Pedro. De seu nome deriva o termo “simonia”, que designa o
pecado da venda das coisas sagradas. Os dois poetas visitam neste Canto o
terceiro “bolgia”, a vala dos simoníacos.
Do alto do rochedo, eles avistam o
fundo do fosso onde há buracos redondos semelhantes aos poços que havia no
batistério da igreja de San Giovanni, em Florença. Ao contrário do ritual do batismo,
nesses buracos os condenados estão mergulhados de cabeça para baixo. De fora,
só ficam seus pés e as pernas. As plantas dos pés ardem sob a ação do fogo.
Dante quer saber quem é aquele que se debate mais que os outros, “e a quem chama mais rubra aquece”.
Virgílio então o levará até o fundo do fosso para que o condenado mesmo, aquele “que se lamentava com as pernas”,
responda à sua pergunta:
“O
qual che se' che 'l di sù tien di sotto,
anima
trista come pal commessa,”
comincia'
io a dir, “se puoi, fa motto.”
Io
stava come'l frate che confessa
lo
perfido assessin, che, poi ch'è fitto,
richiama
lui per che la morte cessa. (v.46-51)
“Quem quer que sejas, alma triste,/ de cabeça
para baixo, metido no solo como uma estaca,” comecei a dizer, “se podes falar,
fala.”
Eu era como o frade que
confessa/ o pérfido assassino, já semienterrado,/ que o chama, e assim retarda
a morte
(essa
última observação refere-se a uma forma de condenação à morte pela Justiça da
época, em que o criminoso era enterrado vivo).
O condenado alguns versos adiante
vai fornecer subsídios que permitem a sua identificação:
sappi
ch' i' fui vestito del gran manto;
e
veramente fui figliuol de l'orsa,
cupido
sì per avanzar li orsatti,
che
sù l'avere e qui me misi in borsa. (v.69-72)
sabe tu que eu já vesti o
grande manto;/ e verdadeiramente fui filho da ursa, / tão cúpido em promover
ursinhos/ que embolsei ouro lá em cima e acabei aqui embolsado
(notar a referência à bolsa, que realça o fato
de que ele está em um dos “bolsões do mal”,
o Malebolge)
Trata-se do papa Nicolau III, que
era da família Orsini, conhecida como a dos “filhotes da ursa”, segundo Mandelbaum et al (1). Quando Dante lhe faz a indagação, Nicolau
o toma pelo papa Bonifácio VIII, que chega antes do previsto para substituí-lo
(ele então irá mais para o fundo, assim como sucedeu com os outros condenados,
que o antecederam:
Di
sotto al capo mio son li altri tratti
che
precedetter me simoneggiando,
per
le fessure de la pietra piatti. ( v.73-75 )
Debaixo da minha cabeça
estão/ os que me precederam simoniando;/ eles tapam as fissuras da pedra.
Depois
de Bonifácio, diz o condenado, “virá do
poente um de obra mais feia,/ um pastor sem lei,/ por quem eu e o outro seremos
empurrados mais para o fundo” :
ché
dopo lui verrà di più laida opra,
di
ver' ponente, un pastor sanza legge,
tal
che convien che lui e me ricuopra. (v.82-84)
Os comentaristas o identificam como
Clemente V, que para tornar-se papa aceitou as condições impostas pelo rei
Felipe o Belo, de França. Foi Clemente V quem transferiu, em 1309, a sede do
papado para Avignon, que aí permaneceu até 1377 (2) (ele era, portanto, o papa
quando Dante escreveu boa parte da “Divina Comédia”, iniciada segundo
Mandelbaum et al em 1307-1308 (3) ). Dante o compara a Jasão, mencionado no
livro dos “Macabeus”, que obteve a posição de Sumo Sacerdote dos judeus
subornando o rei Antíoco da Síria, o qual dominava então Jerusalém (4).
A seguir, do v.90 ao v. 117,
Dante-personagem, dirigindo-se a Nicolau III, faz contundente critica à simonia
dos papas, iniciando por perguntar: “Quanto
ouro, me diz, pediu/ Nosso Senhor antes de dar/ as chaves a S.Pedro? /Certo é
que nada pediu a não ser 'vem comigo!' :
Deh,
or mi dì: quanto tesoro volle
Nostro
Segnore in prima da san Pietro
ch'ei
ponesse le chiavi in sua balìa:
Certo
non chiese se non “Viemmi retro.” (v.90-93)
Em sua censura cita S.João
Evangelista: “De vós pastores ocupou-se o
Evangelista/ quando viu aquela que se assenta sobre as águas (a Igreja)/ prostituir-se com os reis;
aquela que nasceu com sete
cabeças/ teve a força e o apoio de dez cornos,/ enquanto a virtude agradava ao
seu marido” (o papa):
Di
voi pastor s'accorse il Vangelista,
quando
colei che siede sopra l'acque
puttaneggiar
coi regi a lui fu vista;
quella
che con le sette teste nacque,
e
da le diece corna ebbe argomento,
fin
che virtute al suo marito piacque. (v.106-111).
Note-se aqui, além da linguagem (cf.
puttaneggiar- v. 108), a alegoria, inspirada numa figura do Apocalipse: “aquela que se assenta sobre as águas” é
a Igreja, as “sete cabeças”
representam os sete sacramentos e os “dez
cornos”, os dez mandamentos (5) . A referência a “seu marido” consiste em metáfora do papa (6).
Depois, Dante invoca o imperador
Constantino, lamentando que, após a conversão deste, a Igreja Católica tenha
adquirido poder temporal. Constantino
transferiu a sede do Império para Constantinopla deixando Roma a cargo do papa
Silvestre I, il primo ricco patre (7):
Ahi,
Constantin, di quanto mal fu matre,
non
la tua conversion, ma quella dote
che
da te prese il primo ricco patre! (v.115-117)
Ah, Constantino, de quanto
mal foi madre/ não a tua conversão, mas aquele dote/ que de ti recebeu o
primeiro rico padre!
(destaque-se
a aliteração do v. 117)
Nos versos finais do Canto,
Virgílio, abraçando Dante contra seu peito, auxilia-o a subir rochedo acima, ao
refazer o caminho por onde vieram. Dali eles avistam a próxima vala.
O sentido do Canto é bem evidente: o
católico Dante se ressente de que sua Igreja distanciou-se das próprias origens,
apresentando-se agora desvirtuada e passível de crítica, pois incorre no pecado
da simonia. O poeta quer o retorno da Igreja à pureza primitiva.
NOTAS
(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A
verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel
Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 372
(2) Id. ib., p. 372-373
(3) Id. ib.,
p. I
(4) Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.3-
S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e
comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p.275
(5) “The
Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 373; para o Mons. Pinto
de Campos, que adota outra interpretação, a prostituta não é a Igreja católica mas
“Roma, da Cúria papal, do poder mundano dos Papas”- cf. Dante Alighieri- “Obras
Completas”, op cit- v.3, p. 277-278
(6) Dante Alighieri- “Obras Completas”, op
cit- v.3, p. 279
(7) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 373.
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