Amos Nattini |
Aproxima-se
agora outra chama, habitada, que emitia um som confuso no seu cimo. Dante-autor
faz, logo de início, uma comparação desse som com o de um boi siciliano, de
bronze, que parecia expressar sua dor aos mugidos. Tratava-se, na realidade, de
um instrumento de tortura que, sendo aquecido, assava a vítima dentro dele, e
seus gritos de desespero davam tal impressão. Sua primeira vítima fora o próprio
ateniense Perillus, que o fizera para o tirano Falaris, de Agrigento, na
Sicília. Mas essas informações são dadas pelo comentarista (1), pois Dante não
entra em detalhes. Parte do pressuposto de que o leitor já conhece a
história... Essa comparação impressiva, como
muitas outras do nosso poeta, é feita nestes termos:
Come ‘l bue cicilian che mugghiò prima
col
pianto di colui, e ciò fu dritto,
che
l’avea temperato con sua lima,
mugghiava
con la voce de l’afflitto,
sì
che, con tutto che fosse di rame,
pur
el pareva dal dolor trafitto;
così,
per non aver via né forame
dal
principio nel foco, in suo linguaggio
si
convertïan le parole grame. (v.7-15)
Como o boi siciliano que
primeiro mugiu/ com o grito daquele – e isso foi justo –/ que o havia modelado
com sua lima,/
mugia com a voz do
aflito,/ de modo que, apesar de ser de bronze,/parecia estar trespassado pela
dor;
assim, por não haver
via nem saída/ no fogo, na linguagem deste/ se convertiam as palavras
dolorosas.
A voz da chama depois torna-se mais nítida. O espírito
que está nela ouve (mas não vê) Virgílio despedir-se em lombardo de Ulisses e
Diomedes. Isso o faz dirigir-se a ele. Pede para que se detenha um pouco e lhe
diga qual é a situação da sua Romagna natal, se está em guerra ou não
(os mortos na “Commedia” só conhecem o futuro, não o presente):
Se tu pur mo in questo mondo cieco
caduto se' di quella dolce terra
latina ond' io mia colpa tutta reco,
dimmi se Romagnuoli han pace o guerra; (v.25-28)
Se tu acabas de cair neste mundo cego/ daquela doce
terra/ latina, de onde carrego toda minha culpa,
diz-me se os habitantes da Romagna estão em paz ou em guerra;
B. di Fruosino- Guido da Montefeltro- ca. 1420 |
Virgílio
pede a Dante-personagem para lhe responder, uma vez que seu interlocutor é
“latino”, i.e. italiano. Dante então lhe diz que não há guerra declarada, mas
ela está no coração dos seus tiranos. Faz um comentário (nos versos 36-54) sobre
cada uma das cidades da região: Ravenna, Cervia, Forli, Rimini, Faenza, Imola e
Cesena, referindo-se a elas indiretamente e explorando as imagens de animais
presentes nos brasões de seus governantes. Quanto a Ravenna e à pequena cidade
de Cervia, ambas governadas pela família Polenta, a águia de seu brasão de
armas (2) dá ao poeta pretexto para referir-se a elas nestes termos:
Ravenna sta come stata è molt' anni:
l'aquila da Polenta la si cova,
sì che Cervia ricuopre co' suoi vanni. (v.40-42)
Ravenna está como tem estado há muitos anos:/ a águia
de Polenta lá está chocando/ de modo a também cobrir Cervia com as suas asas.
Em outros versos, ele refere-se a “patas verdes” (branche verdi), “mastim” (mastin) e “leãozinho
do ninho branco” (lïoncel dal nido
bianco). Menciona na verdade dois
mastins, o velho e o novo, para se referir a Malatesta e seu filho Malatestino
da Verrucchio, cruéis senhores de Rimini.
A propósito, Francesca de Rimini, a amada de Paolo
-- protagonistas do episódio narrado no Canto V -- pertencia à família Polenta
antes mencionada (3).
Concluindo
sua breve exposição, Dante agora quer saber quem é seu interlocutor. E este diz
então que foi soldado e franciscano (já havia dado antes, nos versos 29-30, a
localização geográfica mais precisa de suas origens). Por esses dados ele é
identificado como Guido da Montefeltro (ca. 1220-1298), mas a exemplo de outros
casos seu nome não é citado explicitamente. O leitor atual da “Commedia” precisa
recorrer às notas do comentarista para saber de quem se trata, ao contrário,
certamente, dos contemporâneos de Dante.... Guido era um nobre guibelino, líder
político e militar da região, que no final da vida decidiu entrar para a ordem
dos franciscanos. Mas por causa do papa de então veio para o Inferno, para
junto dos “conselheiros fraudulentos”, que povoam o oitavo bolsão dos
Malebolge, no oitavo círculo. Enquanto vivo ele usou muito de astúcia e
estratagemas. Como ele diz nestes versos:
Mentre ch' io forma fui d' ossa e di polpe
che la madre mi diè, l' opere mie
non furon leonine, ma di volpe.
Li accorgimenti e le coperte vie
io seppi tutte, e sì menai lor arte,
ch' al fione de la terra il suono uscie.
Quando mi vidi giunto in quella parte
di mia etade ove ciascun dovrebbe
calar le vele e raccoglier le sarte,
ciò che pria mi piacëa, allor m'increbbe,
e pentuto e confesso mi rendei; (v. 73- 83)
Enquanto ainda tinha a forma de ossos e carne/ que
minha mãe me deu, meus atos/ não foram de leão, mas de raposa.
Os estratagemas e os caminhos secretos,/ todos eu
conheci, e tanto empreguei as suas artes/ que minha fama chegou aos confins da
terra.
Quando me vi chegar àquela idade/ em que cada um
devia/ baixar as velas e recolher os cabos,
aquilo que antes me aprazia, agora me enfastiava,/ e
arrependido confessei as minhas culpas.
Notar
a recorrência da menção aos animais, e seu valor simbólico, nos versos da “Divina
Comédia- Inferno”. Guido aqui é
associado à raposa e não ao leão, pois usou mais da astúcia e fraude do que da
força (4).
Dada
essa sua característica, o “princípe dos novos fariseus” (Lo principe d’i novi Farisei), como Bonifácio VIII é chamado
no v. 85, lhe pediu conselho para aniquilar os Collonas, “senhores feudatários papais de Palestrino /.../ e Cardeais ao mesmo
tempo”, seus inimigos, que se retiraram
para Palestrino (ou Penestrino) “onde se fortificaram para resistir às armas
papais”, nas palavras do Mons. Pinto de Campos (que certamente por “esprit de corps” faz a defesa de Bonifácio
VIII...) (5). A família Collona era rival da família Caetani do papa, e seus
membros questionavam a validade de
sua assunção ao sumo pontificado, após a renúncia de Celestino V, aliás
mencionado indiretamente no v.105 (já fora mencionado antes, no Canto III).
Guido então, amparado na afirmação do papa de que lhe absolvia por antecipação,
lhe dá este mau conselho: “muita promessa e pouco cumprimento” (lunga promessa con l' attender corto- v. 110). Com a rendição dos adversários, o papa não cumpriu
o que prometera e arrasou Penestrino...(6)
Guido
morreu em 1298, dois anos antes da época em que se passa a ação do poema. Após
a sua morte, conforme os versos, “Francisco” vem até ele (o santo fundador da
ordem religiosa pela qual optou), mas um “negro querubim” (neri cherubini- v. 113) reclama seu direitos sobre Guido, pois ele deu “conselho fraudulento” (consiglio frodolente- v. 116), afirmando, na sua
argumentação:
ch' assolver non si può chi non si pente,
né pentere e volere insieme puossi
per la contradizion che nol consente. (v. 118-120)
não se pode absolver quem não se arrepende,/ nem
arrepender-se e querer ao mesmo tempo/ pois a contradição não o consente.
Assim,
arrepender-se do pecado e continuar querendo pecar é uma contradição em termos.
Por isso o diabo, apoderando-se de Guido, conclui com esta observação irônica: “Talvez/ tu não pensavas que eu era um
lógico!” (Forse/ tu non pensavi ch' io löico fossi!- v.122-123)
Um diabo lógico- Dalí, 1951 |
Depois
Minós, como usualmente faz no Inferno, indica, pelo número de vezes que sacode
a cauda, para onde deve ir o condenado. No caso de Guido ele a agita oito
vezes, indicando assim o oitavo círculo, e a oitavo fossa...
Os
dois poetas seguem em frente e de um rochedo avistam a próxima fossa, a dos
semeadores de discórdia.
NOTAS
(1)
“The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen
Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 382
(2) Musa, Mark-- "Inferno"
(tradução para o inglês, notas e comentários) in "World
Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton &
Company Inc., 1973, p. 953
(3)
“The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p.382
(4) Dante Alighieri- “Obras
Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa,
introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- v.4, p.135
(5)
Id., ib, p. 137
(6)
“The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 383-384
Excelente comentário! Obrigado!
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