segunda-feira, 21 de setembro de 2009

INFERNO- CANTO XXVII



Amos Nattini

            Aproxima-se agora outra chama, habitada, que emitia um som confuso no seu cimo. Dante-autor faz, logo de início, uma comparação desse som com o de um boi siciliano, de bronze, que parecia expressar sua dor aos mugidos. Tratava-se, na realidade, de um instrumento de tortura que, sendo aquecido, assava a vítima dentro dele, e seus gritos de desespero davam tal impressão. Sua primeira vítima fora o próprio ateniense Perillus, que o fizera para o tirano Falaris, de Agrigento, na Sicília. Mas essas informações são dadas pelo comentarista (1), pois Dante não entra em detalhes. Parte do pressuposto de que o leitor já conhece a história...  Essa comparação impressiva, como muitas outras do nosso poeta, é feita nestes termos:

Come ‘l bue cicilian che mugghiò prima
col pianto di colui, e ciò fu dritto,
che l’avea temperato con sua lima,

mugghiava con la voce de l’afflitto,
sì che, con tutto che fosse di rame,
pur el pareva dal dolor trafitto;

così, per non aver via né forame
dal principio nel foco, in suo linguaggio
si convertïan le parole grame. (v.7-15)

Como o boi siciliano que primeiro mugiu/ com o grito daquele – e isso foi justo –/ que o havia modelado com sua lima,/
mugia com a voz do aflito,/ de modo que, apesar de ser de bronze,/parecia estar trespassado pela dor;
assim, por não haver via nem saída/ no fogo, na linguagem deste/ se convertiam as palavras dolorosas.

             A voz da chama depois torna-se mais nítida. O espírito que está nela ouve (mas não vê) Virgílio despedir-se em lombardo de Ulisses e Diomedes. Isso o faz dirigir-se a ele. Pede para que se detenha um pouco e lhe diga qual é a  situação  da sua Romagna natal, se está em guerra ou não (os mortos na “Commedia” só conhecem o futuro, não o presente):

Se tu pur mo in questo mondo cieco
caduto se' di quella dolce terra
latina ond' io mia colpa tutta reco,

dimmi se Romagnuoli han pace o guerra;  (v.25-28)

Se tu acabas de cair neste mundo cego/ daquela doce terra/ latina, de onde carrego toda minha culpa,
diz-me se os habitantes da Romagna estão em paz ou em guerra;

B. di Fruosino- Guido da Montefeltro- ca. 1420

            Virgílio pede a Dante-personagem para lhe responder, uma vez que seu interlocutor é “latino”, i.e. italiano. Dante então lhe diz que não há guerra declarada, mas ela está no coração dos seus tiranos. Faz um comentário (nos versos 36-54) sobre cada uma das cidades da região: Ravenna, Cervia, Forli, Rimini, Faenza, Imola e Cesena, referindo-se a elas indiretamente e explorando as imagens de animais presentes nos brasões de seus governantes. Quanto a Ravenna e à pequena cidade de Cervia, ambas governadas pela família Polenta, a águia de seu brasão de armas (2) dá ao poeta pretexto para referir-se a elas nestes termos:

Ravenna sta come stata è molt' anni:
l'aquila da Polenta la si cova,
sì che Cervia ricuopre co' suoi vanni.   (v.40-42)

Ravenna está como tem estado há muitos anos:/ a águia de Polenta lá está chocando/ de modo a também cobrir Cervia com as suas asas.

            Em outros versos, ele refere-se a “patas verdes” (branche verdi),  “mastim” (mastin) e “leãozinho do ninho branco” (lïoncel dal nido bianco). Menciona na verdade  dois mastins, o velho e o novo, para se referir a Malatesta e seu filho Malatestino da Verrucchio, cruéis senhores de Rimini.

            A propósito, Francesca de Rimini, a amada de Paolo -- protagonistas do episódio narrado no Canto V -- pertencia à família Polenta antes mencionada (3).

            Concluindo sua breve exposição, Dante agora quer saber quem é seu interlocutor. E este diz então que foi soldado e franciscano (já havia dado antes, nos versos 29-30, a localização geográfica mais precisa de suas origens). Por esses dados ele é identificado como Guido da Montefeltro (ca. 1220-1298), mas a exemplo de outros casos seu nome não é citado explicitamente. O leitor atual da “Commedia” precisa recorrer às notas do comentarista para saber de quem se trata, ao contrário, certamente, dos contemporâneos de Dante.... Guido era um nobre guibelino, líder político e militar da região, que no final da vida decidiu entrar para a ordem dos franciscanos. Mas por causa do papa de então veio para o Inferno, para junto dos “conselheiros fraudulentos”, que povoam o oitavo bolsão dos Malebolge, no oitavo círculo. Enquanto vivo ele usou muito de astúcia e estratagemas. Como ele diz nestes versos:

Mentre ch' io forma fui d' ossa e di polpe
che la madre mi diè, l' opere mie
non furon leonine, ma di volpe.

Li accorgimenti e le coperte vie
io seppi tutte, e sì menai lor arte,
ch' al fione de la terra il suono uscie.

Quando mi vidi giunto in quella parte
di mia etade ove ciascun dovrebbe
calar le vele e raccoglier le sarte,

ciò che pria mi piacëa, allor m'increbbe,
e pentuto e confesso mi rendei;   (v. 73- 83)  

Enquanto ainda tinha a forma de ossos e carne/ que minha mãe me deu, meus atos/ não foram de leão, mas de raposa.
Os estratagemas e os caminhos secretos,/ todos eu conheci, e tanto empreguei as suas artes/ que minha fama chegou aos confins da terra.
Quando me vi chegar àquela idade/ em que cada um devia/ baixar as velas e recolher os cabos,
aquilo que antes me aprazia, agora me enfastiava,/ e arrependido confessei as minhas culpas.

            Notar a recorrência da menção aos animais, e seu valor simbólico, nos versos da “Divina Comédia- Inferno”.  Guido aqui é associado à raposa e não ao leão, pois usou mais da astúcia e fraude do que da força (4).   

            Dada essa sua característica, o “princípe dos novos fariseus” (Lo principe d’i novi Farisei), como Bonifácio VIII é chamado no v. 85, lhe pediu conselho para aniquilar os Collonas, “senhores feudatários papais de Palestrino /.../ e Cardeais ao mesmo tempo”, seus inimigos, que se retiraram para Palestrino (ou Penestrino)  “onde se fortificaram para resistir às armas papais”, nas palavras do Mons. Pinto de Campos (que certamente por  “esprit de corps” faz a defesa de Bonifácio VIII...) (5). A família Collona era rival da família Caetani do papa, e seus membros questionavam a validade de sua assunção ao sumo pontificado, após a renúncia de Celestino V, aliás mencionado indiretamente no v.105 (já fora mencionado antes, no Canto III). Guido então, amparado na afirmação do papa de que lhe absolvia por antecipação, lhe dá este mau conselho: “muita promessa e pouco cumprimento” (lunga promessa con l' attender corto- v. 110).  Com a rendição dos adversários, o papa não cumpriu o que prometera  e arrasou Penestrino...(6)

            Guido morreu em 1298, dois anos antes da época em que se passa a ação do poema. Após a sua morte, conforme os versos, “Francisco” vem até ele (o santo fundador da ordem religiosa pela qual optou), mas um “negro querubim” (neri cherubini- v. 113) reclama seu direitos sobre Guido, pois ele deu “conselho fraudulento” (consiglio frodolente- v. 116), afirmando, na sua argumentação:   

ch' assolver non si può chi non si pente,
né pentere e volere insieme puossi
per la contradizion che nol consente.  (v. 118-120)

não se pode absolver quem não se arrepende,/ nem arrepender-se e querer ao mesmo tempo/ pois a contradição não o consente.

            Assim, arrepender-se do pecado e continuar querendo pecar é uma contradição em termos. Por isso o diabo, apoderando-se de Guido, conclui com esta observação irônica:  “Talvez/ tu não pensavas que eu era um lógico!” (Forse/ tu non pensavi ch' io löico fossi!- v.122-123

Um diabo lógico- Dalí, 1951 
            Depois Minós, como usualmente faz no Inferno, indica, pelo número de vezes que sacode a cauda, para onde deve ir o condenado. No caso de Guido ele a agita oito vezes, indicando assim o oitavo círculo, e a oitavo fossa... 

            Os dois poetas seguem em frente e de um rochedo avistam a próxima fossa, a dos semeadores de discórdia.   
  
            
NOTAS


(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 382
(2) Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 953
(3) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p.382
(4) Dante Alighieri- “Obras Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- v.4, p.135
(5) Id., ib, p. 137
(6) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 383-384

Um comentário: