Canto XXXI- Vellutello |
Este Canto é
inteiramente tomado pela presença de gigantes, equiparados a guardiões do
próximo círculo do Inferno, o último. Vistos de longe, quando os dois poetas se
aproximam do nono círculo -- quando “Ali
era menos que noite e menos que dia” (Quiv' era men che notte e men che
giorno- v.10)
--, Dante os confunde com torres circundando uma cidade. Ouvem soar então “uma alta trompa”, comparada à de Orlando
(ou Roland) -- mencionada na famosa “Chanson
de Roland” da literatura medieval francesa -- que alertou Carlos Magno para
a derrota iminente de sua retaguarda (em Roscevalles, nos Pirineus) em luta contra
os sarracenos (1).
Virgílio explica a Dante que as suas “torres” são na realidade gigantes, tão altos que só aparecem, no fosso central, do umbigo para cima, ficando o restante de seus corpos dentro deles. Dante usa aqui uma metáfora curiosa, chamando de avental dos gigantes a borda do fosso para baixo:
Virgílio explica a Dante que as suas “torres” são na realidade gigantes, tão altos que só aparecem, no fosso central, do umbigo para cima, ficando o restante de seus corpos dentro deles. Dante usa aqui uma metáfora curiosa, chamando de avental dos gigantes a borda do fosso para baixo:
sì che la
ripa, ch' era perizoma
dal mezzo
in giù, ne mostrava ben tanto
di sovra,
che di giugnere a la chioma
tre
Frison s'averien dato mal vanto; (v.61-64)
de modo que a borda do poço, seu avental/ do
meio para baixo, mostrava tanto dele/ para cima, que sua cabeleira
três frisões, postos um sobre o outro, não
alcançariam;
Os frisões eram
os naturais da Frísia, região mais setentrional da Holanda, considerados então os
homens mais altos do mundo. (2)
G.Sradano |
Os protagonistas
do Canto são os gigantes Nimrod, Efialtes e Anteu.
Nimrod -- o que
soprou a trompa, avisando a chegada dos dois -- é o rei da Babilônia que
concebeu a idéia da torre de Babel e foi punido com a confusão das línguas
(Dante o imagina um gigante). Seu “/.../
perverso pensamento/ foi causa de não se falar no mundo uma só língua” (per lo
cui mal coto/ pur un linguaggio nel mondo non s' usa- v.77-78). Dante inclui no poema
um verso incompreensível, sem sentido- “Raphèl
maì amècche zabì almi” (v.68), imaginado para dar uma amostra de sua língua
estranha. Ninguém compreende a sua linguagem e ele não compreende a linguagem de
ninguém. Após Nimrod pronunciar essas palavras, Virgílio, chamando-o de “alma estúpida” (Anima
sciocca- v.70),
manda-o ater-se à trompa que carrega, para nela expressar a sua ira ou outro
sentimento, já que não pode fazê-lo pela linguagem de palavras.
Nimrod- G.Doré |
Lembremo-nos que
Dante já usou antes, no primeiro verso do canto VII, esse recurso de um
personagem do Inferno pronunciar palavras ininteligíveis, o que acentua a
estranheza do outro mundo imaginado por ele.
Os poetas seguem em frente, “voltando à esquerda” (essa direção é recorrente no Inferno- cf. os
cantos nºs X, XIV, XVIII e este, XXXI. O Mons. Joaquim Pinto de Campos explica
a recorrência pelo fato de que esse é o lado pior, i.e. associado ao mal; no
dia do Juízo Final, os condenados ao Inferno estarão situados à esquerda do
Supremo Juiz) (3). Encontram então Efialtes, outro gigante, “bem mais feroz e maior” (assai più
fero e maggio- v.84).
Efialtes- G.Doré |
Ele e seu irmão gêmeo, filhos de Netuno e Ifimédia, tentaram
atacar o monte Olimpo, onde moram os deuses, colocando o monte Pelion sobre o Ossa (4); por isso, está agora
acorrentado. A corrente enrola seu corpo, prendendo-lhe os braços, cinco vezes.
Foi punido por sua arrogância:
“Questo superbo volle esser esperto
di sua
potenza contra 'l sommo Giove,”
disse 'l
mio duca, “ond' elli ha cotal merto”. (v.91-93)
“Este soberbo quis experimentar/ seu poder
contra o supremo Jove,”/ disse o meu guia, “e tal mereceu”.
Dante sugere aqui uma identificação de Jove (ou Júpiter)
com o Deus judaico-cristão, e vê na revolta do gigante um sinal de arrogância,
associando assim a mitologia clássica à da Bíblia. A revolta dos gigantes
faz-nos lembrar da revolta dos anjos contra Deus, origem dos demônios.
Anteu- G.Doré |
O terceiro gigante que encontram é Anteu. Ele, que se
alimentava de leões, viveu num “afortunado
vale” (na África) onde Cipião derrotou Aníbal na segunda guerra púnica, entre
romanos e cartagineses, conforme a referência feita por Dante nos versos
116-117. Anteu, segundo a mitologia filho de Netuno e Telus (a terra), foi
morto por Hércules, que o ergueu da terra e o estrangulou no ar, pois a terra, mãe
dos gigantes, era fonte de sua força (5).
Não está acorrentado, porque não participou da revolta contra os deuses. E pode
se comunicar pela linguagem de palavras. Virgílio diz que “os filhos da terra” (i figli de la terra- v. 121), ou os gigantes, teriam
vencido os deuses se Anteu tivesse participado da luta. Virgílio diz isso para
lisonjeá-lo e fazer o que lhe propõe, isto é, transportá-los para o fundo do nono
círculo, lá “onde a frialdade encerra
Cocito” (dove Cocito la freddura serra- v.123), o que de fato vem a ocorrer (nessa parte
mais baixa do Inferno, onde corre o rio Cocito e impera o frio, e não o calor,
estão Lúcifer e Judas). Também usa como argumento o fato de Dante estar vivo e
poder retornar ao nosso mundo, promovendo aqui o seu nome (um argumento frequentemente
utilizado, como já vimos):
Ancor ti
può nel mondo render fama,
ch' el
vive, e lunga vita ancor aspetta
se
'nnanzi tempo grazia a sé nol chiama. (v.127-129)
Ele ainda pode no mundo te dar fama/ pois é
vivo, e longa vida ainda espera viver,/ se a graça não o chamar antes do tempo.
Anteu então estendeu as mãos, apanhando Virgílio e logo
depois Dante, depondo-os em seguida no fundo do nono círculo. Quando Dante vê
aquele vulto imenso inclinar-se sobre ele amedronta-se, pois tem a mesma
sensação de quem está debaixo da torre inclinada de Garisenda, em Bolonha, ao passarem nuvens (a impressão é a de que a torre se movimenta, e
não as nuvens):
Qual pare
a riguardar la Carisenda
sotto 'l
chinato, quando un nuvol vada
sov'r
essa sì, ched ella incontro penda:
tal parve
Antëo a me stava a bada
di
vederlo chinare, e fu tal ora
ch' i'
avrei voluto ir per altra strada. (v.136-141)
Como parece a Garisenda, quando vista/
debaixo do lado inclinado ao passarem nuvens,/ parece pender como se fosse
cair,
assim me pareceu Anteu, quando/ o vi
inclinar-se, e nessa hora/ teria querido ir por outra estrada.
No Canto há ainda
referência aos gigantes Briareu (que Dante deseja ver, mas está muito distante
dali), Tizio e Tifeu (lembrados por Virgílio, a quem recorreria, caso Anteu não
se dispusesse a transportá-los para o fundo do nono círculo, o último do
Inferno).
Anteu- W.Blake |
Qual o sentido
para tantas referências a gigantes da mitologia clássica, nesse canto de
transição do oitavo para o nono círculo, i.e. da passagem do círculo dos dez
tipos de fraude comum (Malebolge) para os da fraude que envolve traição? Para
Ciardi, os gigantes corporificam as forças elementares desequilibradas cujas paixões
desconhecem as leis morais ou religiosas. São colocados como guardiães do
círculo mais profundo do Inferno pela sua natureza de “filhos da terra”, por serem símbolos da condição terrena submetida
às paixões bestiais (6). Sua posição, como guardiões dos traidores, é semelhante
à das entidades míticas que apareceram antes, a saber, Cérbero, Plutão,
Minotauro e Gerion, em relação, respectivamente, aos gulosos, avaros, violentos
e fraudulentos, como assinala o Mons. Pinto de Campos (7).
NOTAS
(1) Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 968
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books, 1982- p. 388
(3) Dante Alighieri- “Obras Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- v.4, p. 308
(4) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p.389
(5) Ciardi, John- “The Inferno” (tradução para o inglês e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition, p.896
(6) Ciardi, John- “The Inferno”, op cit, p. 893
(7) Dante Alighieri- “Obras Completas”, op cit, v.4, p. 274-275
Os gigantes- S.Dalí, 1951 |
Canto XXXI-Botticelli |
Anteu- António Carneiro |
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