Gustave Doré |
Dante inicia o Canto XXX caracterizando duas situações cruéis, uma em Tebas e outra em Tróia.
Primeiro, os versos referem-se a Atamante, que a ciumenta Juno -- irada com o envolvimento amoroso de seu marido Júpiter com Sêmele, filha do rei de Tebas -- fez perder o juízo e atirar na rocha um de seus próprios filhos. Também fez a esposa dele, irmã de Sêmele, afogar-se, juntamente com o outro filho do casal. Quanto a Sêmele, ainda conforme a mitologia, ela foi atingida por um raio. De sua união com Júpiter nasceria Baco, o padroeiro daquela cidade-estado grega (1).
Em seguida, os versos afirmam que, após a derrota de
Troia na guerra com os gregos, a rainha Hécuba foi feita prisioneira e, vendo
os filhos mortos, enlouqueceu de dor:
forsenata latrò sì comme canne;
tanto il
dolor le fé la mente torta (v. 20-21)
desatinada ladrou como um cão;/ tanto a dor
deformou a sua mente
(destaque-se a força
expressionista dessa comparação).
Mas essas duas situações, em Tebas e Troia, não foram
piores, diz Dante, do que aquelas representadas pelas duas sombras nuas (como
estão sempre os condenados no Inferno) que vê correndo a morder, “como faz/ o porco quando foge da pocilga”
(di quel modo/ che ‘l porco quando del porcil si schiude- v.26-27):
L’una
giunse a Capocchio, e in sul nodo
del collo
l’assannò, sì che, tirando,
grattar
li fece il ventre al fondo sodo. (v. 29-31)
Uma delas chegou-se a Capocchio, e o mordeu/
na nuca, atirando-o por terra,/ de tal modo que o fez raspar o ventre no duro
solo.
Trêmulo (pois
também não estava livre de ser mordido), o Aretino (i.e., Griffolino d’Arezzo)
que acompanhava Capocchio -- ambos personagens do canto anterior --, identifica
essa sombra maligna como Gianni Schicchi, “que
vai raivoso, dilacerando assim os outros” (e va rabbioso altrui cosi
conciando- v. 33). Schicchi, segundo o comentarista, se fez passar por Buoso
Donati, para ditar um novo testamento em favor de Simone Donati, sobrinho de
Buoso, o mentor da fraude. O que Schicchi ganhou com isso foi herdar a “senhora do rebanho” (la donna
de la torma- v.43), uma égua (ou mula) excelente (2). Essa cena, a de Schicchi mordendo
Capocchio, é uma das duas mais impactantes do canto XXX (a outra é a do
disforme Mestre Adamo, que surge mais adiante).
Adolphe-William Bouguereau, 1850 |
O Aretino também
identifica, a pedido de Dante, a outra sombra: trata-se de Mirra, “que se tornou/ do pai, fora do justo amor,
amiga” (che divenne/ al padre, fuor del dritto amore, amica- v.38-39). Ela, de acordo com a
mitologia, se disfarçou de outra mulher para ter uma relação incestuosa com o
próprio pai, rei de Chipre. Quando este soube que fora enganado, tentou matá-la
mas ela fugiu dele. Depois, os deuses a transformaram numa árvore (mirra). Da união de Mirra com seu pai nasceu Adonis
(esta história, assim como as de Sêmele e de Hécuba, referidas no início, são
recontadas por Ovídio nas “Metamorfoses”) (3).
Dante-autor
expressa sua repulsa por esses embusteiros (os que se fazem passar por outras
pessoas), comparando-os a porcos (a atitude de Schicchi e a relação incestuosa
de Mirra são atos vis, sujos, moralmente, donde a associação ao porco e à
pocilga). Concebe-os como condenados enraivecidos que se voltam contra os
companheiros, procurando dilacerá-los, como fizeram em vida (passar por outra
pessoa significou prejudicar, "dilacerar", a verdadeira).
As duas sombras
raivosas, representantes dos falsificadores de pessoas, ilustram o primeiro dos
três tipos de falsificadores referidos neste canto. Os outros dois,
apresentados abaixo, são os falsificadores de moedas e os de palavras (falsos
testemunhos). A esses devem ser
acrescentados os falsificadores de metais do canto anterior (os alquimistas)
para chegarmos aos quatro tipos de falsificadores que a décima e última fossa
do Malebolge contêm, conforme os cantos XXIX e XXX.
Na sequência Dante olha para os outros “mal nascidos” (mal nati-
v. 48) ali
presentes. E diz:
Io vidi
un, fatto a guisa di lëuto,
pur ch’
elli avesse avuta l’ anguinaia
tronca da
l’ altro che l’ uomo ha forcuto. (v. 49-51)
Vi um que seria um alaúde/se à altura da
virilha/ tivesse o corpo cortado.
Ele é chamado de Mestre Adamo, um falso moedeiro, e sofre
de hidropsia, de modo que seu rosto e os membros não têm correspondência com a
barriga, inchada desmesuradamente. A doença o torna sedento, fazendo-o manter
os lábios sempre abertos, e a lembrança dos regatos de sua terra aumenta o seu
suplício. Mas ( por ser rancoroso e vingativo, como outros condenados no
Inferno, “donde a caridade é totalmente
banida” (4) ), ele não trocaria a vista daqueles que o induziram a cometer
seu crime padecendo no Inferno (os Guidi, condes de Romena, uma cidade na
região de Casentino, perto de Florença (5) ) nem pela imagem da fonte Branda, que lhe
saciaria a sede. Mestre Adamo, que falsificou florins e por isso morreu queimado,
preso na estaca, é assim exemplo do terceiro tipo de falsificação, a
falsificação de moedas.
“Mestre” (esse
tratamento era dado aos artífices) Adamo, enquanto vivo, tinha sede de moedas e
por isso no Inferno terá tal castigo (como se a sua barriga fosse um cofre
abarrotado delas). Esse castigo eterno é reservado aos que incorrem no mesmo
pecado de Adamo.
Giovanni Stradano |
O quarto tipo é dos que foram falsos nas palavras ou dos
que deram falso testemunho. São representados por dois condenados que estão
ali, juntos de Mestre Adamo, imóveis, “fumegando
como mãos banhadas no inverno” (che fumman come man bagnate ‘l
verno- v.92),
decorrentes da grande febre que os acomete (esse é seu castigo). Um é a esposa
de Putifar (oficial de Faraó, no Egito), recusada por José, que o acusou
falsamente ao marido, conforme a Bíblia (Gên, cap. 39); o outro é Sinon, o
grego que enganou os troianos, fazendo-os aceitar o cavalo de madeira, onde se
escondiam os guerreiros seus conterrâneos. Ou como diz o poema:
L’una è
la falsa ch’ accusò Gioseppo;
l’ altr’
è ‘ l falso Sinon greco di Troia:
per
febbre aguta gittan tanto leppo. (v. 97-99)
Uma é a
falsa que acusou José;/ o outro é o falso Sinon, grego de Troia:/ por febre aguda
exalam fumo fétido.
Mentiras, quando
eram vivos, saíram deles, de suas bocas. Agora, um fumo fétido exala de seu
corpo febril, como de algo quente no inverno...
Um dos dois
pecadores se sentiu ofendido, talvez pelo modo como foi referido por Mestre
Adamo, e lhe vibrou um soco na barriga, que “soou como se fosse um tambor” (Quella sonò come fosse un
tamburo;- v. 103), ao que o atingido revidou com um golpe com o braço em seu
rosto. Em seguida, os dois ficaram trocando acusações e se depreciando
mutuamente. Dante mantém-se atento ao diálogo deles. Mas é censurado por
Virgílio, “pois querer ouvir isto é vil
desejo” (ché voler ciò udire è bassa voglia- v.148).
Muitos de nós, hoje
em dia, ao assistirmos certos programas de televisão, também somos merecedores
da censura de Virgílio...
É interessante
notar que Dante tem mais simpatia pelos troianos do que pelos gregos. Toma partido
dos primeiros, certamente porque os italianos descendem deles (Eneas e seus
companheiros – a quem Virgílio dedicou a “Eneida” – fugiram de Troia para
fundar Roma). Dante colocou os gregos Ulisses e Diomedes, heróis da guerra de
Troia, no Inferno, no círculo dos “maus conselheiros” (canto XXVI). E neste
canto XXX, colocou Sinon na décima fossa do Malebolge, junto com outros “falsificadores
de palavras”, como vimos acima.
(1) Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p.964
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books, 1982- p.387
(3) Id., ib., p. 387
(4) Dante Alighieri- “Obras Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- v.4, p. 265
(5) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 387
Canto XXX- Punição dos falsificadores- Priamo della Quercia, 1444-1450 |
Canto XXX-Homens que se entredevoram- Dalí, 1951 |
Sr. Domingos,
ResponderExcluirSou fã do seu blog “curtindo a divina comédia”. Vi que vc fez menção a livros seus acima. Tentei comprar no site i dicaso, mas não consegui! Como faço para adquirir?