Cocito- G. Doré |
O canto XXXII
mostra Dante começando a conhecer o fundo do Inferno. Está no nono círculo (o último), um lago
congelado formado pelo rio Cocito, que diferentemente dos três anteriores (o
Aqueronte, o Estige e o Flegetonte) é de águas muito frias. Dante e Virgílio
estão agora no “fundo de todo o universo”
(fondo a tutto l'universo- v.8), em conformidade com a concepção cósmica de
Ptolomeu, pela qual todos os astros giravam em torno do nosso planeta. Essa
concepção, hoje ultrapassada, era a que prevalecia na Idade Média.
Dante gostaria de
ter “rimas ásperas e rouquenhas” (rime
aspre e chiocce- v.1) para melhor tratar aquilo que via, o que é revelador de sua
preocupação estética em buscar intencionalmente a forma mais adequada ao seu
objeto.
Invoca então as musas para auxiliá-lo, dada a dificuldade
de seu empreendimento, apelando de novo para a mitologia:
Ma quelle
donne aiutino il mio verso
ch'
aiutaro Anfïone a chiuder Tebe,
sì che
dal fatto il dir non sia diverso. (v.10-12)
Mas aquelas damas ajudem o meu verso/ que
ajudaram Anfião a murar Tebas,/ para que do fato meu dizer não seja diverso.
Anfião recebeu das musas um poder encantatório: ao tocar
a sua lira as pedras da natureza se moveram e formaram por si mesmas o muro de
Tebas (1).
A lenda mitológica
está sempre subentendida nos versos de Dante, que se integra ao que neles é
dito, contribuindo para reforçar o seu ambiente onírico, mágico. O poeta florentino
sempre pressupõe o conhecimento da lenda por parte do leitor. O mesmo ocorre
com as histórias de vida dos personagens que cita, frequentemente seus
contemporâneos (note-se ademais como questões locais, políticas ou de outra
natureza, ganham, no poema, uma dimensão universal...).
Alguém alerta Dante para não pisar nas cabeças dos condenados
que aí cumprem pena, com quase todo o corpo abaixo da superfície desse lago
gelado, mais adiante comparados a rãs, a coaxar, com o focinho de fora da água:
dicere
udi' mi: “Guarda come passi:
va sì,
che tu non calchi con le piante
le teste
de' fratei miseri lassi.”
Per ch'
io mi volsi, e vidimi davante
e sotto i
piedi un lago che per gelo
avea di
vetro e non d' acqua sembiante. (v. 19-24)
e ouvi dizerem para mim: “Olha como passas;/
anda de modo a não pisar/ nas cabeças dos teus irmãos míseros e cansados”.
Ante isso me voltei e vi diante de mim,/ sob
meus pés, um lago que por estar gelado/ parecia de vidro e não de água.
Atente-se para o impacto visual dessa estranha paisagem
gelada, concebida pelo gênio poético de Dante-autor.
Os condenados aí mantêm os rostos voltados para baixo.
Quando Dante repara em dois deles, com os corpos unidos no gelo, pergunta-lhes
quem são. Eles então voltam seus rostos para o poeta, e a cena imaginada tem a
força destes versos:
e poi ch'
ebber li visi a me eretti,
li occhi
lor, ch' eran pria pur dentro molli,
gocciar
su per le labbra, e 'l gelo strinse
le
lagrime tra essi e riserrolli. (v.45-48)
e depois que ergueram seus rostos para mim,
seus olhos, que estavam antes úmidos por
dentro,/ gotejaram nos lábios, até que o frio/ congelou as lágrimas nas
pálpebras, cerrando-as.
Então um que tinha perdido as orelhas pela frialdade (E un
ch’avea perduti ambo li orecchi/ per la freddura,/.../ - v.52-53) informa que esses dois
foram irmãos, filhos do Conde Alberto degli Alberti , herdeiros do vale onde
corre o rio Bisenzo (os comentaristas dizem tratar-se de Napoleone e
Alessandro, que se mataram mutuamente por divergências não só quanto a essa
herança mas também políticas, pois um era guelfo e o outro, guibelino). (2) E ele ainda informa que em toda Caína Dante
não encontrará sombra mais digna de estar ali. Percebemos então que esta é a
primeira das quatro áreas em que se divide o nono círculo, a Caína (nome derivado de Caim, que matou
seu irmão Abel, conforme a Bíblia). Outros condenados citados que estão aí são:
Focaccia (um guelfo Branco, membro da família Cancellieri, de Pistoia, que
matou seu primo, um guelfo Negro), Sassol Mascheroni (membro da família Toschi,
de Florença, que matou o sobrinho para ficar com a herança dele) e Camiscion
de' Pazzi (aquele que perdera as orelhas; este matou seu parente Umbertino)
(3). Temos aqui uma amostra dos “mil
rostos roxeados pelo frio” (mille visi cagnazzi/ fatti per
freddo- v.70-71)
que Dante vê na Caína, o lugar do círculo dos traidores em que estão os que
traíram seu próprio sangue.
Logo adiante os dois poetas entram na segunda área do nono
círculo, Antenora (cujo nome deriva
de Antenor, um troiano que traiu Troia para favorecer os gregos), lugar dos que
traíram sua pátria, ou dos traidores políticos.
Bocca degli Abati- G.Doré |
Dante ao avançar em direção ao centro deste último
círculo, sem querer golpeia fortemente com o pé o rosto de uma daquelas cabeças
que estão para fora do gelo. O atingido, na mesma hora, reclama com veemência,
indagando se não é por causa de Montaperti que é assim molestado. Diante dessa
menção à batalha de Montaperti (quando os guelfos foram derrotados pelos guibelinos),
Dante pede a Virgílio (que praticamente não desempenha nenhum papel neste
Canto, cujo protagonismo cabe a seu discípulo) para se deter ali, pois quer
saber mais desse condenado. Trata-se de Bocca delli Abati, um nobre guelfo de
Florença que traiu seu partido, cortando as mãos de quem portava a bandeira dos
guelfos na batalha de Montaperti em 1260, o que causou pânico em suas forças e
a derrota frente aos guibelinos (4). É sobre esse condenado que mais se revela
a ira de Dante. E não por acaso, pois sua história envolve traição política e
se relaciona diretamente à política florentina que tanto afetou a vida do poeta.
Allor lo
presi per la cuticagna
e dissi: “El
converrà che tu ti nomi,
o che
capel qui sù non ti rimagna.”
Ond' elli
a me: “Perché tu mi dischiomi,
né ti
dirò ch' io sia, né mosterrolti
se mille
fiate in sul capo mi tomi.” (v. 97-102)
Então agarrei-o pela nuca/ e lhe disse: “Tu
vais já dizer teu nome/ ou então não restará nenhum cabelo aqui”.
Ao que me diz: “Ainda que me arranques todos
eles,/ não te direi quem sou, nem me mostrarei,/ nem se mil vezes golpeares
minha cabeça.”
Sua identidade acaba sendo revelada por outro condenado
que ali cumpre pena, Buoso da Duera, que foi subornado pela “prata dos franceses” (l'argento
de' Franceschi- v.115), i.e. por Charles d’Anjou, para permitir passagem às suas tropas
a caminho de Nápoles, cujo rei os nobres guibelinos, inclusive Buoso,
prometeram defender contra os franceses. (5)
Ali também estão: Tesauro dei Beccheria, “de quem Florença cortou a cabeça” (di cui
segò Fiorenza la gorgiera- v.120), núncio papal, guibelino, acusado de traição pelos guelfos; Gianni
de' Soldanier, um nobre guibelino de Florença que se juntou aos guelfos quando
ocorreu uma revolta popular contra o seu partido; Ganelon, que traiu a retaguarda de Carlos
Magno em Roncesvalles; e Tebaldello, “que
abriu (as portas) de Faenza enquanto ela dormia” (ch' aprì
Faenza quando si dormia- v.123). O guibelino Tebaldello, para vingar-se de Lambertazzi, que se
refugiara em Faenza, abriu as portas da cidade aos inimigos guelfos. Todos os
citados nessa passagem do Canto têm em comum, assim, a traição política, o que
fica mais evidenciado com as notas do comentarista. (6)
Ugolino e o arcebispo Ruggieri- G. Doré |
O canto XXXII termina
de modo abrupto (diferentemente dos anteriores, em que a ação se completa no
próprio canto), após Dante formular uma pergunta a um dos dois enregelados numa
cova, unidos pelas cabeças, de modo que o de cima rói a nuca do que está
embaixo. Dante quer saber daquele que demonstra assim o seu ódio quem é ele e
qual a razão do seu procedimento.
NOTAS
(1) “The
Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen
Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books, 1982- p. 390
(2) Id., ib, p. 390
(3) Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o
inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third
Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p.974
(4) “The
Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 390
(5) Id., ib,
p. 391
(6) Id., ib,
p. 391
Traidores de sua pátria- Salvador Dalí |
Canto XXXII- Amos Nattini |
Nenhum comentário:
Postar um comentário