segunda-feira, 21 de setembro de 2009

INFERNO- CANTO XXXII



Cocito- G. Doré

            O canto XXXII mostra Dante começando a conhecer o fundo do Inferno. Está no nono círculo (o último), um lago congelado formado pelo rio Cocito, que diferentemente dos três anteriores (o Aqueronte, o Estige e o Flegetonte) é de águas muito frias. Dante e Virgílio estão agora no “fundo de todo o universo” (fondo a tutto l'universo- v.8), em conformidade com a concepção cósmica de Ptolomeu, pela qual todos os astros giravam em torno do nosso planeta. Essa concepção, hoje ultrapassada, era a que prevalecia na Idade Média.

            Dante gostaria de ter “rimas ásperas e rouquenhas” (rime aspre e chiocce- v.1) para melhor tratar aquilo que via, o que é revelador de sua preocupação estética em buscar intencionalmente a forma mais adequada ao seu objeto.

            Invoca então as musas para auxiliá-lo, dada a dificuldade de seu empreendimento, apelando de novo para a mitologia:

Ma quelle donne aiutino il mio verso
ch' aiutaro Anfïone a chiuder Tebe,
sì che dal fatto il dir non sia diverso. (v.10-12)

Mas aquelas damas ajudem o meu verso/ que ajudaram Anfião a murar Tebas,/ para que do fato meu dizer não seja diverso.

            Anfião recebeu das musas um poder encantatório: ao tocar a sua lira as pedras da natureza se moveram e formaram por si mesmas o muro de Tebas (1).

             A lenda mitológica está sempre subentendida nos versos de Dante, que se integra ao que neles é dito, contribuindo para reforçar o seu ambiente onírico, mágico. O poeta florentino sempre pressupõe o conhecimento da lenda por parte do leitor. O mesmo ocorre com as histórias de vida dos personagens que cita, frequentemente seus contemporâneos (note-se ademais como questões locais, políticas ou de outra natureza, ganham, no poema, uma dimensão universal...).

            Alguém alerta Dante para não pisar nas cabeças dos condenados que aí cumprem pena, com quase todo o corpo abaixo da superfície desse lago gelado, mais adiante comparados a rãs, a coaxar, com o focinho de fora da água:

dicere udi' mi: “Guarda come passi:
va sì, che tu non calchi con le piante
le teste de' fratei miseri lassi.”

Per ch' io mi volsi, e vidimi davante
e sotto i piedi un lago che per gelo
avea di vetro e non d' acqua sembiante. (v. 19-24)

e ouvi dizerem para mim: “Olha como passas;/ anda de modo a não pisar/ nas cabeças dos teus irmãos míseros e cansados”.
Ante isso me voltei e vi diante de mim,/ sob meus pés, um lago que por estar gelado/ parecia de vidro e não de água.

            Atente-se para o impacto visual dessa estranha paisagem gelada, concebida pelo gênio poético de Dante-autor.

            Os condenados aí mantêm os rostos voltados para baixo. Quando Dante repara em dois deles, com os corpos unidos no gelo, pergunta-lhes quem são. Eles então voltam seus rostos para o poeta, e a cena imaginada tem a força destes versos:

e poi ch' ebber li visi a me eretti,

li occhi lor, ch' eran pria pur dentro molli,
gocciar su per le labbra, e 'l gelo strinse
le lagrime tra essi e riserrolli. (v.45-48)

e depois que ergueram seus rostos para mim,
seus olhos, que estavam antes úmidos por dentro,/ gotejaram nos lábios, até que o frio/ congelou as lágrimas nas pálpebras, cerrando-as.

            Então um que tinha perdido as orelhas pela frialdade (E un ch’avea perduti ambo li orecchi/ per la freddura,/.../ - v.52-53) informa que esses dois foram irmãos, filhos do Conde Alberto degli Alberti , herdeiros do vale onde corre o rio Bisenzo (os comentaristas dizem tratar-se de Napoleone e Alessandro, que se mataram mutuamente por divergências não só quanto a essa herança mas também políticas, pois um era guelfo e o outro, guibelino). (2)  E ele ainda informa que em toda Caína Dante não encontrará sombra mais digna de estar ali. Percebemos então que esta é a primeira das quatro áreas em que se divide o nono círculo, a Caína (nome derivado de Caim, que matou seu irmão Abel, conforme a Bíblia). Outros condenados citados que estão aí são: Focaccia (um guelfo Branco, membro da família Cancellieri, de Pistoia, que matou seu primo, um guelfo Negro), Sassol Mascheroni (membro da família Toschi, de Florença, que matou o sobrinho para ficar com a herança dele) e Camiscion de' Pazzi (aquele que perdera as orelhas; este matou seu parente Umbertino) (3). Temos aqui uma amostra dos “mil rostos roxeados pelo frio” (mille visi cagnazzi/ fatti per freddo- v.70-71) que Dante vê na Caína, o lugar do círculo dos traidores em que estão os que traíram seu próprio sangue.

            Logo adiante os dois poetas entram na segunda área do nono círculo, Antenora (cujo nome deriva de Antenor, um troiano que traiu Troia para favorecer os gregos), lugar dos que traíram sua pátria, ou dos traidores políticos.

Bocca degli Abati- G.Doré

            Dante ao avançar em direção ao centro deste último círculo, sem querer golpeia fortemente com o pé o rosto de uma daquelas cabeças que estão para fora do gelo. O atingido, na mesma hora, reclama com veemência, indagando se não é por causa de Montaperti que é assim molestado. Diante dessa menção à batalha de Montaperti (quando os guelfos foram derrotados pelos guibelinos), Dante pede a Virgílio (que praticamente não desempenha nenhum papel neste Canto, cujo protagonismo cabe a seu discípulo) para se deter ali, pois quer saber mais desse condenado. Trata-se de Bocca delli Abati, um nobre guelfo de Florença que traiu seu partido, cortando as mãos de quem portava a bandeira dos guelfos na batalha de Montaperti em 1260, o que causou pânico em suas forças e a derrota frente aos guibelinos (4). É sobre esse condenado que mais se revela a ira de Dante. E não por acaso, pois sua história envolve traição política e se relaciona diretamente à política florentina que tanto afetou a vida do poeta.

Allor lo presi per la cuticagna
e dissi: “El converrà che tu ti nomi,
o che capel qui sù non ti rimagna.”

Ond' elli a me: “Perché tu mi dischiomi,
né ti dirò ch' io sia, né mosterrolti
se mille fiate in sul capo mi tomi.” (v. 97-102)

Então agarrei-o pela nuca/ e lhe disse: “Tu vais já dizer teu nome/ ou então não restará nenhum cabelo aqui”.
Ao que me diz: “Ainda que me arranques todos eles,/ não te direi quem sou, nem me mostrarei,/ nem se mil vezes golpeares minha cabeça.”

            Sua identidade acaba sendo revelada por outro condenado que ali cumpre pena, Buoso da Duera, que foi subornado pela “prata dos franceses” (l'argento de' Franceschi- v.115), i.e. por Charles d’Anjou, para permitir passagem às suas tropas a caminho de Nápoles, cujo rei os nobres guibelinos, inclusive Buoso, prometeram defender contra os franceses. (5)

                Ali também estão: Tesauro dei Beccheria, “de quem Florença cortou a cabeça” (di cui segò Fiorenza la gorgiera- v.120), núncio papal, guibelino, acusado de traição pelos guelfos; Gianni de' Soldanier, um nobre guibelino de Florença que se juntou aos guelfos quando ocorreu uma revolta popular contra o seu partido;  Ganelon, que traiu a retaguarda de Carlos Magno em Roncesvalles; e Tebaldello, “que abriu (as portas) de Faenza enquanto ela dormia” (ch' aprì Faenza quando si dormia- v.123). O guibelino Tebaldello, para vingar-se de Lambertazzi, que se refugiara em Faenza, abriu as portas da cidade aos inimigos guelfos. Todos os citados nessa passagem do Canto têm em comum, assim, a traição política, o que fica mais evidenciado com as notas do comentarista. (6)

Ugolino e o arcebispo Ruggieri- G. Doré

            O canto XXXII termina de modo abrupto (diferentemente dos anteriores, em que a ação se completa no próprio canto), após Dante formular uma pergunta a um dos dois enregelados numa cova, unidos pelas cabeças, de modo que o de cima rói a nuca do que está embaixo. Dante quer saber daquele que demonstra assim o seu ódio quem é ele e qual a razão do seu procedimento.


NOTAS 

(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books, 1982- p. 390
(2) Id., ib, p. 390
(3) Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p.974
(4) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 390
(5) Id., ib, p. 391
(6) Id., ib, p. 391

Traidores de sua pátria- Salvador Dalí 

Canto XXXII- Amos Nattini


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