Ugolino- Henry Fuseli |
Após a pergunta de Dante, formulada no final do canto
anterior, o condenado que roía a nuca do outro interrompe a sua horrível
atividade:
La bocca
sollevò dal fiero pasto
quel
peccator, forbendola a' capelli
del capo
ch' elli avea di retro guasto. (v. 1-3)
A boca levantou do fero pasto/ aquele
pecador, limpando-a nos cabelos/ da cabeça que ele roía atrás.
Logo os dois envolvidos nessa cena grotesca são
identificados: o primeiro é o conde Ugolino della Gherardesca, guibelino, ex-podestà (principal magistrado) de Pisa,
e o outro, cuja cabeça é devorada, é o arcebispo Ruggieri degli Ubaldini, antigo
aliado político que o traiu, prendendo-o numa torre, após Ugolino aceitar seu convite
de retornar a Pisa, com a sua ascensão ao poder. Na torre, deixou-o morrer de
fome, juntamente com seus quatro “filhos”, como são referidos nos versos (na realidade, são dois filhos e dois netos)
(1). A “lei do contrapasso” manifesta-se aqui de forma bem evidente: assim como
Ruggieri o fez morrer de fome, agora no Inferno a punição eterna deste é servir
de pasto ao conde.
Ugolino e Ruggieri estão numa região limítrofe entre Antenora
e Tolomeia. A primeira, como já vimos, é a área do nono círculo em que ficam os
traidores da pátria, caso de Ugolino, acusado de entregar castelos de Pisa para
as cidades de Luca e Florença. A outra
área é reservada aos que traíram seus convidados e associados, caso do
Arcebispo, que procedeu daquela forma reprovável com relação a Ugolino quando se
apoderou do controle de Pisa (2).
O conde Ugolino responde à pergunta de Dante contando sua
história, apesar do sofrimento que lhe causa relembrar os fatos. Mas ele o fará,
pois isso contribui para prejudicar a fama de Ruggieri em nosso mundo. E também
para que os pisanos saibam a crueldade a que foram submetidos na torre, pela
qual também foram responsáveis, após Ruggieri jogá-los contra Ugolino.
Ugolino- G.Doré |
Ugolino e seus “filhos” já estavam presos há muitos meses
quando ele teve um sonho premonitório: sonhou que Ruggieri era o senhor de uma
caçada e perseguia o lobo e seus filhotes com suas cadelas adestradas (o povo
revoltado contra ele). Após breve corrida, eles, exaustos, foram alcançados por
elas, que dilaceraram seus flancos.
Ao acordar, Ugolino ouviu que os filhos, dormindo,
choravam e pediam pão:
Quando
fui desto innanzi la dimane,
pianger
senti' fra ' l sonno i miei figliuoli
ch' eran
con meco, e dimandar del pane. (v.37-39)
Quando despertei antes de romper o dia,/
chorar ouvi, dentro do sono, meus filhos/ que estavam comigo lá, pedindo pão.
Esperaram o alimento inutilmente. E ouviram depois,
embaixo, a porta da torre ser pregada, o que significava sua condenação à morte
pela fome (o som aqui é um elemento a mais que Dante mobiliza para criar o
clima de pesadelo desejado).
Ugolino não chorou mas por dentro petrificou (Io non
piangëa, sì dentro impetrai: - v. 49). Passa-se o tempo, e ele, desesperado com a situação, morde as
próprias mãos. Os filhos, pensando que fizera isso pela fome, oferecem suas próprias
carnes para alimentá-lo:
/.../ ‘Padre,
assai ci fia men doglia
se tu
mangi di noi: tu ne vestisti
queste
misere carni, e tu le spoglia.’ (v.61-63)
/.../ ‘Pai, seria bem menos doloroso para nós/
se nos comesses: tu nos vestiste/ destas míseras carnes, delas podes nos
despojar’.
Ugolino prossegue em sua narração:
Queta' mi allor per non farli più tristi;
lo dì e
l' altro stemmo tutti muti;
ahi dura
terra, perché non t' apristi? (v. 64-66)
Me aquieto então para não deixá-los mais
tristes;/ naquele dia e no seguinte nos conservamos mudos;/ ah, dura terra, por
que não te abriste ?
Ugolino e Gaddo- G.Doré |
No quarto dia Gaddo atira-se aos pés do pai, perguntando-lhe:
“Pai, por que não me ajudas?” (/.../ “Padre
mio, ché non m’aiuti?”- v. 69). E morre. Depois, no quinto e sexto dias, Ugolino vê os outros
caírem um a um. Nos dois dias seguintes, já cego, arrastando-se até eles,
apalpa-os e os chama pelos nomes. O episódio se encerra com um verso terrível e
ambíguo (não por acaso, certamente)-- “Depois, mais do que a dor, pôde o jejum”
(Poscia, più che 'l dolor, poté 'l digiuno- v.75) -- que sugere
canibalismo (sugestão que já foi antecipada pelas palavras dos filhos referidas
acima) ou a simples morte pela fome.
Terminada a narração, Ugolino revira os olhos, e volta à
sua horrenda ocupação, roer o crânio de Ruggieri.
Ugolino- G.Doré |
Na sequência Dante condena Pisa, pois se Ugolino traiu a
sua cidade, seus “filhos” (Uguiccione, Brigata, Gaddo e Anselmuccio ou Anselminho),
inocentes, não mereceram aquele castigo. Todo esse episódio relativo a Ugolino
vai do v. 1 ao 90, tomando assim a maior parte dos 157 versos do canto XXXIII.
G.Stradano |
Os poetas prosseguem sua jornada e entram na Tolomeia.
Este nome, segundo o comentarista, deriva de Ptolomeu, da Bíblia (I Macabeus,
16: 11-17), governador de Jericó, que matou seu sogro e dois filhos dele, seus
convidados em um banquete, ou de Ptolomeu do Egito, que traiu Pompeu, depois de
lhe oferecer abrigo (3), após ser derrotado por César na batalha de Farsália. Na
Tolomeia, os condenados estão deitados de costas, presos no gelo, e não têm nem
o consolo do choro pois se choram suas lágrimas ficam congeladas nas órbitas
dos olhos, impedindo-os de ver.
Uma alma se manifesta pedindo que os poetas retirem dela “os duros véus” (i duri
veli- v. 112)
para que possa desafogar a dor que lhe emprenha o coração (che’l cor
m’impregna- v. 113; cf. a linguagem insólita). Dante diz que só vai ajudá-la se ela disser quem é. Fica sabendo então que se trata de frei Alberigo, “aquele das frutas do mau horto,/ aqui recebo
tâmaras pelos meus figos” (/.../ quel da le frutta del mal horto/ che
qui riprendo dattero per figo- v.119-120). Ele, ao mandar vir as frutas em um banquete, deu o sinal para
que os assassinos matassem dois de seus convidados. A menção a tâmaras e figos é
interpretada como uma queixa sua à punição que recebeu, mais do que merecida, pois
a tâmara vale mais que o figo...(4)
Dante se admira que ele já esteja morto. Mas Alberigo lhe
explica que quando a alma trai ela vem imediatamente para ali enquanto seu
corpo, na terra, é tomado por um demônio que lhe cumpre o tempo de vida
restante (essa é uma peculiaridade da Tolomeia: a alma cai ali antes que
Atropos -- uma das três parcas da mitologia clássica -- lhe corte o fio da
vida) (5).
Alberigo diz ainda que esse também deve ser o caso do
condenado que está ali atrás dele já há muitos anos. É o senhor Branca d'Oria, um
proeminente habitante de Gênova (6). Dante também se admira com isso, pois sabe
que está vivo. Mas sua alma já está no Inferno há muito tempo, antes mesmo que
seu sogro Michel Zanche -- que ele mandou matar durante um banquete -- chegasse
ao outro círculo do Inferno que lhe estava reservado (como vimos antes, Zanche
foi para o oitavo círculo, quinta vala do Malebolge, a dos traficantes de
influência).
Concluída sua fala, frei Alberigo pediu que Dante cumprisse
sua promessa e lhe retirasse aquela “viseira
de cristal” (visiere di cristallo- v. 98), que lhe era desconfortável. Mas Dante não fez isso. Ser vilão com
esse condenado foi ato de cortesia (e cortesia fu lui esser villano-
v. 150). Já
vimos que exercer a caridade no Inferno é contrapor-se à justiça divina...
O Canto termina com Dante condenando os genoveses,
conterrâneos de Branca d’Oria, cujos costumes então se corrompiam pela
aglomeração em Gênova de povos de diferentes culturas (7). Dante quer vê-los
exterminados do mundo. Da mesma forma, a narração do episódio de Ugolino terminara
com a condenação de Pisa, que foi injusta com os “filhos” inocentes do conde
Ugolino. Dante desejou que fossem afogados todos os seus habitantes. Como se
vê, o próprio poeta, ao compor os versos do “Inferno”, se deixou influenciar
pela ausência de caridade cristã ali reinante...
Nos últimos versos do canto XXXIII o poeta florentino, dirigindo-se aos genoveses,
refere-se a Branca d’Oria, que teve a mesma sorte de Frei Alberigo, nascido em
Faenza, na Romagna (8):
Ché col
peggiore spirto di Romagna
trovai di
voi un tal, che per sua opra
in anima
in Cocito già si bagna,
e in
corpo par vivo ancor di sopra. (v. 154-157)
Pois com o pior espírito da Romagna/ encontrei
um de vós, que pela sua obra,/ em alma já se banha no Cocito,
e em corpo aparece ainda vivo lá em cima.
NOTAS
(1) “The
Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen
Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books, 1982- p.391
(2)
Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários)
in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New
York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 977
(3) “The
Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 392
(4) Id., ib,
p. 392
(5) Id., ib,
p. 392
(6)
Musa, Mark-- "Inferno", op cit, p. 980
(7)
Dante Alighieri- “Obras Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-
“Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto
de Campos- v.4, p. 435
(8)
Musa, Mark-- "Inferno", op cit, p. 980
Conte Ugolino- Auguste Rodin |
Traidores de seus convidados- Dalí |
Parabéns pelo trabalho fantástico!
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