G.Doré |
O Canto inicia salientando o fato de que Dante se
demorava a contemplar a nona fossa, a dos semeadores de discórdia. Virgílio
estranha isso, pois o mesmo não ocorrera com relação às outras valas. Enquanto
andam, Dante lhe explica que esperava encontrar ali um parente seu, “um espírito do meu sangue” (un spirto
del mio sangue- v.20), Geri del Bello. Virgílio manda-o não se preocupar com esse
parente “daqui por diante”. Numa
imagem sugestiva, Dante-autor faz Virgílio afirmar que o viu lá embaixo, no
fundo da fossa, apontando para ele e ameaçando-o com o dedo, enquanto Dante
estava entretido, conversando com o senhor do castelo de Hautefort (Bertrand de
Born). Dante então lhe explica:
“O duca mio, la vïolenta morte
che non
li è vendicata ancor,” diss’ io,
“per
alcun che de l’onta sia consorte,
fece lui
disdegnoso; ond’ el sen gio
sanza
parlarmi, sì com ‘ïo estimo:
e in ciò
m’ ha el fatto a sé più pio.” (v.31-36)
“Ó guia meu, sua morte violenta/ que não foi
vingada ainda”, disse eu,/ “por alguém que compartilha da vergonha,/ fez dele
desdenhoso; por isso partiu/ sem falar comigo, suponho:/ e isso me fez ter mais
piedade dele”.
Naquela época e lugar, era comum a luta entre famílias,
que se prolongava por várias gerações; e os seus membros estavam obrigados a vingar
a morte do parente morto. Isso explica a atitude de Geri del Bello, primo de
Dante, que ainda não fora vingado. Como ele se envolvera em uma briga com
alguém da família Sacchetti, atribuiu-se a esta família sua morte. Mas, posteriormente,
um Alighieri o vingaria. Essas informações, como costuma acontecer nas notas
aos versos do poema, são fornecidas pelos comentaristas, os atuais baseando-se nos
mais antigos (1).
Geri del Bello- G. Doré |
Os dois poetas
avançam pelo rochedo-ponte e avistam a décima
(e última) fossa do Malebolge, onde
estão os falsários, cujos lamentos
são tão horríveis que fazem Dante tapar os ouvidos com as mãos. Além disso,
eles exalam um mau cheiro insuportável: “/.../
e tal fedor daqui subia/ como costuma sair de membros apodrecidos” (e tal puzzo
n’ usciva/ qual suol venir de le marcite membre - v.50-51).
Dante compara a
tristeza da situação dessa fossa àquela da ilha de Egina após a peste, que
vitimou todos os seus habitantes e animais, lançada sobre ela por Juno, esposa
de Júpiter, enciumada pela relação do marido com a ninfa Egina que deu nome à
ilha. Essa história é contada nas “Metamorfoses” de Ovídio (2).
Na nona fossa, os condenados, com o corpo todo coberto de crostas, assim se posicionavam:
Qual
sovra ‘l ventre e qual sovra le spalle
l’ un de
l’ altro giacea, e qual carpone
si
trasmutava per lo tristo calle. (v. 67-69)
Uns jaziam sobre seu ventre, ou sobre os
ombros/ de outro espírito, ou ainda rastejavam/ pela triste estrada.
Os dois poetas passam por eles, “que nem sequer podiam erguer-se” (che non potean levar le
lor persone- v.72), observando-os. Dante-autor destaca então dois dos pecadores, que estavam ali sentados,
apoiando-se um no outro. Ele apresenta aqui a imagem mais impressiva
do Canto por descrever vivamente uma situação repugnante. Para o florentino (assim como para o Baudelaire de "La charogne" (A carniça) muito tempo depois) o poético não abrange
só os aspectos elevados, sublimes, da realidade, mas também esses outros, próprios da condição humana:
e non
vidi già mai menare stregghia
a ragazzo
aspettato dal segnorso,
né a
colui che mal volontier vegghia,
come
ciascun menava spesso il morso
de
l’unghie sopra sé per la gran rabbia
del pizzicor, che non ha più soccorso;
e sì traevan giù l’unghie la scabbia,
come coltel di scardova le scaglie
o d’altro
pesce che più larghe l’abbia. (v. 76-84)
e não vi jamais manejar a almofaça (*) / moço
de estrebaria que seu senhor espera,/ ou que a contragosto fica acordado,
como cada um investia contra si mesmo/ as
unhas, pela grande comichão/ que sentiam, pois não havia outro jeito;
e assim desbastavam as crostas/ como a faca
tira as escamas da carpa/ ou de outro peixe, com mais largas escamas.
(*) Almofaça, segundo o
dicionário Aurélio, significa “Escova de
ferro com que se limpam cavalgaduras”. Em italiano, “stregghia” (3).
G. Doré |
Virgílio pergunta a um dos dois se há ali algum “latino” (= italiano), e em agradecimento
pela resposta deseja “que a unha/ te dure
eternamente para este trabalho” (se l’unghia ti basti/
etternalmente a cotesto lavoro- v.89-90), aliviando-se assim, sempre, da comichão que sente. A impressão
que os versos causam é magnificada pelo fato de Dante colocar-se no lugar do
condenado, que busca alívio para o seu tormento com as unhas, e a comparação
que faz da ação delas com a faca, ao tirar as escamas do peixe (efeito que é
antecipado pela menção à almofaça no cavalo). Casualmente, aqueles dois são
italianos. Atendendo, por sua vez, a pergunta que lhe formulam, Virgílio diz
quem é e porque está ali. Ao saberem que Dante ainda está vivo, os dois
desfazem o apoio recíproco que se prestavam e voltam-se para olhá-lo, assim
como outros condenados, que também ouviram isso. Então Dante dirige-se àqueles
dois (num padrão típico do poema) perguntando quem são, estimulando-os com a
seguinte justificativa:
Se la
vostra memoria non s’imboli
nel primo
mondo da l’umane menti,
ma s’ella
viva sotto molti soli, (v. 103-105)
Para que a vossa memória não desapareça/ das
mentes humanas no primeiro mundo,/ mas que ela viva sob muitos sóis
(quer dizer, por muitos
anos, uma vez que na época acreditava-se que o Sol girava em torno da Terra (4)
)
Então o primeiro
se identifica. Ele é de Arezzo (os comentaristas o identificam como Griffolino
de Arezzo) e foi condenado à fogueira pelo bispo de Siena, talvez genitor do
ingênuo Albero da Siena, a quem iludiu, tirando dinheiro, com a promessa de
ensinar-lhe a voar. Mas não é por isso que ele está na décima fossa, e sim por
ter exercido a alquimia no mundo (5). Sabendo disso, Dante diz a Virgílio: “Houve jamais/ gente tão vã quanto a de
Siena?” (Or fu già mai/ gente si vana come la sanese?- v.121-122)
Depois “o outro leproso” (l’altro
lebbroso- v.124),
que concorda com essa opinião de Dante, se manifesta. Trata-se de Capocchio, “que falsificou metais com a alquimia” (che
falsai li metalli con l’alchìmia- v.137). Ele também foi queimado na fogueira pelo crime de alquimia, em
que se fingia transformar metais em ouro por meio da química (6). Dante-autor
tem a oportunidade de exercer aqui a ironia, pois Capocchio cita várias pessoas
que seriam exceções àquela frivolidade apontada por Dante (Stricca, Niccolò,
Caccia d’Ascian). Mas estes eram famosos perdulários de Siena, que chegaram
inclusive a formar uma sociedade que dissipou o patrimônio de suas famílias (7).
NOTAS
(1) Musa, Mark-- "Inferno"
(tradução para o inglês, notas e comentários) in "World
Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton &
Company Inc., 1973, p. 961
(2)
“The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen
Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books, 1982- p. 386
(3) Dante Alighieri- “Obras
Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa,
introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- v.4, p.232
(4) Id., ib,, p. 234
(5) “The Divine Comedy of Dante
Alighieri- Inferno”, op cit, p. 386.
(6) Dante Alighieri- “Obras
Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa,
introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- v.4, p.234
(7)
“The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 386-387.
Giovanni Stradano |
Nenhum comentário:
Postar um comentário