Amos Nattini, 1923- litografia |
Do alto de seu posto de observação,
Dante vê -- no fundo do quarto bolgia
“que se banhava de angustioso pranto”
(che si bagnava d'angoscioso pianto- v.6) – os condenados avançarem, calados e lacrimosos. É
ali que estão os feiticeiros e advinhos
(os áugures), cuja punição consiste em ter o rosto sempre voltado para as
costas, obrigados por isso a andar para trás. Aqueles que pretendiam ver o
futuro (uma prerrogativa divina) não conseguem agora nem ver o que está diante
deles...:
Come ‘l
viso mi scese in lor più basso,
mirabilmente
apparve esser travolto
ciascun
tra 'l mento e 'l principio del casso,
ché da le
reni era tornato 'l volto,
e in
dietro venir li convenia,
perché 'l
veder dinanzi era lor tolto. (v. 11-15)
Como eu inclinasse a cabeça mais abaixo/vi
que cada um, surpreendentemente, parecia distorcido/ entre o queixo e o princípio do tórax;
tinham o rosto voltado para os rins/ e
só andar para trás lhes convinha/ porque não podiam ver à frente.
E Dante-autor continua a explorar
visualmente tal imagem insólita, após dirigir-se ao leitor com familiaridade:
com'io
potea tener lo viso asciutto,
quando la
nostra imagine di presso
vidi sì
torta, che 'l pianto de li occhi
le
natiche bagnava per lo fesso. (v.21-24).
como eu podia ter o rosto enxuto,
quando essa nossa imagem vi de perto/ tão
torta, que o pranto de seus olhos/ as nádegas banhava pela fenda.
Virgílio repreende Dante por
apiedar-se deles e chorar, fazendo-o entender que o juízo divino é para ser
aceito, e não lamentado.
Em seguida, aponta para algumas
almas que ali estão: Anfiarau, Tirésias, Aronta e Manto, todo eles videntes ou
advinhos. Mandelbaum et al. fornecem
alguma informação sobre eles (1).
Anfiarau foi um dos sete reis que
lutaram contra Tebas, na Grécia, e previu a própria morte na guerra; mas
fugindo dela, acabou por encontrá-la, quando “se abriu a terra aos olhos dos tebanos” (s'aperse a li occhi d'i Teban la terra- v.32), i.e., quando ocorreu um terremoto na região.
Tirésias foi um famoso profeta de Tebas que,
segundo relata Ovídio, foi transformado em mulher ao bater com o cajado num casal
de serpentes unidas e depois de sete anos, após agir da mesma forma em idêntico
encontro de serpentes, voltou a ser
homem.
Vedi Tiresia,
che mutò sembiante
quando di
maschio femmina divenne,
cangiandosi
le membra tutte quante;
e prima,
poi, ribatter li convenne
li duo
serpenti avvolti, con la verga,
che
rïavesse le maschili penne. (v. 40-45).
Vê Tirésias, que mudou o aspecto/ quando
de macho fêmea se tornou,/ transformando-se os membros, todos eles;
e depois teve que golpear uma vez mais/ as
duas serpentes enlaçadas com o bastão/ para reaver as penas masculinas.
Aronta, um advinho etrusco que
previu a vitória de César contra Pompeu, em Carrara “fez da gruta de mármore branco/ sua morada; dali ele podia fitar/ as
estrelas e o mar com visão desimpedida”:
ebbe tra
' bianchi marmi la spelonca
per sua
dimora; onde a guardar le stelle
e 'l mar
non li era la veduta tronca. (v.49-51)
Sobre Manto, filha de Tirésias (2), também advinha,
Virgílio discorre mais demoradamente, pois a história dela está associada à da
sua cidade natal, Mantua. Ela saiu de Tebas (a “cidade de Baco”, i.e. consagrada a ele) e depois de muito vagar
pelo mundo, estabeleceu-se na região da Itália ao pé dos Alpes, próxima do lago
Benaco, então desabitada. “E para fugir a
todo consórcio humano,/ lá quedou-se, com seus servos, a exercer a sua arte; e ali
viveu, e ali deixou seu corpo vazio”:
Lì, per
fuggire ogne consorzio umano,
ristette
com suoi servi a far sue arti,
e visse,
e vi lasciò suo corpo vano. (v. 85-87)
Mais tarde, “Construíram a cidade sobre seus ossos mortos” (Fer la città sovra quell' ossa morte -v.91). Cidade que no passado já contou dentro de seus
muros com muito mais gente do que agora, devido segundo Dante-autor à
insensatez de Casalodi (senhor de Mântua em 1272), que foi mal aconselhado pelo
traidor Pinamonte dei Buonaccorsi, o qual acabou por tomar o poder. O poeta florentino estende-se aqui talvez excessivamente
sobre as origens da cidade natal de Virgílio, pois dedica 44 dos 130 versos do Canto XX ao
tema -- do v. 58 ao v. 102 --, que na realidade é estranho ao desse Canto. A
propósito, esse último verso contém uma comparação interessante, feita após
Dante afirmar a Virgílio que merece toda a sua fé o que ele acaba de dizer
sobre as origens de Mântua, descartando explicações alternativas: “/.../ outras palavras para mim seriam como
carvão queimado” (che li altri mi sarien carboni spenti- v.
102).
Bottega di Pacino di Bonaguida- sec. XIV |
Mas Dante volta ao tema de seu Canto
nos versos seguintes, quando Virgílio, atendendo ao pedido do curioso discípulo,
cita outros áugures que ali estão (3): Eurípilo (que juntamente com Calcanta
teria indicado aos gregos a hora mais conveniente para seus navios partirem em
direção a Troia), o astrólogo escocês Miguel Scott, Guido Bonatti, outro
astrólogo, Asdente, que foi sapateiro em Parma (seu nome significa "sem dentes"), e algumas mulheres, as quais,
deixando suas agulhas e rocas, se tornaram advinhas, a “praticar malefícios com ervas e imagens” (fecer malie con erbe e con imago -v.123).
O Canto conclui com Virgílio
lembrando a Dante que já é tarde e eles devem prosseguir em sua jornada. Já “Caim
com os espinhos” (i.e. a Lua e suas manchas , onde a crença popular
italiana coloca o assassino do irmão Abel) “se
avizinha/ de ambos os hemisférios e toca o mar,/ abaixo de Sevilha”.
Segundo Mandelbaum et al., a Lua está aí na posição ocidental extrema do
hemisfério norte (“abaixo de Sevilha”:
sotto Sobilia -v.126), limite do mundo então conhecido. Ele afirma ainda
que no lado oposto, em Jerusalém, são 6 horas da manhã do Sábado de Aleluia, 9
de abril de 1300 (4).
NOTAS
(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A
verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel
Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 374
(2) Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 926
(3) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 374.
(4) Id., ib., p.375
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