segunda-feira, 21 de setembro de 2009

INFERNO- CANTO XX



Amos Nattini, 1923- litografia
  

            Do alto de seu posto de observação, Dante vê -- no fundo do quarto bolgiaque se banhava de angustioso pranto” (che si bagnava d'angoscioso pianto- v.6) – os condenados avançarem, calados e lacrimosos. É ali que estão os feiticeiros e advinhos (os áugures), cuja punição consiste em ter o rosto sempre voltado para as costas, obrigados por isso a andar para trás. Aqueles que pretendiam ver o futuro (uma prerrogativa divina) não conseguem agora nem ver o que está diante deles...:

Come ‘l viso mi scese in lor più basso,
mirabilmente apparve esser travolto
ciascun tra 'l mento e 'l principio del casso,

ché da le reni era tornato 'l volto,
e in dietro venir li convenia,
perché 'l veder dinanzi era lor tolto. (v. 11-15)

Como eu inclinasse a cabeça mais abaixo/vi que cada um, surpreendentemente, parecia distorcido/ entre o queixo e o princípio do tórax; 
tinham o rosto voltado para os rins/ e só andar para trás lhes convinha/ porque não podiam ver à frente.

            E Dante-autor continua a explorar visualmente tal imagem insólita, após dirigir-se ao leitor com familiaridade:

com'io potea tener lo viso asciutto,

quando la nostra imagine di presso
vidi sì torta, che 'l pianto de li occhi
le natiche bagnava per lo fesso. (v.21-24).

como eu podia ter o rosto enxuto,
quando essa nossa imagem vi de perto/ tão torta, que o pranto de seus olhos/ as nádegas banhava pela fenda.

            Virgílio repreende Dante por apiedar-se deles e chorar, fazendo-o entender que o juízo divino é para ser aceito, e não lamentado.

            Em seguida, aponta para algumas almas que ali estão: Anfiarau, Tirésias, Aronta e Manto, todo eles videntes ou advinhos.  Mandelbaum et al. fornecem alguma informação sobre eles  (1).  

            Anfiarau foi um dos sete reis que lutaram contra Tebas, na Grécia, e previu a própria morte na guerra; mas fugindo dela, acabou por encontrá-la, quando “se abriu a terra aos olhos dos tebanos” (s'aperse a li occhi d'i Teban la terra- v.32), i.e., quando ocorreu um terremoto na região.

             Tirésias foi um famoso profeta de Tebas que, segundo relata Ovídio, foi transformado em mulher ao bater com o cajado num casal de serpentes unidas e depois de sete anos, após agir da mesma forma em idêntico encontro de serpentes,  voltou a ser homem.

Vedi Tiresia, che mutò sembiante
quando di maschio femmina divenne,
cangiandosi le membra tutte quante;

e prima, poi, ribatter li convenne
li duo serpenti avvolti, con la verga,
che rïavesse le maschili penne. (v. 40-45).

Vê Tirésias, que mudou o aspecto/ quando de macho fêmea se tornou,/ transformando-se os membros, todos eles;
e depois teve que golpear uma vez mais/ as duas serpentes enlaçadas com o bastão/ para reaver as penas masculinas.

            Aronta, um advinho etrusco que previu a vitória de César contra Pompeu, em Carrara “fez da gruta de mármore branco/ sua morada; dali ele podia fitar/ as estrelas e o mar com visão desimpedida”:

ebbe tra ' bianchi marmi la spelonca
per sua dimora; onde a guardar le stelle
e 'l mar non li era la veduta tronca. (v.49-51)

      Sobre Manto, filha de Tirésias (2), também advinha, Virgílio discorre mais demoradamente, pois a história dela está associada à da sua cidade natal, Mantua. Ela saiu de Tebas (a “cidade de Baco”, i.e. consagrada a ele) e depois de muito vagar pelo mundo, estabeleceu-se na região da Itália ao pé dos Alpes, próxima do lago Benaco, então desabitada. “E para fugir a todo consórcio humano,/ lá quedou-se, com seus servos, a exercer a sua arte; e ali viveu, e ali deixou seu corpo vazio”:

Lì, per fuggire ogne consorzio umano,
ristette com suoi servi a far sue arti,
e visse, e vi lasciò suo corpo vano. (v. 85-87)

            Mais tarde, “Construíram a cidade sobre seus ossos mortos” (Fer la città sovra quell' ossa morte -v.91). Cidade que no passado já contou dentro de seus muros com muito mais gente do que agora, devido segundo Dante-autor à insensatez de Casalodi (senhor de Mântua em 1272), que foi mal aconselhado pelo traidor Pinamonte dei Buonaccorsi, o qual acabou por tomar o poder.  O poeta florentino estende-se aqui talvez excessivamente sobre as origens da cidade natal de Virgílio,  pois dedica 44 dos 130 versos do Canto XX ao tema -- do v. 58 ao v. 102 --, que na realidade é estranho ao desse Canto. A propósito, esse último verso contém uma comparação interessante, feita após Dante afirmar a Virgílio que merece toda a sua fé o que ele acaba de dizer sobre as origens de Mântua, descartando explicações alternativas: “/.../ outras palavras para mim seriam como carvão queimado” (che li altri mi sarien carboni spenti- v. 102).

Bottega di Pacino di Bonaguida- sec. XIV

            Mas Dante volta ao tema de seu Canto nos versos seguintes, quando Virgílio, atendendo ao pedido do curioso discípulo, cita outros áugures que ali estão (3): Eurípilo (que juntamente com Calcanta teria indicado aos gregos a hora mais conveniente para seus navios partirem em direção a Troia), o astrólogo escocês Miguel Scott, Guido Bonatti, outro astrólogo, Asdente, que foi sapateiro em Parma (seu nome significa "sem dentes"), e algumas mulheres, as quais, deixando suas agulhas e rocas, se tornaram advinhas, a “praticar malefícios com ervas e imagens” (fecer malie con erbe e con imago -v.123).

            O Canto conclui com Virgílio lembrando a Dante que já é tarde e eles devem prosseguir em sua jornada.  Já “Caim com os espinhos” (i.e. a Lua e suas manchas , onde a crença popular italiana coloca o assassino do irmão Abel) “se avizinha/ de ambos os hemisférios e toca o mar,/ abaixo de Sevilha”. Segundo Mandelbaum et al., a Lua está aí na posição ocidental extrema do hemisfério norte (“abaixo de Sevilha”: sotto Sobilia -v.126), limite do mundo então conhecido. Ele afirma ainda que no lado oposto, em Jerusalém, são 6 horas da manhã do Sábado de Aleluia, 9 de abril de 1300 (4).

NOTAS

(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 374
(2) Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 926  
(3) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 374. 
(4) Id., ib., p.375 

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