Gustave Doré |
O Canto XXVI inicia com Dante dirigindo-se ironicamente a Florença, a quem ele manda exultar, pois, além da terra e do mar, seu nome se expande também pelo Inferno (ele acaba de constatar, conforme o Canto anterior, cinco nobres florentinos na fossa dos ladrões). Mas “se próximo ao amanhecer se sonha o vero” (Ma se presso al mattin del ver si sogna- v.7), conforme a crendice popular, logo cairão sobre sua cidade natal os males previstos, antes mencionados. Dante “como poeta do mundo secular” (Auerbach) incorpora tal crendice a seus versos, tornando-os assim mais próximos do gosto do povo de sua época (lembremo-no que ele sempre quis essa aproximação e tal desejo o levou a escrever a “Commedia” na linguagem falada pelo povo, e não no latim dos eruditos, o que é coerente com o engajamento de sua poesia).
Os dois poetas
prosseguem a sua árdua jornada, pelas escarpas e rochas, e Dante chega a um
lugar, no alto do rochedo, em que pode ver o fundo da oitava fossa, que é a dos “conselheiros
fraudulentos”. Dante compara então as chamas que ele viu brilharem lá
embaixo com os vaga-lumes que o campônio vê do alto do monte, no fundo do vale,
na noite de verão.
A essa comparação segue-se logo outra, inspirada num
episódio da Bíblia (II Reis, 2:23-24; 11-12) (1): as chamas são como aquelas
que o profeta Eliseu viu quando seu mestre Elias subiu aos céus num carro de
fogo:
E qual
colui che si vengió com li orsi
vidi 'l
carro d' Elia al dipartire,
quando i
cavalli al cielo erti levorsi,
che nol
potea sì con li occhi seguire,
ch' el
vedesse altro che la fiamma sola,
sì come nuvoletta, in sù salire:
tal si
move ciascuna per la gola
del
fosso, ché nessuna mostra 'l furto,
e ogne
fiamma un peccatore invola. (v.34-42)
E como aquele, vingado pelos ursos,/ viu o
carro de Elias ao partir,/ quando os cavalos rumaram para o céu,
sem poder segui-lo com os olhos,/ não viu
outra coisa senão uma só chama/ subir, como uma nuvenzinha:
assim se move cada chama pela garganta/
daquele fosso; nenhuma mostra o furto,/ e toda chama um pecador envolve.
“Aquele vingado
pelos ursos” é Eliseu. Segundo o Livro dos Reis, um grupo de rapazinhos que escarneceram dele foram mortos por uns
ursos que saíram da floresta (Dante explora aqui a mitologia bíblica assim como
mais à frente, neste mesmo Canto, vai explorar a mitologia greco-latina, um
recurso recorrente na composição de seu grande poema).
Cada chama aqui
abrasa um pecador. Essa é a punição que os maus conselheiros recebem no
Inferno. Ao se aproximar uma chama bipartida, ou “chama cornuda” (fiamma cornuta- v. 68), Dante quer dirigir-se a
ela, mas Virgílio o impede, reservando para si tal papel, pois ali estão dois
gregos, Ulisses e Diomedes, que “talvez
se esquivem de te responder”. Segundo o Mons. Pinto de Campos, os gregos,
conscientes de sua superioridade cultural, eram altivos e consideravam os
outros povos bárbaros. Mas Virgílio, que os enaltecera na “Eneida”, estava em
melhores condições do que Dante para manter tal diálogo...(2).
Esses dois incorreram no pecado punido na oitava fossa
porque:
1) durante a guerra de
Troia, conceberam o estratagema do grande cavalo de madeira, que permitiu a
entrada nesta cidade, à noite, dos soldados gregos nele escondidos, o que possibilitou
a derrota dos troianos; isso implicou também na fuga de Eneas e seus
companheiros de Troia, na Ásia Menor, para se estabelecerem na península
itálica, onde mais tarde surgiria Roma e seu império. Nos versos abaixo Ulisses
e Diomedes, encerrados na mesma chama, lamentam esse fato:
e dentro
da la lor fiamma si geme
l’agguato
del caval che fé la porta
onde uscì
de’ Romani Il gentil seme (v. 58-60)
“e
dentro de sua chama eles lamentam/ a fraude do cavalo que foi a porta/ por onde
saiu a gentil semente dos romanos”
2) usaram de artifício para
convencer Aquiles a ir com eles para a guerra, fazendo-o abandonar mulher e
filho; em consequência disso, Deidamia, filha do rei Licomedes da ilha de
Skyros, morreu, e “por ele ainda chora”;
Ulisses disse a Aquiles que, segundo o oráculo, Troia não poderia ser tomada
sem a sua participação mas não lhe disse que ele pereceria nessa guerra,
conforme o mesmo oráculo (3); e
3) furtaram (e levaram
para Argos) o Paládio, uma estátua de Pallas Athena, a deusa protetora de Troia,
que garantia a sua integridade enquanto permanecesse na cidade (4). O único
verso que fala disso, deixando subentendido o que acabo de dizer, é o v.63: “e pelo Paládio suportam a pena” (e del
Palladio pena vi si porta), o que mostra bem a concisão dos versos de Dante, nos quais, frequentemente,
estão pressupostas as histórias que envolvem os personagens neles citados,
míticos ou não, razão por que as notas são necessárias ao leitor moderno, para
a melhor compreensão do poema.
Virgílio quer saber daquela chama como foi o fim de
Ulisses. A chama tremula e sua ponta, movendo-se como um língua, começa a falar
(como disse alguém, a grande arte é insólita, bizarra). Ulisses então passa a
relatar a sua história, a partir do v. 90, que se estende por todo o restante
do Canto, até o seu último verso (v.142), consistindo num dos momentos mais
belos do poema (esse relato de Ulisses não vem de Homero, para quem Ulisses retorna
à ilha grega de Ítaca, aí falecendo. Dante segue outra tradição, conforme mostra
o Mons. Pinto de Campos (5) ). Ulisses afirma que depois que fugiu da
feiticeira Circe, nem o amor pelo filho e por Penélope nem a compaixão pelo pai
vincer
potero dentro a me l' ardore
ch' i '
ebbi a divenir del mondo esperto
e de li
vizi umani e del valore; (v.97-99)
puderam vencer dentro em mim o ardor/ que eu
tive de ganhar experiência do mundo/ e dos humanos vícios e valor;
Assim a ânsia por ampliar a sua experiência do mundo é mais
forte que o apelo da vida tranquila que poderia levar no seio da família.
Lança-se então ao mar (Mediterrâneo), com os poucos companheiros que nunca o
abandonaram. Percorre as duas costas, de Espanha e de Marrocos, e chegam, já
velhos e tardos, “àquela foz estreita/
onde Hercules estabeleceu os seus marcos” (/.../ a quella foce
stretta/ dov' Ercule segnò li suoi riguardi- v.107-108) (as Colunas de Hércules,
ou seja, o Estreito de Gibraltar), limite para os navegadores do mundo antigo.
Além desse ponto, ninguém ousava ir e enfrentar os perigos de um mar
desconhecido e misterioso. Mas Ulisses faz uma convocação àqueles companheiros
fiéis para fazerem a viagem temerária:
'O
frati', dissi, 'che per cento milia
perigli
siete giunti a l' occidente,
a questa
tanto picciola vigília
d' i
nostri sensi ch' è del rimanente
non
vogliate negar l' esperïenza
di retro
al sol, del mondo sanza gente.
Considerate
la vostra semenza:
fatti non foste a viver come bruti,
ma per
seguir virtute e canoscenza.' (v.112-120).
'Ó
irmãos', disse, 'que após cem mil/ perigos alcançais o ocidente,/ a esta tão
breve vigília
dos
sentidos remanescente/ não negueis a experiência/ do mundo desabitado, além do
sol.
Considerai
a vossa semente:/ não fostes feitos para viver como brutos/ mas para buscar virtude
e conhecimento'
Ulisses expressa aqui uma concepção sábia quanto à
finalidade de nossa vida, que é breve por natureza. Devemos vivê-la orientados
pelo bem (pela virtute) e pela busca da verdade (ou do conhecimento, canoscenza,
do mundo).
Isso poderia servir de lema para os cientistas do mundo contemporâneo, esses “maus
conselheiros”, que assessoraram aqueles que nos governam a desenvolver, por
exemplo, armas nucleares, o que já afetou e poderá ainda afetar a vida de
muitas pessoas, representando um risco permanente para a humanidade...
Uma vez tomada a decisão
temerária, os navegadores voltam então a proa da nau para o oeste e vão em
frente: “dos remos fizemos asas no vôo
louco” (de' remi facemmo ali al folle volo- v.125), sempre seguindo o lado
esquerdo, i.e. costeando o continente africano (aquilo que os audazes
navegadores portugueses fariam muito mais tarde. Aliás, há quem acredite que Ulisses
foi o fundador de Lisboa (6), cujo antigo nome deriva do seu-- Olissipo). Ultrapassando o equador, à
noite veem as estrelas do polo sul e já não mais as do polo norte. Após
navegarem cinco meses avistam ao longe, exultantes, uma montanha muito alta.
Mas a sua alegria dura pouco, pois dali vem um furacão que faz o barco girar
três vezes. Na quarta, diz Ulisses, a força do vento ergue muito a popa e
impele para o fundo a sua proa, “até que
o mar fechou-se sobre nós” (infin che 'l mar fu sovra noi
richiuso- v.142).
A montanha muito alta avistada no
hemisfério sul (nele acreditava-se no tempo de Dante que só houvesse água) é a do Purgatório, o ponto antípoda de Jerusalém, localizada no
hemisfério norte (7).
NOTAS
(1)
The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen
Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus.
Bantam Books,1982- p.381
(2) Dante Alighieri- “Obras
Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa,
introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- v.4, p. 71 e 83-84
(3) Dante Alighieri- “Inferno”- tradução
para o inglês e notas de Henry Wadsworth Longfellow. New York: The Modern Library,
2003, p. 283
(4) Musa, Mark-- "Inferno"
(tradução para o inglês, notas e comentários) in "World
Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton &
Company Inc., 1973, p. 950
(5) Dante Alighieri- “Obras
Completas”, op cit, v. 4, p. 46-47
(6)
Id., ib, p. 47
(7)
Musa, Mark-- "Inferno", op cit, p. 952
Anônimo- Naufrágio de Ulisses- 1390 |
W.Blake- A fossa de Ulisses |
Esse canto é belíssimo. Ainda mais com suas anotações.
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