segunda-feira, 21 de setembro de 2009

INFERNO- CANTO XXVI


Gustave Doré

            O Canto XXVI inicia com Dante dirigindo-se ironicamente a Florença, a quem ele manda exultar, pois, além da terra e do mar, seu nome se expande também pelo Inferno (ele acaba de constatar, conforme o Canto anterior, cinco nobres florentinos na fossa dos ladrões). Mas “se próximo ao amanhecer se sonha o vero” (Ma se presso al mattin del ver si sogna- v.7), conforme a crendice popular, logo cairão sobre sua cidade natal os males previstos, antes mencionados. Dante “como poeta do mundo secular” (Auerbach) incorpora tal crendice a seus versos, tornando-os assim mais próximos do gosto do povo de sua época (lembremo-no que ele sempre quis essa aproximação e tal desejo o levou a escrever a “Commedia” na linguagem falada pelo povo, e não no latim dos eruditos, o que é coerente com o engajamento de sua poesia).

            Os dois poetas prosseguem a sua árdua jornada, pelas escarpas e rochas, e Dante chega a um lugar, no alto do rochedo, em que pode ver o fundo da oitava fossa, que é a dos “conselheiros fraudulentos”. Dante compara então as chamas que ele viu brilharem lá embaixo com os vaga-lumes que o campônio vê do alto do monte, no fundo do vale, na noite de verão.
            A essa comparação segue-se logo outra, inspirada num episódio da Bíblia (II Reis, 2:23-24; 11-12) (1): as chamas são como aquelas que o profeta Eliseu viu quando seu mestre Elias subiu aos céus num carro de fogo:

E qual colui che si vengió com li orsi
vidi 'l carro d' Elia al dipartire,
quando i cavalli al cielo erti levorsi,

che nol potea sì con li occhi seguire,
ch' el vedesse altro che la fiamma sola,
sì come nuvoletta, in sù salire:

tal si move ciascuna per la gola
del fosso, ché nessuna mostra 'l furto,
e ogne fiamma un peccatore invola. (v.34-42)

E como aquele, vingado pelos ursos,/ viu o carro de Elias ao partir,/ quando os cavalos rumaram para o céu,
sem poder segui-lo com os olhos,/ não viu outra coisa senão uma só chama/ subir, como uma nuvenzinha:
assim se move cada chama pela garganta/ daquele fosso; nenhuma mostra o furto,/ e toda chama um pecador envolve.

            “Aquele vingado pelos ursos” é Eliseu. Segundo o Livro dos Reis, um grupo de  rapazinhos  que escarneceram dele foram mortos por uns ursos que saíram da floresta (Dante explora aqui a mitologia bíblica assim como mais à frente, neste mesmo Canto, vai explorar a mitologia greco-latina, um recurso recorrente na composição de seu grande poema).

            Cada chama aqui abrasa um pecador. Essa é a punição que os maus conselheiros recebem no Inferno. Ao se aproximar uma chama bipartida, ou “chama cornuda” (fiamma cornuta- v. 68), Dante quer dirigir-se a ela, mas Virgílio o impede, reservando para si tal papel, pois ali estão dois gregos, Ulisses e Diomedes, que “talvez se esquivem de te responder”. Segundo o Mons. Pinto de Campos, os gregos, conscientes de sua superioridade cultural, eram altivos e consideravam os outros povos bárbaros. Mas Virgílio, que os enaltecera na “Eneida”, estava em melhores condições do que Dante para manter tal diálogo...(2).

Amos Nattini
            Esses dois incorreram no pecado punido na oitava fossa porque:

1) durante a guerra de Troia, conceberam o estratagema do grande cavalo de madeira, que permitiu a entrada nesta cidade, à noite, dos soldados gregos nele escondidos, o que possibilitou a derrota dos troianos; isso implicou também na fuga de Eneas e seus companheiros de Troia, na Ásia Menor, para se estabelecerem na península itálica, onde mais tarde surgiria Roma e seu império. Nos versos abaixo Ulisses e Diomedes, encerrados na mesma  chama, lamentam  esse fato:

e dentro da la lor fiamma si geme
l’agguato del caval che fé la porta
onde uscì de’ Romani Il gentil seme (v. 58-60)

 “e dentro de sua chama eles lamentam/ a fraude do cavalo que foi a porta/ por onde saiu a gentil semente dos romanos

2) usaram de artifício para convencer Aquiles a ir com eles para a guerra, fazendo-o abandonar mulher e filho; em consequência disso, Deidamia, filha do rei Licomedes da ilha de Skyros, morreu, e “por ele ainda chora”; Ulisses disse a Aquiles que, segundo o oráculo, Troia não poderia ser tomada sem a sua participação mas não lhe disse que ele pereceria nessa guerra, conforme o mesmo oráculo (3);  e

3) furtaram (e levaram para Argos) o Paládio, uma estátua de Pallas Athena, a deusa protetora de Troia, que garantia a sua integridade enquanto permanecesse na cidade (4). O único verso que fala disso, deixando subentendido o que acabo de dizer, é o v.63: “e pelo Paládio suportam a pena” (e del Palladio pena vi si porta), o que mostra bem a concisão dos versos de Dante, nos quais, frequentemente, estão pressupostas as histórias que envolvem os personagens neles citados, míticos ou não, razão por que as notas são necessárias ao leitor moderno, para a melhor compreensão do poema.

            Virgílio quer saber daquela chama como foi o fim de Ulisses. A chama tremula e sua ponta, movendo-se como um língua, começa a falar (como disse alguém, a grande arte é insólita, bizarra). Ulisses então passa a relatar a sua história, a partir do v. 90, que se estende por todo o restante do Canto, até o seu último verso (v.142), consistindo num dos momentos mais belos do poema (esse relato de Ulisses não vem de Homero, para quem Ulisses retorna à ilha grega de Ítaca, aí falecendo. Dante segue outra tradição, conforme mostra o Mons. Pinto de Campos (5) ). Ulisses afirma que depois que fugiu da feiticeira Circe, nem o amor pelo filho e por Penélope nem a compaixão pelo pai

vincer potero dentro a me l' ardore
ch' i ' ebbi a divenir del mondo esperto
e de li vizi umani e del valore; (v.97-99)

puderam vencer dentro em mim o ardor/ que eu tive de ganhar experiência do mundo/ e dos humanos vícios e valor;

            Assim a ânsia por ampliar a sua experiência do mundo é mais forte que o apelo da vida tranquila que poderia levar no seio da família. Lança-se então ao mar (Mediterrâneo), com os poucos companheiros que nunca o abandonaram. Percorre as duas costas, de Espanha e de Marrocos, e chegam, já velhos e tardos, “àquela foz estreita/ onde Hercules estabeleceu os seus marcos(/.../ a quella foce stretta/ dov' Ercule segnò li suoi riguardi- v.107-108) (as Colunas de Hércules, ou seja, o Estreito de Gibraltar), limite para os navegadores do mundo antigo. Além desse ponto, ninguém ousava ir e enfrentar os perigos de um mar desconhecido e misterioso. Mas Ulisses faz uma convocação àqueles companheiros fiéis para fazerem a viagem temerária:

'O frati', dissi, 'che per cento milia
perigli siete giunti a l' occidente,
a questa tanto picciola vigília

d' i nostri sensi ch' è del rimanente
non vogliate negar l' esperïenza
di retro al sol, del mondo sanza gente.

Considerate la vostra semenza:
fatti non foste a viver come bruti,
ma per seguir virtute e canoscenza.' (v.112-120).

'Ó irmãos', disse, 'que após cem mil/ perigos alcançais o ocidente,/ a esta tão breve vigília
dos sentidos remanescente/ não negueis a experiência/ do mundo desabitado, além do sol.
Considerai a vossa semente:/ não fostes feitos para viver como brutos/ mas para buscar virtude
 e conhecimento'

            Ulisses expressa aqui uma concepção sábia quanto à finalidade de nossa vida, que é breve por natureza. Devemos vivê-la orientados pelo bem (pela virtute) e pela busca da verdade (ou do conhecimento, canoscenza, do mundo). Isso poderia servir de lema para os cientistas do mundo contemporâneo, esses “maus conselheiros”, que assessoraram aqueles que nos governam a desenvolver, por exemplo, armas nucleares, o que já afetou e poderá ainda afetar a vida de muitas pessoas, representando um risco permanente para a humanidade...                   

            Uma vez tomada a decisão temerária, os navegadores voltam então a proa da nau para o oeste e vão em frente: “dos remos fizemos asas no vôo louco” (de' remi facemmo ali al folle volo- v.125), sempre seguindo o lado esquerdo, i.e. costeando o continente africano (aquilo que os audazes navegadores portugueses fariam muito mais tarde. Aliás, há quem acredite que Ulisses foi o fundador de Lisboa (6), cujo antigo nome deriva do seu-- Olissipo). Ultrapassando o equador, à noite veem as estrelas do polo sul e já não mais as do polo norte. Após navegarem cinco meses avistam ao longe, exultantes, uma montanha muito alta. Mas a sua alegria dura pouco, pois dali vem um furacão que faz o barco girar três vezes. Na quarta, diz Ulisses, a força do vento ergue muito a popa e impele para o fundo a sua proa, “até que o mar fechou-se sobre nós” (infin che 'l mar fu sovra noi richiuso- v.142).

            A montanha muito alta avistada no hemisfério sul (nele acreditava-se no tempo de Dante que só houvesse água) é a do Purgatório, o ponto antípoda de Jerusalém, localizada no hemisfério norte (7).


NOTAS

(1) The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p.381
(2) Dante Alighieri- “Obras Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- v.4, p. 71 e 83-84
(3) Dante Alighieri- “Inferno”- tradução para o inglês e notas de Henry Wadsworth Longfellow. New York: The Modern Library,  2003, p. 283
(4) Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 950
(5) Dante Alighieri- “Obras Completas”, op cit, v. 4, p. 46-47
(6) Id., ib, p. 47
(7) Musa, Mark-- "Inferno", op cit, p. 952


Anônimo- Naufrágio de Ulisses- 1390


W.Blake- A fossa de Ulisses

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