Aqui se trata do último canto do "Inferno", que é formado por 34 cantos. Para começar a leitura desde o comentário ao Canto I, o visitante é convidado a ir para a primeira postagem, em 12 de março de 2009.
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Lúcifer- Francesco Scaramuzza |
Lúcifer- G.Doré |
O impacto visual, no caso, decorre principalmente da impressão causada pela figura imaginada de Lúcifer (ou Dite, como Virgílio o chama no v.20, nome dado na antiguidade a Plutão, rei do mundo subterrâneo) (1) que Dante enfim encontra na área mais recôndita do fundo do Inferno, no seu último círculo, chamada Judeca. Nessa área, cujo nome decorre naturalmente do nome do apóstolo que traiu Cristo, está reservada aos que traíram seus benfeitores, vale dizer aos que incorreram no mais grave dos pecados na opinião do poeta.
Lúcifer, com seu tamanho imenso, bem maior do que a dos gigantes
antes referidos (pois a altura de um gigante equivale apenas a uma parte de seu
braço), está encravado no gelo, até
o meio do peito: “O imperador do reino
doloroso/ saía fora do gelo do meio do peito para cima;” (Lo
‘mperador del doloroso regno/ da mezzo ‘l petto uscia fuor de la ghiaccia;)
(v.28-29). Ele,
que representa o Mal, possui uma cabeça com três faces, alusão, segundo os
comentaristas, à Santíssima Trindade, ou a Deus, que não é um só mas três-- o
Pai, o Filho e o Espírito Santo (2), contrapondo-se assim ao Bem. Suas três
bocas trituram, cada uma, um
pecador: na da frente, está Judas Iscariotes (com as pernas de fora, a cabeça
dentro da boca), que é o mais penalizado; nas laterais, Brutus e Cássio, que
traíram Júlio César (eles pendem da boca, em situação inversa, com a cabeça de
fora).
Con sei
occhi piangëa, e per tre menti
gocciava
‘l pianto e sanguinosa bava.
Da ogne
bocca dirompea co’ denti
un
peccatore, a guisa di maciulla,
sì che
tre ne facea così dolenti.
A quel
dinanzi il mordere era nulla
verso ‘l
graffiar, che tal volta la schiena
rimanea
de la pelle tutta brulla. (v.53-60)
Com seis olhos chorava, e por três queixos/
corriam lágrimas e baba sangrenta.
Dentro de cada boca triturava com os dentes/
um pecador, como um moinho,/ de modo a atormentar três ao mesmo tempo.
No da frente as mordidas eram nada,/
comparadas ao dano provocado pelas garras/ que lhe arrancava a pele das costas.
Como se vê, Judas sofria mais do que Cássio e
Brutus, este filho adotivo de César. A
referência aos dois lembra o Império Romano, que para Dante era sinônimo de poder temporal,
enquanto a Igreja representava o poder espiritual. Ambas as instituições
ocupavam um papel fundamental na visão de mundo de Dante.
Na Judeca existem ainda inúmeros outros pecadores,
encerrados dentro do gelo, nas posições mais diversas (em pé, sentados,
deitados etc). Dante os compara a palhinhas vistas dentro do vidro, uma outra
imagem também visualmente muito sugestiva.
Già era,
e con paura il metto in metro,
là dove
l’ombre tutte eran coperte,
e
trasparien come festuca in vetro. (v.10-12)
Já estava—e com medo o ponho em verso---/ lá
onde todas as sombras eram cobertas,/ e transpareciam como palhinhas no vidro.
O monstro tem grandes asas como as de morcego. A cada
face corresponde um par de asas, e o conjunto dá a impressão de um moinho de
vento. O bater dessas asas é a origem de um vento muito frio que gela o rio
Cocito e toda essa região do Inferno.
Lúcifer está
encravado no gelo, no centro da terra, porque foi aí que caíu quando despencou
do céu. Nos tempos (míticos) do início do mundo, anteriores às sociedades
humanas, ele era o mais belo dos anjos (Lúcifer significa o que transporta luz)
mas por soberba rebelou-se contra Deus, e sofreu assim as consequências dessa atitude.
Caiu de cabeça no hemisfério sul e toda a terra, por isso, fugiu dele (cf a
personificação), acumulando--se no hemisfério norte. O hemisfério sul passou a
ser constituído apenas de água, com a exceção da terra que ali permaneceu e
formou o monte do Purgatório (3).
Os dois poetas,
avançando em sua jornada, cruzam o centro da terra, apoiando-se inclusive nos pelos
do corpanzil do próprio Lúcifer, que nele está encravado. Num certo momento
Virgílio, carregando Dante, muda de posição, colocando a cabeça no lugar dos
pés. A partir desse ponto, passam para o hemisfério sul e Dante se admira depois
de ver Lúcifer, no alto, de pernas para cima...
No final do canto, Dante explica que no local mais
distante onde está Belzebu (outro nome de Lúcifer) há um regato que é reconhecido
não pela vista mas pelo som (Mandelbaum et al. afirmam que esse regato é
provavelmente o rio Letes, do esquecimento, que procede do Purgatório,
carregando para o Inferno os pecados lavados dos que lá estão) (4). Os poetas
seguem esse caminho escondido e saem afinal do Inferno por um buraco redondo
formado pelo próprio regato, quando então revêem as estrelas (os últimos versos
das três partes da “Commedia” fazem referência às estrelas):
G.Doré |
intrammo
a ritornar nel chiaro mondo;
e sanza
cura aver d’ alcun riposo,
salimmo
sù, el primo e io secondo,
tanto ch’
i’ vidi de le cose belle
che porta
‘l ciel, per um pertugio tondo.
E quindi
uscimmo a riveder le stelle. (v.133-139)
Meu guia e eu nesse caminho escondido/ entramos
para retornar ao claro mundo;/ e sem cuidar de ter algum repouso
subimos, ele adiante e eu atrás,/ até que vi
as coisas belas/ que o céu contém por um buraco redondo.
E dali saímos para rever as estrelas.
NOTAS
(1)
Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários)
in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New
York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 981.
(2)
Dante Alighieri- “Obras Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-
“Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto
de Campos- v.4, p. 441
(3)
Id., ib, p. 467, 477-478.
(4)
“The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse
translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo
with Laury Magnus. Bantam Books, 1982- p. 394