sábado, 29 de agosto de 2009

INFERNO- CANTO XV




A maior parte desse Canto trata do encontro entre Dante e seu mestre Brunetto Latini, que cumpre pena na terceira volta do sétimo círculo, segunda zona (a dos sodomitas, que praticaram atos de violência contra a lei da natureza). Seu castigo consiste em andar continuamente, sem poder parar, debaixo da chuva de fogo e sobre o areal em brasa.

Brunetto Latini era um famoso político e escritor florentino, autor, dentre outras obras, de uma espécie de enciclopédia em francês (“Trésor”) e de um poema didático em italiano (“Tesoretto”), conforme Mandelbaum et al. (1).

O Canto começa com Dante e Virgílio avançando sobre a margem de pedra do rio Flegetonte, protegidos daqueles tormentos. Encontram uma fileira de almas que se aproxima deles, em sentido contrário (andam-- e são castigados-- sobre um plano mais baixo, na altura de um homem, mais ou menos):
/.../ e ciascuna
ci riguardava come suol da sera

guardare uno altro sotto nuova luna;
e sì ver’ noi aguzzavan le ciglia
come ‘l vecchio sartor fa ne la cruna. (v.17-21)

(“/.../ cada uma/ nos olhava como alguém à noite/ olha um outro sob a lua nova;/ e para nos ver aguçavam a vista/ como faz o velho alfaiate ao buraco da agulha.”)

T.S. Eliot cita essa passagem para mostrar uma característica da linguagem de Dante, que é a de usar comparações ou símiles explanatórios, cujo objetivo é o de fazer o leitor ver bem uma cena, embora ela já tinha sido apresentada anteriormente. Segundo Eliot, “Dante's attempt is to make us see what he saw. He therefore employs very simple language, and very few metaphors, for allegory and metaphor do not get on well together”. (2).

Por outro lado, Jorge Wanderley afirma que o leitor de hoje poderá suspeitar nesses versos “algum vapor de emanação da esfera da sexualidade.” (3)

De repente, Dante é reconhecido por uma dessas almas, que o toma pela bainha e grita: “Que maravilha!”- v.24. Dante a princípio tem dificuldade em reconhecer o mestre, pelo seu “aspecto cozido” (cotto aspetto- v.26), dado o castigo que sofre, mas depois exclama: Siete voi qui, ser Brunetto? (“Vós aqui, Senhor Brunetto?”- v.30). Este vai então acompanhá-los por um certo tempo, deixando que a fila na qual vinha avançasse sem ele. Dante antes disso pediu-lhe para que parasse naquele ponto. Mas Brunetto lhe esclarece:
“O figliuol,” disse, “qual di questa greggia
s’arresta punto, giace poi cent’anni
sanz’arrostarsi quando ‘l foco il feggia.

Però va oltre: i’ti verrò a’panni; (v.37-40)

(“Ó filho”, disse, “aquele deste rebanho/ que para, jaz depois cem anos,/ sem sacudir-se quando o fogo o esquente./ Anda, pois; abaixo, mas perto, eu seguirei”).



Seguem assim, andando em planos diferentes, e Dante relata:
Io non osava scender de la strada
per andar par di lui; ma ‘l capo chino
tenea com’uom che reverente vada. (v. 43-45)

(“Eu não ousava descer da minha estrada,/ para andar na dele; mas mantinha a cabeça inclinada/ como o homem que vai reverente.”)

Essa atitude de Dante revela-se bem avançada para a época. Embora condenando o pecado, coerente com sua concepção católica do mundo -- tanto assim que reserva aos que incorreram nele uma parte do 7º círculo do Inferno – mostra-se reverente perante o pecador.

Brunetto quer saber porque Dante está ali, ainda vivo, e quem é o seu guia. E a resposta dele constitui uma síntese da razão de sua jornada, e da alegoria primeira:
“Là sù di sopra, in la vita serena,”
rispuos’io lui, “mi smarri’ in una valle,
avanti che l’età mia fosse piena.

Pur ier mattina le volsi le spalle:
questi m’apparve, tornand’io in quella,
e reducemi a ca per questo calle.” (v.49-54)

(“Lá em cima, na vida serena,”/ respondi-lhe, “me extraviei num vale/ antes que minha idade fosse plena./ Só ontem de manhã lhe dei as costas:/ quando me perdi de novo, este me apareceu,/ a fim de me levar para casa por este caminho.”)

A idade plena do homem seria por volta dos 35 anos. Em 1290, quando morreu Beatriz, Dante tinha 25 anos. Depois da morte da amada, ele extraviou-se do caminho reto, conforme observação do Mons. Pinto de Campos (4).

“Levar para casa” significa que o lar do ser humano é o Paraíso. Mas ele precisa, antes de chegar lá, passar pelo Inferno e Purgatório, quer dizer reconhecer a existência do pecado e arrepender-se dele, purificando-se. Hilário Franco Jr sintetiza o sentido de todo o poema nestes termos: “Em última análise, a passagem do Poeta pelo Inferno e pelo Purgatório foi uma dura penitência que lhe permitiu a purificação e assim a entrada no Paraíso, reduto do verdadeiro e eterno Amor” (5).

A seguir Brunetto faz este elogio a Dante:
Ed elli a me: “ Se tu segui tua stella,
non puoi fallire a glorïoso porto,
se ben m’accorsi ne la vita bella; (v.55-57)

(“E ele para mim: ‘Se seguires tua estrela,/ não falharás em alcançar glorioso porto,/ se bem te julguei na vida bela;/...”).

Vita bella realça o sentimento de nostalgia pelo nosso mundo, e a amargura de Brunetto por estar no Inferno. Ele faleceu em 1294, com cerca de 74 anos, quando Dante tinha 29.

Na sequência Dante critica duramente os florentinos, seus conterrâneos e de Brunetto, chamando-os de “ingrato povo e maligno” (ingrato popolo maligno- v.61), “gente cega,/ avara, invejosa e soberba” (... orbi;/ gent’ è avara, invidiosa e superba:- v.67-68). Por descenderem da antiga Fiesole (cidade etrusca, edificada sobre um monte, a três milhas de Florença) (6), destruída pelos romanos, esse povo “ainda mantém algo da rocha e da montanha” (e tiene ancor del monte e del macigno, - v. 63). É ainda Brunetto quem diz:
La tua fortuna tanto onor ti serba,
che l’una parte e l’altra avranno fame
di te; ma lungi fia dal becco l’erba.

Faccian le bestie fiesolane strame
di lor medesme, e non tocchin la pianta,
s’alcuna surge ancora in lor letame,

in cui riviva la sementa santa
di que’ Roman che vi rimaser quando
fu fatto il nido di malizia tanta.” (v.70-78)

(“Tua fortuna tanta honra te reserva/ que um partido e o outro terão fome/ de ti (os Guelfos Negros e Brancos; a estes Dante esteve associado); mas fique a erva longe do bode./ Façam as bestas de Fiesole forragem/ delas mesmas, e não toquem na planta,/ se alguma surge ainda em seu estrume,/ na qual reviva a semente santa/ dos romanos que aí ficaram quando/ foi feito o ninho de tanta malícia.”).

Essa planta seria o próprio Dante, que segundo os comentaristas julgava descender desses romanos, e não dos habitantes da antiga Fiesole, de quem também descendia a população de Florença.

O poeta então responde referindo-se à “cara e boa imagem paterna” (la cara e buona imagine paterna – v.83) de Brunetto e à sua gratidão, por ele lhe ensinar “como o homem se torna eterno” (come l’uom s’etterna- v.85). Ele vai guardar as palavras ditas sobre o seu futuro, e juntamente com outras predições (de Ciacco no Canto VI, v.64 e seg., e de Farinata no Canto X, v.79 e seg.), as levará para Beatriz, se puder chegar até ela:
Ciò che narrate di mio corso scrivo,
e serbolo a chiosar con altro testo
a donna che saprà, s’a lei arrivo. (v.88-90)

(“O que dizeis de meu percurso, escrevo;/ guardo-o com outro texto, para o comentário/ de sábia dama, se eu a alcançar.”)

No final, Dante pergunta a Brunetto que identifique seus companheiros. Ele destaca aí dois tipos de pessoas—os clérigos e os grandes literatos, “todos maculados por um mesmo pecado no mundo” ( d’un peccatgo medesmo al mondo lerci- v. 108), i.e. a pederastia. De fato, só cita três pessoas, preferindo calar-se quanto ao restante. Cita Prisciano de Cesarea (famoso gramático latino, c. 500 A.D.), Francesco d’Accorso (1225-1293, célebre jurista, professor de Direito nas universidades de Bologna e Oxford) e um bispo de Florença (identificado como Andrea de’ Mozzi), que o papa, transferiu, pela sua conduta escandalosa, do (rio) Arno ao (rio) Bacchiglione, “onde deixou os nervos voltados para o mal ” (dove lasciò li mal protesi nervi- v.114), quer dizer, morreu (segundo Ciardi (7), além de outros comentaristas, a expressão mal protesi nerve contém um intraduzível jogo de palavras, pois nervi pode ser traduzido como o “órgão sexual masculino” e protesi como “erecto”, orientado para propósitos antinaturais (mal); mas também nervi pode ser “nervos” e mal protesi “voltados para o mal”).

Pressentindo a aproximação de outra gente (também sodomitas, como se verá a seguir), Brunetto se despede de Dante recomendando-lhe o seu livro “Tesoro”, pelo qual quer ser lembrado:
Gente vien con la quale esser non deggio.
Sieti raccomandato il mio Tesoro,
nel qual io vivo ancora, e più non cheggio. (v.118-120)

(“Vem gente com a qual não devo estar./ Te recomendo o meu 'Tesoro',/ no qual eu vivo ainda, e mais não almejo”)

Note-se aqui a recorrência da importância atribuída pelos mortos à sua obra, como forma de fugir ao anonimato da morte, de vencê-la, revelando a ânsia bem humana pela imortalidade. Aliás, já vimos acima que Dante é grato a Brunetto por este ter lhe ensinado come l’uom s’etterna- v.85.

Depois Brunetto dispara numa corrida para juntar-se novamente ao seu bando, e Dante, vendo-o, compara-o aos corredores de uma competição que se realizava nos campos de Verona no primeiro domingo da Quaresma, cujo prêmio era uma peça de pano verde: “/.../ e desses corredores, ele parecia/ ser o que vence, não o que perde” (/.../ e parve di costoro/ quelli che vince, non colui che perde.- v.124). T.S.Eliot, no estudo já citado, destaca essa passagem, assim como outra no Canto XXVI, de Ulisses, insólitas e impressivas, para mostrar como a grande poesia tem essa capacidade de nos surpreender: “/../ both have the quality of surprise which Poe declared to be essential to poetry” (8).

NOTAS

(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 368
(2) T.S.Eliot- “Dante”. London: Faber and Faber, 1966, p.16-17
(3) Dante Alighieri- “Inferno”.Tradução e notas de Jorge Wanderley. Rio de Janeiro: Record, 2004- p. 215.
(4) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-”Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 120-121
(5) Hilário Franco Jr.- “Dante: o poeta do absoluto”. S.Paulo: Brasiliense, 1986- p.56
(6) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d- op cit, p.122
(7) John Ciardi- “Inferno” (tradução e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition. W.W.Norton & Company, p. 829
(8) T.S.Eliot- “Dante”- op cit, p.21


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