sábado, 29 de agosto de 2009

INFERNO- CANTO XVIII


Malebolge- Botticelli

Neste Canto, os poetas iniciam a visita ao oitavo círculo, chamado por Dante Malebolge, que significa “bolsas do mal”. São dez fossas ou valas circulares e concêntricas, em torno de um poço central (local do nono e último círculo). Essas dez valas, situadas descendentemente entre tal poço e paredes de pedra, são atravessadas por arestas, ou “pontes”, que unem todas elas (precariamente na sexta vala, pois estão ali em ruínas por causa do terremoto que ocorreu após a morte de Cristo, como se verá adiante) (1). É por aí que os poetas avançam em sua jornada em direção ao fundo do Inferno.

No Malebolge, que abrange treze cantos (Cantos XVIII a XXX), estão diversos tipos de fraudulentos, os que lograram os outros para alcançar os seus propósitos mesquinhos, geralmente associados ao dinheiro. O Canto XVIII trata das duas valas iniciais, a primeira reservada aos rufiões e sedutores e a segunda aos bajuladores.



Os poetas desmontam de Gerion, e Dante observa os que são castigados na primeira vala, desnudos, açoitados pelos demônios, uns indo e outros vindo (Dante os compara à multidão de peregrinos em Roma em busca de indulgências, no ano do Jubileu de 1300: por um lado da ponte iam os que tinham vista para o Castelo (de Sant’Angelo) e rumavam para S.Pedro, e por outro, em direção oposta, os que vinham dali, “em direção ao Monte” (Giordano, provavelmente) (2). Diz Dante, sobre a pena imposta a esses condenados:
Di qua, di là, su per lo sasso tetro
vidi demon cornuti con gran ferze,
che li battien crudelmente di retro. (v.34-36)

(“Aqui e ali, pelo rochedo tétrico,/ vi demônios cornudos, com grandes chicotes/ que lhes açoitavam cruelmente por trás.” )

Os demônios, segundo Ciardi, representam a natureza viciosa dos rufiões e sedutores e o fato de serem cornudos pode sugerir a traição dos amantes (3). Também para o Mons. Pinto de Campos os cornos “Significam os efeitos do vício punido nessa fossa” (4).

As chicotadas os faziam avançar continuamente. Dante então reconhece um deles. Já o viu antes, e expressa essa idéia de uma forma peculiar no v. 42, em que intencionalmente confunde os sentidos da visão e do paladar: “Já de ver este não passei jejum” (Già di veder costui non son digiuno”). Trata-se de Venedico Caccianemico, um bolonhês, ”que levou Ghisolabella (sua irmã) a fazer a vontade do Marquês” (d'Este) (v. 55-56 ), quer dizer serviu de alcoviteiro da própria irmã. E Dante aproveita a oportunidade para fazer aqui uma crítica mais geral aos bolonheses, quando Venedico diz:
E non pur io qui piango bolognese;
anzi n’è questo loco tanto pieno,
che tante lingue non son ora apprese

a dicer ‘sipa’ tra Sàvena e Reno; (v.58-61)

(”Não sou o único bolonhês que chora aqui;/ este lugar é tão cheio de nós/ que tanta língua não vês dizer sipa (“sim”, em seu dialeto)/ entre Savena e Reno.”) (Esses rios servem de limites para a circunscrição de Bolonha).

Mas “Enquanto falava, um demônio o golpeou/ com seu chicote, e disse: ‘Fora, rufião!/ aqui não há mulheres que possas vender!’” :
Così parlando il percosse un demonio
de la sua scurïada, e disse: “Via,
ruffian! qui non son femmine da conio.” (v. 64-66)

Depois, na “ponte”, eles olham a fileira dos que se aproximavam do outro lado, também impulsionados pelo chicote. Identificam Jasão, o líder dos argonautas da mitologia clássica, que roubou dos cólquidas o velocino de ouro. Dante então faz referências aos fatos da vida desse sedutor, que engravidou e abandonou a jovem Hipsípile, filha do rei da ilha de Lemnos, e se envolveu também com Medéia, a qual, sendo rejeitada, matou por vingança os dois filhos que tivera com ele (5). Jasão está entre outros sedutores: “Com ele vai quem de tal modo engana” (Con lui sen va chi da tal parte inganna; v 97).

Na sequência aproximam-se da segunda vala, ouvindo os condenados dali bufar e bater em si mesmos com as palmas das mãos, em ambiente tão repugnante “que aos olhos e nariz fazia guerra” (che con li occhi e col naso facea zuffa- v. 108). Bem no seu fundo estão os bajuladores, imersos nas fezes. Diz Dante:
Quivi venimmo; e quindi giù nel fosso
vidi gente attuffata in uno sterco
che da li uman privadi parea mosso.

E mentre ch’ío là giù con l’occhio cerco,
vidi un col capo sì di merda lordo,
che non parëa s’ era laico o cherco. (v. 112-117)

(”Ali chegamos; e lá no fosso/ vi gente chafurdada em tal esterco/ que parecia provir de privadas humanas./ E enquanto o fundo com os olhos eu investigava,/ vi um com a cabeça tão suja de merda/ que não distinguia se era leigo ou clérigo. “).




Dante reconhece um dos condenados: é Alessio Interminei da Lucca, o qual esmurrando a própria cabeça afirma que as suas lisonjas o lançaram ali. O Canto conclui com Virgílio sugerindo a Dante olhar a bajuladora Taís mais adiante
sì che la faccia ben con l’occhio attinghe

di quella sozza e scapigliata fante
che là si graffia con l’unghie merdose,
e or s’accoscia e ora è in piedi stante.

Taïde è, la puttana /.../ (v.129-133)

(“de modo que atinjas com os olhos a face/ daquela suja e desgrenhada rameira/ que lá se arranha com suas unhas cheias de merda,/ e ora se agacha, ora se levanta./ É Taís, a puta /.../)”(segundo os comentaristas, ela é uma cortesã na peça “Eunuco” de Terêncio (6) )

Como se vê, a linguagem de Dante também pode ser chula, incorporando os palavrões usados pelo povo, o que reflete sua concepção original a respeito da obra literária, que o diferencia dos clássicos antigos. Tal  concepção o levou a compor a “Comédia” no italiano popular em vez do latim erudito e a adotar aí uma linguagem nem sempre elevada mas correspondente ao contexto em que se situa a ação do poema.



NOTAS

(1) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 203
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 371
(3) John Ciardi- “Inferno” (tradução e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition. W.W.Norton & Company, p. 838
(4) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d., op cit, p. 224
(5) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 371-372.
(6) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 372; cf também Dante Alighieri- “Obras Completas, v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d., op cit, p. 229-230.












INFERNO- CANTO XVII



O Canto XVII é todo dominado pela figura impressiva de Gerion, um monstro da mitologia clássica (morto por Hércules), cujas características físicas são alteradas por Dante para servir aos seus propósitos. Como em outras situações, um monstro aparece na transição de um círculo infernal para outro, apresentando caráter simbólico, relacionado à natureza desse novo círculo, que no caso é o oitavo, dos fraudulentos, apresentados sob dez formas diferentes. Como Caronte, no início dessa jornada pelo Inferno, Gerion transportará os dois poetas para o próximo círculo (o chamado “Malebolge”).

Gerion é uma alegoria da fraude. A descrição de sua aparência física abrange os primeiros vinte e sete versos do Canto. Ele é a “sórdida imagem da fraude” (sozza imagine di froda- v.7). Tem o rosto de um homem justo, mas seu corpo é como o da serpente. É um “monstro de cauda aguçada” (la fiera con la coda aguzza- v.1) que, passando por montes e destruindo muros e armas, contamina o mundo todo com seu mau cheiro (che tutto ‘l mondo appuzza- v.3), vale dizer a fraude está presente em toda parte. Tem duas patas, com pelos até as axilas. Os versos 26-27 dizem que a ponta de sua cauda é bifurcada e venenosa, como a do escorpião. As referências explícitas à serpente e ao escorpião indicam o caráter nocivo e traiçoeiro da fraude, que prejudica o ser humano e o condena ao Inferno.



Virgílio inicia o Canto fornecendo a Dante essas informações sobre Gerion. Ao seu chamado, o monstro pousa, com a cabeça e o busto, na margem de pedra ao lado do areal, enquanto sua cauda estremecia sobre o precipício, ensejando ao autor da "Comédia" comparar essa situação com barcos e com o castor em região germânica nestes dois símiles:
Come talvolta stanno a riva i burchi,
che parte sono in acqua e parte in terra,
e come là tra li Tedeschi lurchi

lo bivero s’assetta a far sua guerra, (v.19-22)

(“como barcos que na praia às vezes ficam/ com parte em terra e parte na água”; ou “como lá entre os alemães glutões/ o castor se põe a fazer a sua guerra”). De acordo com Mandelbaum et al., acreditava-se então que o castor, à beira do rio, atraía os peixes agitando a cauda na água que desse modo produzia um líquido enganoso. Assim também Gerion, símbolo da malícia e do logro, espetava com a cauda os condenados que transporta para o 8º círculo (1).

Dante faz ainda outra comparação, a dos desenhos (“nós e rodelas”) pintados nas costas e peito do monstro com os dos tecidos tártaros e turcos, famosos na Idade Média, ou com as telas de Aracne, a hábil tecelã transformada em aranha pela arrogância de ter desafiado Minerva (2). Tais comparações certamente têm o propósito de mostrar como a fraude esconde a sua vilania intrínseca por uma aparência agradável aos sentidos humanos.

Enquanto Virgílio vai parlamentar com a besta, “para que nos conceda seus ombros fortes” (che ne conceda i suoi omeri forti- v. 42), i.e. sirva de meio de transporte, Dante, que avistara “um pouco mais distante, sobre a areia,/ gente sentada perto do abismo” (poco più oltre veggio in su la rena/ gente seder propinqua al loco scemo- v.35-36) tem a autorização do seu guia para ter com esses condenados uma “conversação curta”. Este é o relato de Dante sobre eles, os usurários, que praticaram violência contra a arte (3):
Per li occhi fora scoppiava lor duolo;
di qua, di là soccorrien con le mani
quando a’ vapori, e quando al caldo suolo:

non altrimente fan di state i cani
or col ceffo or col piè, quando son morsi
o da pulci o da mosche o da tafani. (v.46-51)

(“Pelos olhos vertiam sua dor;/ deste lado, daquele, com as mãos se defendiam/ às vezes das chamas, às vezes do solo quente:/ não outra coisa fazem os cães no verão,/ com o focinho ou a pata, quando incomodados/ pelas pulgas, moscas ou moscardos” (temos aqui uma outra comparação).

Dante não reconhece ninguém ali. Mas constata
che dal collo a ciascun pendea una tasca
ch’avea certo colore e certo segno,
e quindi par che ‘l loro occhio si pasca. (v. 55-57)

(“que do pescoço de cada um pendia uma bolsa/ que tinha certa cor e certo emblema,/ e seus olhos pareciam deleitar-se em contemplá-la”).

Na realidade, pelas características heráldicas desses emblemas, Dante está citando usurários de famílias nobres da época (a identificação das famílias apóia-se nas notas de Mandelbaum et al (4) ). Inicia referindo-se a uma bolsa amarela com um leão em azul (família Gianfigliazzi, de Florença), depois a uma “rubra como sangue” (come sangue rossa- v.62) com um alvo ganso (família Obriachi, também florentina). Um dos condenados, cuja bolsa, pequena e branca, tinha inscrita “uma porca azul e prenha” (una scrofa azzurra e grossa- v.64) (família Scrovegni, de Pádua), pergunta a Dante, admirado de alguém vivo estar ali: “Que fazes nesse fosso?” (Che fai tu in questa fossa?- v.66). Esse usurário, que afirma ser um paduano entre florentinos, afirma que aguarda “seu vizinho Vitaliano” (Vitaliano del Dente, de Pádua, magistrado de Vicenza e Pádua). O paduano, de acordo com nota de Mandelbaum et al. (5), é provavelmente Reginaldo Scrovegni, cujo filho, para expiar o pecado do pai, erigiu uma capela em Padova, onde Giotto pintou seus afrescos. A propósito, segundo o Mons. Pinto de Campos (6), Giotto e Dante eram amigos e o poeta visitou o artista quando pintava aquela capela. Os usurários florentinos aguardam a vinda para o seu círculo infernal do “cavaleiro soberano,/ que trará a bolsa com três bodes” (cavalier sovrano,/ che recherà la tasca con tre becchi!” – v.72-73). Esta é uma referência irônica de Dante ao importante banqueiro Giovanni Buiamonte dei Becchi, de Florença, cuja cidade, além de considerá-lo “cavalier”, prestigiou esse usurário com elevados cargos públicos, conforme as notas de Mandelbaum et al já referidas. Que diferença do tratamento que Florença concedeu ao poeta! Dante conclui a passagem com esta última impressão do paduano, sedento, pelas condições de seu suplício (pois como vimos os usurários estão sentados no areal sob flocos de fogo): “Aqui torceu a boca e pôs para fora/ a língua como o boi que a venta lambe” (Qui distorse la bocca e di fuor trasse/ la lingua, come bue che ‘l naso lecchi- v.74-75).

Chama a atenção a frequência com que são mencionados animais neste Canto. Acabou de citar-se o boi. Antes, na referência aos brasões, citaram-se leão, ganso, porca e bode. Antes ainda, cães, pulgas, moscas e moscardos. Quando se descreveu Gerion, mencionaram-se serpente e escorpião. No final do Canto, citam-se enguia e falcão. Certamente isso não ocorre por acaso. Dante deve estar querendo dar ênfase ao fato de que o usurário se desumaniza, se embrutece no exercício da sua atividade condenável, distante de uma prática verdadeiramente humana e produtiva (a “arte”). Ele, ao anular a razão pela sua obsessão monetária, reduz-se à condição da besta. Aliás o 7º círculo, do qual os dois poetas estão saindo e no qual o usurário é o último representante destacado, é o círculo, como vimos, da violência e bestialidade, dos violentos contra o próximo, contra si mesmo e contra Deus, sendo que estes últimos abrangem os blasfemadores, sodomitas e usurários. Enquanto os sodomitas ofendem Deus por infringir as leis da natureza, os usurários O ofendem contrapondo-se à arte.

Dante retorna para junto de Virgílio, e o encontra já montado na garupa da besta. O autor da “Eneida” lhe diz:
/.../ “Or sie forte e ardito.

Omai si scende per sì fatte scale;
monta dinanzi, ch’i’ voglio esser mezzo,
sì che la coda non possa far male.” (v.81-84)

(“Agora, sê forte e ousado./ Desceremos por esta espécie de escada;/ monta na frente, que eu fico no meio, / para que a cauda não te faça mal.”)

Virgílio ordena então que Gerion parta, movendo-se com cuidado: “Pensa na nova carga que tu levas.” (pensa la nova soma che tu hai- v.99). Carga diferente da habitualmente transportada por Gerion, pois Dante ainda está vivo. Este compara seu medo ao de Faetonte, quando perdeu o controle das rédeas (do carro do Sol, que Apolo, seu pai, lhe dera), ameaçando incendiar a Terra, e ao de Ícaro, quando sentiu suas asas serem derretidas pelo Sol. Ao passar sobre a cachoeira do Flegetonte, Dante olha para baixo e fica mais receoso ainda de cair, ao ver fogos e ouvir lamentos. Ao descer e girar, viu “grandes tormentos/ que ficavam mais pertos em diversos cantos” (gran mali / che s’appressavan da diversi canti- v.125-126).

No final, Gerion deixa os dois poetas no fundo, ao pé da rocha escarpada. Ele é comparado ao falcão, que após voar longo tempo sem abater nenhum pássaro, pousa ressentido longe do falcoeiro.

Nos dois últimos versos, Dante diz: (Gerion) “livre de nossas pessoas,/ se disparou como da corda a seta.” (e, discarcate le nostre persone,/ si dileguò come da corda cocca- v. 135-136).

NOTAS

(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 370
(2) Id., ib, p. 370.
(3) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-”Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 171
(4) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”- op cit, p. 370
(5) Id., ib., p. 370
(6) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- op cit, p. 188

Gerion por Dalí




INFERNO- CANTO XVI





Já ouvindo o som das águas do Flegetonte que se precipitam no próximo círculo (o 8º), Dante e Virgílio veem aproximar-se deles três sombras. Afastando-se do grupo em que vinham, mas continuando debaixo da chuva de fogo, elas se dirigem aos poetas. Reconhecem, pela indumentária (o luco- “uma túnica inteiriça, que se afivelava entre o peito e o pescoço”-- e o capuz) (1), que Dante também era de Florença, a sua “terra perversa” (terra prava- v.9), e pedem para que ele se detenha. Dante se admira (e se condói) das chagas que vê em seu corpo, causadas pelas chamas.

Virgílio recomenda consideração para com eles: ... “Or aspetta”,/ disse, “a costor si vuole esser cortese.” (“Agora espera”, / disse, “a estes devemos demonstrar cortesia”- v.14-15). Se não fosse o fogo, diz Dante-autor pela boca de Virgílio, caberia ao discípulo deste ir ao encontro desses notáveis florentinos, e não o inverso (isso revela, mais uma vez, a reverência que Dante manifesta pelos pederastas conterrâneos, demonstrando não ser preconcebido, apesar de católico e homem da Idade Média).

Junto dos poetas, as três sombras formam uma roda, que se mantém girando, embora sem sair daquele lugar, pois os sodomitas devem movimentar-se continuamente, como vimos no Canto anterior. Dante-autor compara-os nesse movimento a lutadores se estudando, antes de se atracarem (esta é a imagem mais forte do Canto, inclusive pelas suas conotações eróticas):
Qual sogliono i campion far nudi e unti,
avvisando lor presa e lor vantaggio,
prima che sien tra lor battuti e punti,

così rotando, ciascuno il visaggio
drizzava a me, sì che ‘n contraro il collo
faceva ai piè continüo vïaggio. (v.22- 27)

(“Como fazem os lutadores, nus e untados,/ medindo bem a presa e a vantagem,/ antes de começarem os golpes,/ assim giravam, cada um voltando o rosto/ para mim, de modo que o colo/ fazia sempre viagem contrária aos pés”).

Na sequência, uma das sombras fala, dizendo que se a miséria do seu sofrimento e o “aspecto negro e queimado” (decorrente de sua punição ) só provocam desdém, pelo menos que a fama deles estimule o ânimo de Dante a dizer quem é:
la fama nostra il tuo animo pieghi
a dirne chi tu se’, che i vivi piedi
così sicuro per lo ‘nferno freghi. (v.31-33)

(”possa nossa fama inclinar teu ânimo/ a dizer-nos quem tu és, que com vivos pés/ assim seguro pelo inferno andas”).

Há uma inversão aqui (que deve ser intencional) quanto ao diálogo entre o protagonista e seus interlocutores: normalmente é Dante que quer saber quem são as pessoas que encontra no Inferno...

Esse que falou é Jacopo Rusticucci. Segundo Mandelbaum et al, ele se envolveu em assuntos políticos e diplomáticos na Florença de seu tempo (2). Além de identificar-se, Jacopo identifica também os outros dois, politicamente vinculados aos guelfos, como ele próprio. O que vai na sua frente é Guido Guerra, que “em vida/ fez muito com bom senso e com a espada”: (/.../ in sua vita/ fece col senno assai e con la spada- v.38-39). De acordo com aqueles comentaristas antes citados, Guido liderou várias ações militares contra os guibelinos e era neto de uma senhora dotada das antigas virtudes florentinas, por isso chamada a “boa Gualdrada”. O outro condenado, que segue atrás, é Tegghiaio Aldobrandi, ex-dirigente do governo de Arezzo, que desaconselhara, juntamente com Guido, a investida contra Siena em 1260, a qual resultou na batalha de Montaperti, na qual os guelfos foram derrotados. Isso permitiu aos guibelinos retornarem ao poder em Florença. Os três estão ainda naquela mesma área do sétimo círculo do Inferno reservada aos sodomitas. Jacopo afirma no final dessa sua primeira intervenção:
E io, che posto son con loro in croce,
Iacopo Rusticucci fui, e certo
la fiera moglie più ch’altro mi nuoce. (v.43-45)

(“E eu, que com eles estou posto na cruz,/ Jacopo Rusticucci fui, e certamente/ minha feroz mulher mais que ninguém me destruiu.”)

Dante após referir-se à fama dos “nomes honrados” (onorati nomi- v.59) dos três, explica-lhes também o seu itinerário, usando estas metáforas:
Lascio lo fele e vo per dolci pomi
promessi a me per lo verace duca;
ma ‘nfino al centro pria convien ch’i’ tomi. (v.61-63)

(“Deixo o fel e vou para os doces pomos/ a mim prometidos pelo guia veraz;/ mas antes convém que eu desça ao centro (do Inferno)”).

Dante era filho da pequena nobreza empobrecida (3), daí seu ressentimento contra os novos tempos, da ascensão da burguesia no âmbito das transformações econômicas que se processavam então na Europa do final da Idade Média e do capitalismo em formação. Para ele, Florença no passado apresentava certas características que haviam se perdido. À pergunta que Jacopo Rusticucci lhe faz nos versos 67-69:
cortesia e valor dì se dimora
ne la nostra città sì come suole,
o se del tutto se n' è gita fora
(“mas diz se cortesia e valor ainda moram/ na nossa cidade como costumavam,/ ou se de todo foram embora dela”, Dante exclama:
“La gente nuova e i sùbiti guadagni
orgoglio e dismisura han generata,
Fiorenza, in te, sì che tu già ten piagni.” (v. 73-75)

(“A gente nova e os súbitos ganhos/ orgulho e excessos em ti originaram,/ ó Florença, que por isso já choras.”)

Ao se despedirem, as três sombras pedem para que Dante, ao retornar ao mundo, lembre deles junto aos vivos, questão que é recorrente no poema. Nos diálogos de Dante com os mortos-- que encontra ao longo de sua jornada-- é constante a preocupação deles com sua memória no mundo dos vivos, expressando assim o desejo de imortalidade bem próprio da condição humana.

As sombras desaparecem rapidamente, num tempo menor, diz Dante, que se leva para dizer “amém” (aliás, essa é mais uma característica da linguagem do poema: o uso que faz de elementos extraídos da tradição religiosa; neste mesmo Canto há um outro exemplo, citado acima, quando Jacopo diz, para indicar os seus tormentos, e o de seus companheiros: “E eu, que com eles estou posto na cruz”- v. 43.

Virgílio e Dante estão agora bem próximos da queda d’água do Flegetonte, e o ressoar dessa “água escura” (acqua tinta- v.104) caindo no precipício é ensurdecedor. O poeta a compara com a que “ribomba em San Benedetto de l' Alpe”- v.100-101), nos Apeninos, após descrever o trajeto do rio em que ocorre, mencionando várias referências topográficas locais (aliás, essa é outra característica do poema: a de invocar determinada paisagem européia, ou melhor italiana, para dar uma ideia aproximada de como é aquela que está sendo observada no mundo dos mortos).

Dante trazia na cintura uma corda (o que lembra o hábito franciscano), com a qual pensara “prender a onça de pele pintalgada” (prender la lonza a la pelle dipinta- v.108). De acordo com a tradição, ele pertencia à Ordem Terceira de S.Francisco. Assim entrara nela para combater a luxúria, simbolizada pela onça, conforme vimos no Canto I.

O poeta florentino retira a corda de si e a entrega a Virgílio, que a lança para o fundo do abismo. Ele pensa que isso deve ser algum sinal. E de fato o é, pois servirá para chamar Gerion, símbolo da fraude (cf. o próximo Canto). Nessa associação do cordão franciscano à fraude está implícita uma crítica a essa ordem religiosa no tempo de Dante, e a ele próprio, pois na interpretação do Mons. Pinto de Campos estava incorrendo em hipocrisia ao usar o cordão sem ser religioso, ou sem observar a dupla obrigação que lhe
é inerente, definida por S. Francisco: a de usar o hábito e a de cumprir certos deveres como humildade, mortificação da carne etc. Mas Virgílio (ou a razão) arremessando a corda para o fundo do precipício fazia Dante entrar no 8º círculo (o Malebolge, com as suas diversas modalidades de fraude) livre da hipocrisia, avançando em seu processo de purificação (4).

Após lançar a corda Virgílio diz a Dante, que não sabe o que acontecerá na sequência:
El disse a me: “Tosto verrà di sovra
ciò ch' io attendo e che il tuo pensier sogna;
tosto convien ch' al tuo viso si scovra.” (v.121-123)

(“E ele a mim: 'Logo tu verás/ o que eu espero e o teu pensamento sonha;/ logo convém que ao teu olhar se revele'.”)

O mistério sempre está presente nesses versos da “Comédia”, o que lhes atribui uma estranheza cativante. Relaciona-se naturalmente ao mistério metafísico, ou da condição humana. Mas também relaciona-se à própria narrativa, onde há suspense, que renova o interesse do leitor.

O que Dante vê então, se contar, parece mentira. Dirigindo-se diretamente ao leitor, ele afirma que não pode calar a respeito, embora talvez fosse mais conveniente fazê-lo, para não passar vergonha (ou passar por mentiroso):
Sempre a quel ver c’ha faccia di menzogna
de’ l’uom chiuder le labbra fin ch’el puote,
però che sanza colpa fa vergogna; (v.124-126)

(“Sempre à verdade com cara de mentira/ deve o homem fechar os lábios enquanto possa,/ pois passa vergonha, embora sem culpa;”)

Ele afirma então que vê surgir nadando no espaço, vindo do fundo do precipício em direção a eles, uma figura insólita, a qual é comparada a um mergulhador, que depois de liberar a âncora no fundo do mar, retorna à superfície. Nesse relato, Dante afirma:
ch’i’ vidi per quell’ aere grosso e scuro
venir notando una figura in suso,
maravigliosa ad ogne cor sicuro, (v.130-132)

(“que eu vi naquele ar grosso e escuro/ vir nadando uma figura que subia, / assombrando o coração mais duro”).

Trata-se de Gerion, como se verá no Canto a seguir.


NOTAS

(1) Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”-tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 150
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 369
(3) Hilário Franco Jr- “Dante: o poeta do absoluto”. S.Paulo: Brasiliense, 1986- p. 14
(4) Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- op cit, p.131-133

INFERNO- CANTO XV




A maior parte desse Canto trata do encontro entre Dante e seu mestre Brunetto Latini, que cumpre pena na terceira volta do sétimo círculo, segunda zona (a dos sodomitas, que praticaram atos de violência contra a lei da natureza). Seu castigo consiste em andar continuamente, sem poder parar, debaixo da chuva de fogo e sobre o areal em brasa.

Brunetto Latini era um famoso político e escritor florentino, autor, dentre outras obras, de uma espécie de enciclopédia em francês (“Trésor”) e de um poema didático em italiano (“Tesoretto”), conforme Mandelbaum et al. (1).

O Canto começa com Dante e Virgílio avançando sobre a margem de pedra do rio Flegetonte, protegidos daqueles tormentos. Encontram uma fileira de almas que se aproxima deles, em sentido contrário (andam-- e são castigados-- sobre um plano mais baixo, na altura de um homem, mais ou menos):
/.../ e ciascuna
ci riguardava come suol da sera

guardare uno altro sotto nuova luna;
e sì ver’ noi aguzzavan le ciglia
come ‘l vecchio sartor fa ne la cruna. (v.17-21)

(“/.../ cada uma/ nos olhava como alguém à noite/ olha um outro sob a lua nova;/ e para nos ver aguçavam a vista/ como faz o velho alfaiate ao buraco da agulha.”)

T.S. Eliot cita essa passagem para mostrar uma característica da linguagem de Dante, que é a de usar comparações ou símiles explanatórios, cujo objetivo é o de fazer o leitor ver bem uma cena, embora ela já tinha sido apresentada anteriormente. Segundo Eliot, “Dante's attempt is to make us see what he saw. He therefore employs very simple language, and very few metaphors, for allegory and metaphor do not get on well together”. (2).

Por outro lado, Jorge Wanderley afirma que o leitor de hoje poderá suspeitar nesses versos “algum vapor de emanação da esfera da sexualidade.” (3)

De repente, Dante é reconhecido por uma dessas almas, que o toma pela bainha e grita: “Que maravilha!”- v.24. Dante a princípio tem dificuldade em reconhecer o mestre, pelo seu “aspecto cozido” (cotto aspetto- v.26), dado o castigo que sofre, mas depois exclama: Siete voi qui, ser Brunetto? (“Vós aqui, Senhor Brunetto?”- v.30). Este vai então acompanhá-los por um certo tempo, deixando que a fila na qual vinha avançasse sem ele. Dante antes disso pediu-lhe para que parasse naquele ponto. Mas Brunetto lhe esclarece:
“O figliuol,” disse, “qual di questa greggia
s’arresta punto, giace poi cent’anni
sanz’arrostarsi quando ‘l foco il feggia.

Però va oltre: i’ti verrò a’panni; (v.37-40)

(“Ó filho”, disse, “aquele deste rebanho/ que para, jaz depois cem anos,/ sem sacudir-se quando o fogo o esquente./ Anda, pois; abaixo, mas perto, eu seguirei”).



Seguem assim, andando em planos diferentes, e Dante relata:
Io non osava scender de la strada
per andar par di lui; ma ‘l capo chino
tenea com’uom che reverente vada. (v. 43-45)

(“Eu não ousava descer da minha estrada,/ para andar na dele; mas mantinha a cabeça inclinada/ como o homem que vai reverente.”)

Essa atitude de Dante revela-se bem avançada para a época. Embora condenando o pecado, coerente com sua concepção católica do mundo -- tanto assim que reserva aos que incorreram nele uma parte do 7º círculo do Inferno – mostra-se reverente perante o pecador.

Brunetto quer saber porque Dante está ali, ainda vivo, e quem é o seu guia. E a resposta dele constitui uma síntese da razão de sua jornada, e da alegoria primeira:
“Là sù di sopra, in la vita serena,”
rispuos’io lui, “mi smarri’ in una valle,
avanti che l’età mia fosse piena.

Pur ier mattina le volsi le spalle:
questi m’apparve, tornand’io in quella,
e reducemi a ca per questo calle.” (v.49-54)

(“Lá em cima, na vida serena,”/ respondi-lhe, “me extraviei num vale/ antes que minha idade fosse plena./ Só ontem de manhã lhe dei as costas:/ quando me perdi de novo, este me apareceu,/ a fim de me levar para casa por este caminho.”)

A idade plena do homem seria por volta dos 35 anos. Em 1290, quando morreu Beatriz, Dante tinha 25 anos. Depois da morte da amada, ele extraviou-se do caminho reto, conforme observação do Mons. Pinto de Campos (4).

“Levar para casa” significa que o lar do ser humano é o Paraíso. Mas ele precisa, antes de chegar lá, passar pelo Inferno e Purgatório, quer dizer reconhecer a existência do pecado e arrepender-se dele, purificando-se. Hilário Franco Jr sintetiza o sentido de todo o poema nestes termos: “Em última análise, a passagem do Poeta pelo Inferno e pelo Purgatório foi uma dura penitência que lhe permitiu a purificação e assim a entrada no Paraíso, reduto do verdadeiro e eterno Amor” (5).

A seguir Brunetto faz este elogio a Dante:
Ed elli a me: “ Se tu segui tua stella,
non puoi fallire a glorïoso porto,
se ben m’accorsi ne la vita bella; (v.55-57)

(“E ele para mim: ‘Se seguires tua estrela,/ não falharás em alcançar glorioso porto,/ se bem te julguei na vida bela;/...”).

Vita bella realça o sentimento de nostalgia pelo nosso mundo, e a amargura de Brunetto por estar no Inferno. Ele faleceu em 1294, com cerca de 74 anos, quando Dante tinha 29.

Na sequência Dante critica duramente os florentinos, seus conterrâneos e de Brunetto, chamando-os de “ingrato povo e maligno” (ingrato popolo maligno- v.61), “gente cega,/ avara, invejosa e soberba” (... orbi;/ gent’ è avara, invidiosa e superba:- v.67-68). Por descenderem da antiga Fiesole (cidade etrusca, edificada sobre um monte, a três milhas de Florença) (6), destruída pelos romanos, esse povo “ainda mantém algo da rocha e da montanha” (e tiene ancor del monte e del macigno, - v. 63). É ainda Brunetto quem diz:
La tua fortuna tanto onor ti serba,
che l’una parte e l’altra avranno fame
di te; ma lungi fia dal becco l’erba.

Faccian le bestie fiesolane strame
di lor medesme, e non tocchin la pianta,
s’alcuna surge ancora in lor letame,

in cui riviva la sementa santa
di que’ Roman che vi rimaser quando
fu fatto il nido di malizia tanta.” (v.70-78)

(“Tua fortuna tanta honra te reserva/ que um partido e o outro terão fome/ de ti (os Guelfos Negros e Brancos; a estes Dante esteve associado); mas fique a erva longe do bode./ Façam as bestas de Fiesole forragem/ delas mesmas, e não toquem na planta,/ se alguma surge ainda em seu estrume,/ na qual reviva a semente santa/ dos romanos que aí ficaram quando/ foi feito o ninho de tanta malícia.”).

Essa planta seria o próprio Dante, que segundo os comentaristas julgava descender desses romanos, e não dos habitantes da antiga Fiesole, de quem também descendia a população de Florença.

O poeta então responde referindo-se à “cara e boa imagem paterna” (la cara e buona imagine paterna – v.83) de Brunetto e à sua gratidão, por ele lhe ensinar “como o homem se torna eterno” (come l’uom s’etterna- v.85). Ele vai guardar as palavras ditas sobre o seu futuro, e juntamente com outras predições (de Ciacco no Canto VI, v.64 e seg., e de Farinata no Canto X, v.79 e seg.), as levará para Beatriz, se puder chegar até ela:
Ciò che narrate di mio corso scrivo,
e serbolo a chiosar con altro testo
a donna che saprà, s’a lei arrivo. (v.88-90)

(“O que dizeis de meu percurso, escrevo;/ guardo-o com outro texto, para o comentário/ de sábia dama, se eu a alcançar.”)

No final, Dante pergunta a Brunetto que identifique seus companheiros. Ele destaca aí dois tipos de pessoas—os clérigos e os grandes literatos, “todos maculados por um mesmo pecado no mundo” ( d’un peccatgo medesmo al mondo lerci- v. 108), i.e. a pederastia. De fato, só cita três pessoas, preferindo calar-se quanto ao restante. Cita Prisciano de Cesarea (famoso gramático latino, c. 500 A.D.), Francesco d’Accorso (1225-1293, célebre jurista, professor de Direito nas universidades de Bologna e Oxford) e um bispo de Florença (identificado como Andrea de’ Mozzi), que o papa, transferiu, pela sua conduta escandalosa, do (rio) Arno ao (rio) Bacchiglione, “onde deixou os nervos voltados para o mal ” (dove lasciò li mal protesi nervi- v.114), quer dizer, morreu (segundo Ciardi (7), além de outros comentaristas, a expressão mal protesi nerve contém um intraduzível jogo de palavras, pois nervi pode ser traduzido como o “órgão sexual masculino” e protesi como “erecto”, orientado para propósitos antinaturais (mal); mas também nervi pode ser “nervos” e mal protesi “voltados para o mal”).

Pressentindo a aproximação de outra gente (também sodomitas, como se verá a seguir), Brunetto se despede de Dante recomendando-lhe o seu livro “Tesoro”, pelo qual quer ser lembrado:
Gente vien con la quale esser non deggio.
Sieti raccomandato il mio Tesoro,
nel qual io vivo ancora, e più non cheggio. (v.118-120)

(“Vem gente com a qual não devo estar./ Te recomendo o meu 'Tesoro',/ no qual eu vivo ainda, e mais não almejo”)

Note-se aqui a recorrência da importância atribuída pelos mortos à sua obra, como forma de fugir ao anonimato da morte, de vencê-la, revelando a ânsia bem humana pela imortalidade. Aliás, já vimos acima que Dante é grato a Brunetto por este ter lhe ensinado come l’uom s’etterna- v.85.

Depois Brunetto dispara numa corrida para juntar-se novamente ao seu bando, e Dante, vendo-o, compara-o aos corredores de uma competição que se realizava nos campos de Verona no primeiro domingo da Quaresma, cujo prêmio era uma peça de pano verde: “/.../ e desses corredores, ele parecia/ ser o que vence, não o que perde” (/.../ e parve di costoro/ quelli che vince, non colui che perde.- v.124). T.S.Eliot, no estudo já citado, destaca essa passagem, assim como outra no Canto XXVI, de Ulisses, insólitas e impressivas, para mostrar como a grande poesia tem essa capacidade de nos surpreender: “/../ both have the quality of surprise which Poe declared to be essential to poetry” (8).

NOTAS

(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 368
(2) T.S.Eliot- “Dante”. London: Faber and Faber, 1966, p.16-17
(3) Dante Alighieri- “Inferno”.Tradução e notas de Jorge Wanderley. Rio de Janeiro: Record, 2004- p. 215.
(4) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-”Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 120-121
(5) Hilário Franco Jr.- “Dante: o poeta do absoluto”. S.Paulo: Brasiliense, 1986- p.56
(6) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d- op cit, p.122
(7) John Ciardi- “Inferno” (tradução e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition. W.W.Norton & Company, p. 829
(8) T.S.Eliot- “Dante”- op cit, p.21


INFERNO- CANTO XIV




Virgílio e Dante aproximam-se agora da terceira volta do sétimo círculo (a dos violentos contra Deus), um areal, “em cujo leito nenhuma planta dava”, circundado pelo bosque dos suicidas, que por sua vez o é por um “fosso triste” (o rio Flegetonte). Eles estão na divisa entre a segunda e a terceira volta, na extremidade daquele bosque. Dali “se via a horrível obra da justiça (divina)” ( ...e dove/ si vede di giustizia orribil arte”- v.5-6). Antes de descrever o que viu, Dante exclama assim, evidenciando que é pelo temor da punição divina que os católicos esperam uma conduta adequada das pessoas (e não pela convicção ditada por uma ética terrena, humanista):
O vendetta di Dio, quanto tu dei
esser temuta da ciascun che legge
ciò che fu manifesto a li occhi mei! (v.16-18)

(“Ó vingança de Deus, quanto tu deves/ ser temida por qualquer um que leia agora/ aquilo que foi manifesto aos olhos meus!”).

Ele vê então três bandos de almas nuas, chorando todas, umas deitadas de costas no areal ardente (os blasfemadores), outras sentadas encolhidas (os usurários), e outras ainda andando continuamente, sem parar (os sodomitas). Todas sofrem com a chuva de flocos de fogo que cai sobre esse areal. Seu castigo mantém correspondência com o fato de que, quando vivos, arderam no fogo de suas paixões (violência, sede de ouro, lascívia) (1).

Sovra tutto ‘l sabbion, d’un cader lento,
piovean di foco dilatate falde,
come di neve in alpe sanza vento. (v.28-30)

(“Sobre todo o areal, em lento cair,/ choviam flocos dilatados de fogo/ como a neve nos Alpes sem o vento.”)

Note-se que se verifica aqui não só uma comparação mas também um contraste, entre a neve e o fogo.

A esses três bandos de violentos contra Deus correspondem três zonas da terceira volta do sétimo círculo. A primeira, abordada neste Canto XIV, trata dos blasfemadores. São os que mais sofrem, pois estão deitados de costas, com o rosto voltado para cima. Os próximos Cantos (XV a XVII) tratarão dos sodomitas (violentos contra a Natureza, criada por Deus) e dos usurários (violentos contra a Arte, que imita a Natureza).

O fogo que caía do céu acendia a areia “como pavio na pederneira, redobrando a dor”, quer dizer duplicando o tormento das almas que ali estavam deitadas. E as mãos dos blasfemadores se agitavam constantemente, procurando afastar as novas chamas.

Dante então pergunta a Virgílio “quem é aquele gigante que parece alheio/ ao incêndio, e jaz altivo e irado” (chi è quel grande che non par che curi/ lo ‘ncendio e giace dispettoso e torto- v. 46-47). Mas é o próprio gigante quem lhe responde: “Como fui vivo, tal morto sou” (Qual io fui vivo, tal son morto.- v.51). E prossegue reafirmando a sua atitude desafiadora perante Jove (outro nome de Júpiter), que em seu último dia o transfixou com um raio. Mesmo que Jove usasse agora todos os raios fornecido por Vulcano ou seus auxiliares (os ciclopes) do Mongibello (o vulcão Etna), ainda assim sua vingança não seria completa (quer dizer, ele não se submeteria). Virgílio explica a Dante que esse “desdenhoso de Deus” é Capaneu, “um dos sete reis que sitiaram Tebas”, capital da Beócia, tema de um famoso episódio da mitologia grega.

Em seguida, Virgílio pede a Dante que o siga: “...e cuida para não pisar/ sobre a areia em brasa; / mas sempre tem os pés junto ao bosque”. Chegam ao lugar onde sai desse bosque um pequeno riacho, “cuja cor vermelha ainda me faz estremecer” (lo cui rossore ancor mi raccapriccia- v.78), nas palavras de Dante. Esse riacho -- em que o leito e as margens eram de pedra -- corria pelo areal, e representava uma passagem para os dois poetas, pois ao longo dele não seriam incomodados pela chuva de fogo. Virgílio diz a Dante que nada do que este viu,
cosa non fu da li tuoi occhi scorta
notabile com’ è ‘l presente rio,
che sovra sé tutte fiammelle ammorta. (v.88-90)

(“nenhuma (coisa) foi testemunhada por teus olhos/ tão notável quanto o presente rio/ que extingue toda chama que cai sobre ele.” ).

E Virgílio continua, referindo-se à ilha de Creta. “Sob seu rei o mundo já foi casto” (/.../ Creta,/ sotto ‘l cui rege fu già ‘l mondo casto- v.95-96), i.e. inocente (é o uso da espécie pelo gênero, nas palavras do Mons. Pinto de Campos, que afirma haver aqui uma referência à mitica idade de ouro de Saturno, mencionada pelos poetas antigos) (2). Reia, a esposa de Saturno, escolheu uma montanha dali, chamada Ida, para esconder seu filho do pai, que enlouquecera e queria devorá-lo pois segundo uma profecia um de seus filhos deveria destituí-lo do poder (3). Quando o bebê chorava, Reia mandava seus súditos fazerem um alarido, para não denunciar sua presença ali.
Dentro dal monte sta dritto un gran veglio,
che tien volte le spalle inver’ Dammiata
e Roma guarda come süo speglio. (v.103-105)

(“No monte está de pé um grande velho/ que volta os ombros para Damiata/ e olha Roma como seu espelho.” )

Trata-se de um monumento cuja cabeça é de ouro, os braços e o peito de prata, o tronco de bronze e o restante de ferro, “salvo o pé direito, que é de terracota,/ sobre o qual, mais do que sobre o outro, está ereto”- salvo che ‘l destro piede è terra cotta;/ e sta ‘n su quel, più che ‘n su l’altro, eretto- v. 110-111 ). Ele apresenta fissuras nas diversas partes, exceto na de ouro, por onde vertem lágrimas que originam os rios do Inferno (Aqueronte, Estige, Flegetonte e Cocito).

O “grande velho de Creta” é, segundo os comentaristas, uma alegoria da humanidade, e suas diversas idades, começando pela do ouro, a da inocência perdida (a parte de ouro não verte lágrimas porque sua idade não apresenta os males que causam prantos, diferente das idades da prata, do bronze e do ferro). O pé direito (o mais frágil) representa a Igreja Católica e o esquerdo, o Império Romano (4). Localiza-se na Ilha de Creta, no centro do mundo de então (os três continentes). Está de costas para Damiata, na foz do Nilo (representando o Oriente, o passado), e seu olhar contempla Roma (símbolo da civilização cristã ocidental, do futuro).

Dante se admira de que, se a origem do riacho é o “nosso mundo”, porque ele só pode ser visto no Inferno. Virgílio lhe explica que ele não deve se admirar porque “embora já tenha descido muito/ sempre à esquerda, em direção ao fundo” (e tutto che tu sie venuto molto,/ pur a sinistra, giù calando al fondo, - v. 125-126), ainda não completou a jornada, e poderá ver coisas novas. No final, ele pergunta onde estão os rios Flegetonte e Letes. O primeiro é aquele mesmo, próximo deles (segundo o já citado Mons.Pinto de Campos, Flegetonte, em grego, significa “ardente”, enquanto Aqueronte quer dizer “sem alegria”, Estige “tristeza” e Cocito “pranto”) (5). Quanto ao rio Letes (que significa “esquecimento”), diz Virgílio:
Letè vedrai, ma fuor di questa fossa,
là dove vanno l’anime a lavarsi
quando la colpa pentuta è rimossa. (v.136-138)

(“Letes o verás, mas fora dessa fossa (i.e. fora do Inferno, no Purgatório),/ lá onde as almas vão lavar-se/ quando a culpa arrependida é cancelada”).

E os dois peregrinos seguem em frente, pelas margens de pedra do Flegetonte, pois “estas margens formam um caminho que não queima/ e sobre elas todo o vapor se esvanece” (li margini fan via, che non son arsi,/ e sopra loro ogne vapor si spegne.- v.141-142).

NOTAS

(1) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-tradução em prosa do “Inferno”, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 82
(2) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, op cit- p.91
(3) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by
Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 367
(4) Id., ib, p. 367
(5) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, op cit- p.94-96

INFERNO- CANTO XIII





Dante e Virgílio penetram agora num bosque estranho, áspero e denso-- o bosque dos suicidas:
/.../ un bosco
che da neun sentiero era segnato.
Non fronda verde, ma di color fosco;
non rami schietti, ma nodosi e ‘nvolti;
non pomi v’eran, ma stecchi con tòsco. (v.2-6)

(“/.../ um bosque/ que não era cortado por nenhum caminho. Não frondes (= copas de árvores) verdes, mas de cor escura;/ não ramos lisos, mas nodosos e retorcidos;/ não pomos, mas farpas venenosas” ).

Não há nenhum caminho no bosque, quer dizer o suicídio não leva a lugar nenhum. Suas frondes não têm o verde da esperança, mas a cor escura do desespero. A imagem dos ramos nodosos e retorcidos, e não lisos, acentua a aspereza do ato antinatural, contrário ao instinto de sobrevivência. A menção aos seus frutos, que são farpas venenosas, reforça a idéia da esterilidade e nocividade do ato. O fruto do suicídio não alimenta os homens, ou contribui para o seu bem, mas, pelo contrário, lhes é prejudicial (na vida eterna).

É nesse bosque que as Harpias fazem ninho. Os versos dizem que seu rosto e colo são humanos, mas possuem asas, ventre emplumado e pés com garras (são, como já foi dito, símbolo da bestialidade humana). Elas, de acordo com a lenda, expulsaram os troianos da ilha Estrófade, predizendo-lhes um mau futuro (1). Mais adiante se verá que as Harpias alimentam-se com as folhas desse bosque, e isso é causa de sofrimento para os suicidas transformados em árvores.

Virgílio explica que estão agora na segunda volta do sétimo círculo. Aí estão os suicidas e dissipadores, os que praticaram violência contra si mesmos ou os seus bens.
Dante-autor relata sua impressão:
Io sentia d’ogne parte trarre guai
e non vedea persona che ‘l facesse;
per ch’io tutto smarrito m’arrestai. (v.22-24)

(“De toda parte eu ouvia gritos,/ mas não via ninguém que os desse;/ por isso me detive, desnorteado.”)

Dante, hábil na técnica narrativa, faz suspense e assim mantém o interesse do leitor. Onde estão os condenados, i.e os suicidas? A descoberta pelo leitor será fonte de prazer estético.

A princípio, Dante-personagem pensa que as almas se escondiam por entre as árvores (literalmente, ele diz que Virgílio é quem pensava que ele pensava isso, pretexto para Dante-autor conceber este verso tão sonoro pela sua aliteração: Cred'ïo ch'ei credette ch'io credesse- v. 25, assim traduzido por Cristiano Martins- "Eu creio que ele cria então que eu cresse" etc... (1-A). Mas depois (atente-se para o clima mágico, semelhante ao das histórias infantis), ao quebrar ramo de uma delas, é surpreendido por ouvir o seu tronco gritar: Perché mi schiante? (“Por que me partes?” -v.35) . E pelo que ocorre em seguida:

Da che fatto fu poi di sangue bruno,
ricominció a dir: “Perché mi scerpi?
non hai tu spirto di pietade alcuno?

Uomini fummo, e or siam fati sterpi:
ben dovrebb’ esser la tua man più pia,
se state fossimo anime di serpi.” (v.34-39)

( “Cobriu-se logo de sangue escuro,/ e recomeçou: ‘Por que me feres?/ Não possuis nenhum sentimento de piedade?/ Homens fomos e agora somos lenho:/ tua mão bem poderia ser mais pia,/ mesmo que fôssemos apenas almas de serpentes.’” ).

Segue-se uma comparação curiosa entre esse ramo quebrado, de onde saem “palavras e sangue”, e uma acha verde cuja ponta fora do fogo verte água (seu “choro”) e sibila, sons que o poeta procura traduzir pela escolha de certas palavras com z, s e c nestes versos, especialmente no v.40 (conforme observa o Mons. Pinto de Campos) (2):

Come d' un stizzo verde ch' arso sia
da l' un de' capi, che da l' altro geme
e cigola per vento che va via,

sì de la scheggia rotta usciva insieme
parole e sangue; ond' io lasciai la cima
cadere, e stetti come l' uom che teme.” (v. 40-45)

(“Como acha verde que se incendeia/ numa ponta, e na outra chora/ e silva pelo vapor dali desprendido,/ assim daquele lenho roto saíram/ palavras e sangue, de modo que o ramo/ deixei cair, e fiquei como um homem que receia.”)



Virgílio pede à alma em questão que diga quem foi, na vida terrena, para que Dante possa reparar a sua falta involuntária renovando a fama desse condenado no mundo acima, quando a ele retornar. Ele diz que é aquele que detinha as “chaves do coração de Frederico” e “compartilhava seus segredos”, quer dizer desfrutava de sua confiança. Os comentaristas o identificam como Pier della Vigna (c1190-1249), ministro, secretário particular e principal conselheiro do imperador dos romanos Frederico II (3).

Pier caiu em desgraça por conta da inveja, não mencionada explicitamente por ele,
que a chama de meretriz nesta alegoria:
La meretrice che mai da l’ospizio
di Cesare non torse li occhi putti,
morte comune e de le corti vizio,

infiammò contra me li animi tutti;
e li ‘infiammati infiammar sì Augusto,
che ‘lieti onor tornaro in tristi lutti. (v. 64-69)

(“A meretriz que jamais da morada/ de César (= corte de Frederico II) tirou os olhos,/ ela que é a morte de todos e o vício das cortes,/ inflamou contra mim os ânimos de todos;/ e os inflamados inflamaram tanto Augusto (= Frederico II) / que as minhas ledas (= felizes) honras se tornaram tristes lutos.”)

Pier, acusado de traição, foi metido no cárcere e cegado. Desgostoso, suicidou-se. Mas sempre foi leal ao seu senhor e pede agora que lhe promovam a memória no futuro:
E se di voi alcun nel mondo riede,
conforti la memoria mia, che giace
ancor del colpo che ‘nvidia le diede. (v.76-78)

(“E se um de vós retorna ao mundo,/ ajuda minha memória, que ainda jaz/ sob os golpes desferidos pela inveja.”).

Dante está tão apiedado desse homem justo, cuja opção pelo suicídio fez dele injusto (ingiusto fece me contra me giusto- v.72), que não consegue formular perguntas. Pede então a Virgílio que o faça por ele. Este lhe indaga assim:
spirito incarcerato, ancor ti piaccia

di dirne come l’anima si lega
in questi nocchi; e dinne, se tu puoi,
s’alcuna mai di tai membra si spiega”.

Allor soffiò il tronco forte, e poi
si convertì quel vento in cotal voce: (v.87-92)

( “espírito encarcerado, queira dizer-nos ainda/ como a alma se apega/ a estes nós; e dize-nos, se puderes,/ se alguma já se libertou de tais membros nodosos.’. / Então soprou forte o tronco/ e tal vento converteu-se nesta voz:).

A voz lhes explica que quando o suicida comete o seu ato desesperado, Minos manda a sua alma para o sétimo círculo. Onde ela cai, fica, não havendo um lugar predeterminado para ela. Ali germina e a nova planta se desenvolve. As Harpias se alimentam de suas folhas, o que lhes causa sofrimento, abrindo-lhes, por outro lado, “janelas” para as lamentações. No Juízo Final, todas as almas (também chamadas sombras) recuperarão seus corpos, exceto a dos suicidas (já que eles voluntariamente os rejeitaram). Seus corpos ficarão pendurados nesse bosque, “cada um no tronco de sua sombra,/ que lhe foi molesta” (ciascuno al prun de l’ombra sua molesta.- v.108) (essas imagens lembram certas cenas do filme “Apocalypse Now”, de Coppola, inspiradas em Dante, quando o protagonista se aproxima do refúgio do Cel. Kurtz, interpretado por Marlon Brando, no interior da selva. Aliás, um dos grandes paradoxos da nossa civilização, em que a imagem assume um papel tão relevante, é não ter sido a “Divina Comédia” vertida para o cinema, pelo menos não o ter sido por algum diretor importante. E sentimos mais esse paradoxo quando lembramos que o poema é essencialmente visual... ).

De repente, surgem, correndo, “dois espíritos, pela esquerda, nus e arranhados”, que fogem celeremente de duas cadelas negras ferozes. O primeiro é identificado como Lano (provavelmente, Arcolano de Siena, que morreu na batalha de Pieve al Toppo, perto de Arezzo) (4), cujas pernas não foram tão ágeis assim “na justa de Toppo”, conforme observa o segundo, que, sem fôlego, cai sobre um arbusto e é alcançado pelas cadelas, que lhe metem os dentes, fazendo-o em pedaços.

Em seguida esse arbusto se manifesta, quando Virgílio, tomando Dante pela mão, aproxima-se dele, que se lamenta (sopra “dolorosas palavras”) por fendas que sangram. Ele pergunta ao espírito que há pouco foi vitimado:
“O Iacopo”, dicea, “da Santo Andrea,
che t' è giovato di me fare schermo?
che colpa ho io de la tua vita rea?” (v.133-135)

(“Ó Jacopo da Santo Andrea”, ele disse,/ “o que ganhaste usando-me como abrigo?/ que culpa tenho eu pela tua vida iníqua?”)

Jacopo, juntamente com Lano, foram notáveis perdulários, diferentes daqueles mencionados no Canto IV por serem intencionalmente esbanjadores. Lano chegou a pertencer, segundo Mandelbaum et al., a um Clube dos Perdulários.



O Canto conclui com as palavras desse espírito transformado em arbusto, um suicida anônimo de Florença, cidade que, com o advento do cristianismo, substituiu, como patrono, Marte por João Batista. Dante explora literariamente o assunto, atribuindo a instabilidade política de sua cidade natal às artes de Marte, o deus da guerra:
Ed elli a noi: “O anime che giunte
siete a veder lo strazio disonesto
c’ha le mie fronde sì da me disgiunte,

raccoglietele al piè del tristo cesto.
I’ fui de la città che nel Batista
mutò ‘l primo padrone; ond’ei per questo

sempre com l’arte sua la farà trista;
e se non fosse che ‘n sul passo d’Arno
rimane ancor di lui alcuna vista,

que’ cittadin che poi la rifondarno
sovra ‘l cener che d’Attila rimase,
avrebber fatto lavorare indarmo.

Io fei gibetto a me de le mie case.” (v.139-151)

( “E ele para nós: ‘Ó almas que juntas/ já vedes o assalto doloroso/ que minhas frondes andou despedaçando,/recolhei-as ao pé deste triste arbusto./ Eu fui da cidade que trocou pelo Batista/ o seu antigo patrono; por isso, este/ sempre com a sua arte a fará triste;/ e se, na ponte sobre o Arno,/ não restasse ainda dele alguma imagem,/ aqueles cidadãos que depois a refundaram/ sobre as cinzas que Átila deixou,/ teriam feito trabalhar em vão./ Da minha casa eu fiz o meu patíbulo.”’).

Na realidade, segundo os comentaristas, Florença não foi destruída por Átila e sim por Tótila, rei dos Vândalos e dos Godos, em 542 (5).

Como diz Ciardi, o castigo que os suicidas receberam nesse círculo do Inferno (sua transformação em árvores) é bem apropriado, considerando que destruíram a si próprios, quer dizer, rejeitaram a sua forma humana. Por outro lado, o dos dissipadores de seu patrimônio (estraçalhados pelas cadelas ferozes) representa simbolicamente a violência que praticaram contra seus próprios bens (6).

NOTAS

(1) Dante Alighieri- “A Divina Comédia”. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins. 5a. ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1989- v.1, p. 210
(1-A) Id., ib., p.212
(2) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 39-40
(3) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 365
(4) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”- op cit, p. 365
(5) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”- op cit, p. 365; Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d., p.55
(6) John Ciardi- “Inferno” (tradução para o inglês e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition. W.W.Norton & Company, p. 816-817

INFERNO- CANTO XII




Uma das razões do encanto da Divina Comédia é a de que ela envolve em seu enredo personagens mitológicos ou históricos, incorporando ao poema suas histórias curiosas, singulares ou dramáticas. Eles são mencionados para ilustrar uma dada situação ou para exemplificar o tipo de pecadores dos diversos círculos infernais. Todavia, Dante não reconta as histórias desses personagens, apenas faz ligeiras menções a eles, dando aquelas como subentendidas. É o que ocorre no Canto XII.

O Canto inicia descrevendo o cenário pedregoso, de ruínas, de rochas tombadas e despedaçadas, em que se encontram Dante e seu guia (mais adiante, o leitor vai entender que isso é consequência do terremoto que abalou o Inferno quando Cristo morreu, conforme a Bíblia). Os poetas buscam uma passagem que lhes permita avançar em sua descida ao próximo círculo do Inferno, o sétimo, dos violentos. Ao encontrar tal passagem, deparam-se com a “infâmia de Creta”, i.e. o Minotauro, obstaculizando a descida (esse é um fato recorrente: a presença de um personagem mitológico representando um obstáculo ao avanço dos dois viajantes, que é neutralizado pela intervenção de Virgílio, enviado do Céu indiretamente, por meio de Beatriz). Tal personagem ou monstro reveste-se sempre de um caráter simbólico, relacionado ao círculo que se vai visitar. No caso, tanto o Minotauro quanto os Centauros, que aparecerão logo mais, são metade gente e metade animal e por isso, símbolos apropriados da bestialidade humana, característica dos tiranos e outros assassinos punidos nesta primeira volta do sétimo círculo (1).

Dante-autor refere-se à manifestação irada da “infâmia de Creta” quando os viu, ela que foi “concebida na falsa vaca” (che fu concetta ne la falsa vacca- v.13). Segundo a mitologia clássica, Pasifae, mulher do rei Minós, de Creta, gerou o Minotauro, por ter tido, escondida numa vaca de madeira, relações sexuais com um touro. O monstro depois foi encerrado num labirinto. Alimentava-se de carne humana. Anualmente, para tal finalidade, eram sacrificados sete jovens (rapazes e moças) atenienses. Um deles seria Teseu (o “duque de Atenas”), por quem se apaixonara Ariadne (irmã do monstro). Com a ajuda dela, que lhe deu uma espada e um novelo de fio, ele conseguiu matar o Minotauro e sair do labirinto (2).

Virgílio diz ao irado Minotauro que talvez ele pense que quem está ali é o ”Duque de Atenas” ,
che sù nel mondo la morte ti porse?
Pàrtiti, bestia, ché questi non vene
ammaestrato da la tua sorella,
ma vassi per veder le vostre pene. (v.18-21)

(“o qual no mundo acima te deu morte?./Vai-te, besta, porque este aqui não vem/ instruído pela tua irmã, / e sim para observar as vossas penas.” ).

Aproveitando a desorientação causada pela fúria do Minotauro—e aqui surge uma comparação entre o modo como se moveu e o de um touro, após receber o golpe mortal no matadouro-- eles avançam pela passagem “por aquelas pedras que se moviam/ debaixo de meus pés pelo peso diferente” (outra recorrência: a referência ao peso de Dante, por estar vivo, contrastando-o assim com relação às inúmeras sombras que ali cumprem pena, o que contribui para criar uma impressão sugestiva).

A seguir, Virgílio conta a Dante que da outra vez que desceu ao Inferno não havia aquela ruína e rochas destroçadas:
Ma certo poco pria, se ben discerno,
che venisse colui che la gran preda
levò a Dite del cerchio superno, (v.37-39)

(“Mas foi pouco antes, se bem discirno,/ de vir aquele que a grande presa/ tirou de Dite do círculo superno (= superior)”

Explicitando: Virgílio desceu ao Inferno pouco antes da morte de Cristo. Este, por sua vez, após a morte, desceu ao Limbo para dali tirar os pagãos justos e levá-los consigo para o Céu (“a grande presa”). Lembremo-nos de que o nome de Cristo (= Deus) jamais é pronunciado no Inferno. Por isso ele é chamado “aquele que a grande presa tirou de Dite” (ou Lúcifer).

Aproximam-se depois do “rio de sangue no qual fervem/ aqueles que feriram os outros pela violência” (la riviera del sangue in la qual bolle/ qual che per vïolenza in altrui noccia- v. 47-48), os apenados da primeira volta do sétimo círculo. O “rio de sangue”, que será identificado posteriormente, é Flegetonte, o terceiro rio do Inferno (eles já ultrapassaram antes o Aqueronte e o Estige). E Dante-autor exclama:
Oh cieca cupidigia e ira folle,
che sì ci sproni ne la vita corta,
e ne l’etterna poi sì mal c’immole! (v.49-51)

(“Ó cega cupidez e ira louca,/ que tanto nos aguilhoa na vida curta,/ e depois, na eterna, nos imerge em tanto mal!”).

Em torno desse rio ou fosso de sangue fervente eles avistam uma fila de centauros, que corriam “armados com setas, como se andassem à caça, no mundo acima.” Detêm-se à vista dos visitantes. Três centauros separam-se do grupo, e um deles indaga de longe qual martírio os dois vêm cumprir. Devem falar de longe, pois se se aproximarem, seu arco será disparado. Virgílio lhe responde que darão resposta somente a Quíron (o centauro sábio, tutor de Aquiles, segundo a lenda). Virgílio explica para Dante que esse que se manifestou é Nesso “que morreu pela bela Dejanira,/ e fez de si vingança para si mesmo” (Dejanira é a mulher de Hércules, que matou Nesso. Mas o manto deste, com seu sangue envenenado, foi usado por Hércules e acabou por matá-lo também, vingando-o desse modo) (3). Virgílio identifica ainda os outros dois: Quíron, chefe dos centauros, e Folo, que, furioso, participou da campanha contra os Lapitas (4).


Esses centauros que correm em torno do fosso, aos milhares, têm por função vigiar os condenados aí imersos, que cumprem sua pena. São os violentos contra o próximo, e seus bens. Eles são flechados quando se erguem do sangue mal-cheiroso mais do que lhes é permitido.



Depois, quando os dois se aproximam de Quíron, este observa que Dante tem peso:
disse a’ compagni: “Siete voi accorti
che quel di retro move ciò ch’el tocca?
Così non soglion far li piè d’i morti”. (v.80-82)

(“disse aos companheiros: ‘Vós notastes/ como o de trás move aquilo que toca?/ Isso não costuma fazer os pés dos mortos’”).

Virgílio então lhe explica que Dante é vivo, e que lhe cabe mostrar o “vale escuro”. Pede em seguida a Quíron que indique um dos centauros para lhes acompanhar
e che ne mostri là dove si guada,
e che porti costui in su la groppa,
chè non è spirto che per l’aere vada. (v. 94-96)

(“e que nos mostre lá onde se possa transpor o fosso a vau,/ e que leve este homem em sua garupa,/ pois não é espírito que vá pelo ar“).

Nesso é designado para acompanhá-los, e eles avançam.
Or ci movemmo con la scorta fida
lungo la proda del bollor vermiglio,
dove i bolliti facieno alte strida. (v.100-102)

(“Agora, avançamos com a escolta fiel, / costeando a fervura vermelha/ onde os fervidos
faziam gritaria”).

O Centauro informa que estão ali imersos até os olhos os tiranos “que derramaram sangue e saquearam” (É son tiranni/ che dier nel sangue e ne l’aver di piglio- v.104-105). São citados nominalmente Alexandre (Alexandre o Grande, da Macedônia, ou Alexandre de Pherae, tirano da Tessália- c.368 a C), Dionísio (tirano de Siracusa, de 405 a 367 a C), Azzolino (1194-1259), que massacrou os cidadãos de Padua, e Obizzo da Esti (1247-1293), senhor de Ferrara, confome as notas de Mandelbaum et al. (5).

Mais adiante há uma referência a outro assassino, imerso no sangue até a garganta, que praticou seu crime dentro de uma igreja. Trata-se, ainda conforme os mesmos comentaristas, de Guy de Montfort que em 1271 matou o príncipe Henrique, filho de Ricardo Duque de Cornwall, para vingar o pai. Seu coração foi colocado num cofrezinho de ouro junto à estátua a Henrique erigida em ponte do rio Tâmisa. Por isso os versos 119-120 dizem: “Dentro do lar de Deus, ele feriu/ um coração que no Tamisa vela” (Colui fesse in grembo a Dio/ lo cor che ‘n su Tamisi ancor si cola). E Dante prossegue assim, num pseudo-realismo que faz o poema soar realmente como um relatório de viagem:
Poi vidi gente che di fuor del rio
tenean la testa e ancor tutto ‘l casso;
e di costoro assai riconobb’io. (v.121-123)

(“Depois vi gente que fora do rio/ mantinha a cabeça e mesmo o peito,/ e a muitos deles bem reconheci.”)

Posteriormente o poeta florentino vê condenados com a cabeça ou mesmo o peito fora do rio (a maior ou menor imersão no Flegetonte está relacionada ao grau de violência praticada).

Mais adiante, o sangue do rio se torna cada vem mais raso, permitindo que só “cozinhe” os pés. Mas ele se avolumará novamente, pouco a pouco, do outro lado, e quando estiver com a profundidade adequada outros tiranos serão ali castigados, como Átila, rei dos Hunos (433-453), Pirro (provavelmente o filho de Aquiles, que matou muitos na Guerra de Tróia) e Sexto (filho de Pompeu, que praticou atos cruéis de pirataria), além de dois salteadores de estrada, contemporâneos de Dante, Rinier de Corneto e Rinier Pazzo. (6). Aqui o autor usa uma linguagem curiosa, afirmando que a “divina justiça”
/.../ e in etterno munge
le lagrime, che col bollor diserra,
a Rinier da Corneto, a Rinier Pazzo,
che fecero a le strade tanta guerra. (v.135-138)

(“eternamente ordenha/ lágrimas que a fervura libera/ de Rinier de Corneto, de Rinier Pazzo,/ esses que fizeram nas estradas tanta guerra”).

Lembremo-nos de que são castigados nessa primeira volta do círculo os que usaram de violência contra o próximo (derramando seu sangue: por isso cumprem pena imersos no sangue), e também contra os seus bens, conforme a concepção de Dante, explicitada no Canto anterior. A punição imposta aos pecadores, nas duas próximas voltas, será não essa imersão no sangue fervente e mal-cheiroso mas a transformação em árvores exóticas dos suicidas e o dilaceramento por cães dos dilapidadores de seus bens ou o suplício no areal ardente dos violentos contra Deus, a natureza e a arte (7).

Cumprida sua tarefa, Nesso retorna, após deixar os dois poetas do outro lado do rio de sangue fervente onde aqueles violentos são punidos.


NOTAS

(1) John Ciardi- “Inferno” (tradução e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition. W.W.Norton & Company, p. 814
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 362-363
(3) Id., ib, p. 363
(4) Id., ib, p. 363-364
(5)  Id., ib, p. 364
(6)  Id., ib, p. 364
(7) Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.2- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-”Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 445



INFERNO- CANTO XI





O Canto XI difere dos cantos anteriores por ser mais expositivo e menos narrativo, sem incidentes ou a participação de figuras históricas ou mitológicas. Trata das características do Inferno e da natureza dos pecados, baseando esta última questão na Ética de Aristóteles.

Dante e Virgílio estão no cimo de uma encosta, à beira de um abismo, do fundo do qual vem um horrível mau cheiro (que deve provir do sangue fervente do rio Flegetonte do próximo círculo, o sétimo). Eles se detêm atrás de um grande túmulo em cujo tampo está escrito: “Guardo o Papa Anastácio, a quem Fotino desviou do caminho reto” (“Anastasio papa guardo,/ lo qual trasse Fotin de la via dritta- v.8-9). Fotino era um heresiarca do século IV que não aceitava a origem divina de Cristo (1).

Virgílio propõe que se detenham ali para acostumar o olfato àquele cheiro ruim. Então, para aproveitar o tempo e atendendo solicitação de Dante, ele explica que abaixo, no Inferno, há ainda três círculos a percorrer, cada vez menores (pois o Inferno vai se afunilando até o centro da terra, como já foi dito). “Todos estão plenos de espíritos malditos” (Tutti son pien di spirti maladetti- v.19) que foram ali confinados porque ofenderam os outros “com força ou fraude” (con forza o con frode- v.24), sendo que esta, por ser própria do homem (devido à razão) “mais desagrada a Deus” (Ma perché frode è de l'uom proprio male,/ più spiace a Dio- v.25-26). Por isso os fraudulentos estão situados mais abaixo dos violentos.

No primeiro desses três círculos (i.e. o 7º círculo do Inferno) estão os violentos. Ele se subdivide em três voltas:
1) a dos que praticaram violência contra o próximo, e seus bens, abrangendo os que mataram ou feriram outras pessoas, os que prejudicaram seu patrimônio etc;
2) a dos violentos contra si mesmos, ou seus bens, envolvendo os que tiraram a própria vida ou dissiparam seu patrimônio; e
3) a dos violentos contra Deus, abrangendo os que o negaram e os que se voltaram contra sua criação, a natureza, como os habitantes de Sodoma (pervertidos sexuais) na Palestina e de Caorsa na França (cidade onde havia muitos usurários) (2).

No segundo círculo (ou o 8º círculo infernal) estão os os hipócritas, bajuladores, feiticeiros, falsários, ladrões, simoníacos, sedutores e proxenetas, traficantes, os maus conselheiros e os semeadores de discórdias

No terceiro e último círculo (o 9º), o menor de todos, no centro do universo, localiza-se a sede de Dite (ou Lúcifer). É aí que estão os traidores, os fraudulentos de maior gravidade (os versos distingüem a fraude cometida contra as pessoas que confiam no fraudador, caso deste círculo, da cometida contra as outras pessoas, caso do círculo anterior).

O 9º círculo está no centro do universo porque se localiza no centro da Terra, de acordo com a concepção geocêntrica do sistema de Ptolomeu, vigente na época de Dante.

Dante pergunta a Virgílio porque os condenados dos círculos anteriores-- do 1º ao 6º (os retidos no palude, os levados pelo vento, os que estão debaixo de chuva, “os que colidem com tão áspera língua” -- castigos impostos aos iracundos e rancorosos, luxuriosos, gulosos, avarentos e perdulários) não são punidos dentro da cidade de Dite. Virgílio faz Dante lembrar da “sua Ética” (i.e. A “Ética a Nicômaco” de Aristóteles), que afirma haver três disposições que não agradam ao céu-- a incontinência, a malícia (aqui chamada de fraude) e a bestialidade (ou a violência). Dessas, a incontinência dos sentidos é a que menos ofende a Deus (não o ofenderia se se mantivesse dentro dos próprios limites) (3). Por isso tais pecadores estão fora de Dite.

Os outros pecados, associados à violência e à fraude, dos círculos mais abaixo, são mais graves porque significam usar a razão humana—um dom divino—para o mal. É o caso dos violentos, que além da força bruta (o que os equipararia aos animais, daí a menção à bestialidade) também fazem mau uso da razão ao praticar o homicídio, o roubo, o suicídio, a sodomia e a usura. E é o caso dos fraudulentos (os que usam de malícia frente às outras pessoas), que traem o amor natural entre os seres humanos, e “o amor adicionado do qual se cria uma confiança especial”.

Como dizem os versos:
La frode, ond' ogne coscïenza è morsa,
pùo l'omo usare in colui che 'n lui fida
e in quel che fidanza non imborsa.

Questo modo di retro par ch' incida
pur lo vinco d' amor che fa natura; (v.52-56)

(“A fraude, que corrói toda consciência,/ pode o homem usá-la contra quem nele confia/ e contra quem se guarda em precaução./ Este último modo parece cortar/ o vínculo de amor que a natureza cria;”)

Desse modo, os hipócritas, bajuladores, feiticeiros, falsários etc -- os pecadores do 8º círculo -- agem contra esse amor natural que une as pessoas.
Per l'altro modo quell' amor s' oblia
che fa natura, e quel ch' è poi aggiunto,
di che la fede spezïal si cria;
onde nel cerchio minore, ov' è 'l punto
de l' universo in su che Dite siede,
qualunque trade in etterno è consunto”. (v.61-66)

(“Mas no outro modo de fraude, o primeiro,/ não somente o amor que a natureza cria é esquecido,/ mas também o amor adicionado do qual se cria uma confiança especial;/ assim, no círculo menor de todos, onde está/ o centro do universo, sede de Dite,/ todos os traidores são consumidos eternamente”).

Os pecados mais graves de todos serão assim aqueles cometidos pelos traidores às pessoas mais próximas, como parentes, compatriotas, anfitriões e benfeitores, que além do amor natural frustram também o amor adicionado decorrente dessa relação de proximidade. Tais pecadores são punidos no 9º e último círculo.

Na sequência, Dante quer ouvir a opinião de Virgílio sobre a usura, que este antes mencionou rapidamente, ao se referir a Caorsa. O seu guia inicia afirmando que “a natureza toma o seu curso/ do divino intelecto e da sua arte” (natura lo suo corso prende/ dal divino 'nteletto e da sua arte- v.99-100); e Virgílio diz a Dante:
e se tu ben la tua Fisica note,
tu troverai, non dopo molte carte,
che l’arte vostra quella, quando pote,
segue, come l’maestro fa’l discente;
sì che vostr’arte a Dio quase è nepote. (v. 101-105)

(“e se leres a tua Física cuidadosamente (a “Física” de Aristóteles)/ encontrarás, não muitas páginas depois do começo,/ que, quando pode, vossa arte segue a natureza/ como faz o aluno com relação ao mestre, assim vossa arte é de Deus quase neta” (note-se aqui a comparação e depois, a personificação).

Dante concebe assim a natureza como obra de Deus, e a arte também, indiretamente, por imitar a natureza. Mas o poeta não se apoia apenas em “o mestre dos homens que sabem”, Aristóteles (como o chama no Canto IV, v.131, para ele o maior filósofo). Também se apoia na Bíblia, como mostram estes versos:
Da queste due, se tu ti rechi a mente
lo Genesi dal principio, convene
prender sua vita e avanzar la gente; (v. 106-108)

(“Segundo estas duas, arte e natureza, se te recordas/ de como o Gênesis começa, é conveniente/ regrar a vida e caminhar a gente”).

O livro do Gênesis, em 3:19, mandava o homem ganhar a vida com o suor de seu rosto (4), i.e. prover a sua subsistência com o que lhe dava a natureza e a sua arte, ou com os bens da sua lavoura e da sua indústria (5).
E Virgílio chega afinal à questão levantada por Dante:
e perché l’usuriere altra via tene,
per sé natura e per la sua seguace
dispregia, poi ch’in altro pon la spene. (v.109-111)

(“o usurário prefere outra via,/ ele despreza tanto a natureza em si/ quanto a arte, sua seguidora; a esperança dele está em outro lugar”)

O usurário não ganha dinheiro com o suor do seu rosto. Seu ganho tem origem não no trabalho (na sua arte) mas no próprio dinheiro, o que é antinatural e antiético.

Para concluir, duas observações, uma sobre o conteúdo e outra sobre a forma. A primeira é que essa crítica de Dante à usura, baseada numa argumentação filosófica e religiosa, certamente contribuía para favorecer a importante burguesia comercial italiana de seu tempo, na medida em que os interesses dela conflitassem com os da burguesia financeira.

A outra observação refere-se ao modo como Virgílio é chamado por Dante-- O sol che sani ogni vista turbata (“Ó sol que sara vista perturbada”- v.91), depois do poeta mantuano explicar ao seu discípulo como está estruturado o Inferno. Há aqui uma recorrência de imagem relacionada ao sentido da visão.

Virgílio, no final do Canto, decide retomar a jornada, pois os Peixes (constelação) já cintilam no horizonte e o Carro (= a Ursa Maior) se estende sobre o Coro (= o vento noroeste), ou a Ursa Maior está naquele ponto do Céu donde sopra o vento Coro (6). Por essas referências, os comentaristas deduzem que se trata de 4 horas da manhã do sábado de aleluia (eles também sustentam, em sua maioria, que a jornada teve início na quinta-feira santa, 7 de abril de 1300. Como se sabe, a jornada de Dante, simbólica de sua evolução espiritual, ocorre nesses dias que antecedem o Domingo de Páscoa, do renascimento cristão para uma nova vida).

NOTAS

(1) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.2- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 412-413
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 361
(3) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.2- op cit, p. 439
(4) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”- op cit, p. 362
(5) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.2- op cit, p. 440
(6) Id., ib, p. 441

INFERNO- CANTO X



Virgílio e Dante continuam percorrendo o círculo dos hereges, caminhando por entre os sepulcros ardentes. Dante pergunta se lhe é permitido ver a gente que está dentro deles, uma vez que seus tampos estão levantados. Virgilio diz a ele que logo sua curiosidade será atendida. Diz também que os sepulcros serão fechados para sempre, depois que as almas, reunidas aos corpos (ressurrectos), retornarem de Josafá (é nesse vale, localizado perto de Jerusalém, que se realizará o Juízo Final segundo a tradição bíblica) (1).

Virgílio lhe explica ainda que naquela área estão os túmulos dos epicuristas (inclusive Epicuro), para quem a alma morria junto com o corpo.

Ouvindo Dante falar com o autor da “Eneida”, alguém se manifesta de um sepulcro, reconhecendo-o como “toscano” e pedindo para que ele ali se detenha:
O Tosco che per la città del foco
vivo ten vai così parlando onesto,
piacciati di restare in questo loco. (v.22-24)

(“Ó toscano que pela cidade ígnea/ passas vivo assim falando honesto/ te apraza deter-te neste lugar”.)

Dante, assustado, aproxima-se mais de seu mestre, em busca de proteção. Virgílio o tranquiliza dizendo que se trata de Farinata, seu conterrâneo, que já se ergueu do túmulo e é visto da cintura para cima, com seu ar altivo (Farinata degli Uberti, segundo os comentaristas, era um líder político de Florença que subiu ao poder com os guibelinos após a derrota dos guelfos na batalha de Montaperti em 1260, cinco anos antes de Dante nascer. Posteriormente porém os guelfos reconquistariam o poder e perseguiriam seus rivais, em especial os parentes de Farinata, motivo da reclamação deste, mais adiante).

Farinata pergunta quem foram os antepassados de Dante (Chi fuor li maggior tui?- v.42). Ouvindo a resposta deste, afirma que eles eram seus adversários políticos. Por duas vezes ele os mandou para o exílio (a primeira vez em 1248, quando os guelfos foram expulsos de Florença, inclusive Cacciaguida, avô de Dante; e a segunda vez, após a batalha de Montaperti, como nos informa o Mons. Pinto de Campos) (2).

Surge então, repentinamente, uma outra sombra que só aparece até o queixo, saindo do túmulo, evidenciando sua diferença de porte físico com Farinata. Tal sombra indaga, chorando:-- se Dante visita “este cego cárcere” (cf. a recorrência da imagem envolvendo o sentido da visão) pelo seu “alto engenho”, por que seu filho não o acompanha? Dante logo percebe que se trata de Cavalcante dei Cavalcanti, pai do poeta Guido Cavalcanti, seu amigo. Ele entende, equivocadamente, das palavras de Dante, que o filho já havia morrido. E lhe pergunta, emocionado: non fieri li occhi suoi lo dolce lome? (“não fere os olhos seus o doce lume?”- v.69). Essa manifestação de Cavalcante serve de exemplo, num modelar ensaio de Auerbach dedicado a este Canto X, para mostrar como a nossa atenção, enquanto leitores, é atraída antes para o ser humano do que para a ordem divina, que se contrapõe a esta (a “figura” terrena de Cavalcante impõe-se, prevalece, mesmo no além: para Auerbach, na “Divina Comédia”, “o além torna-se teatro do homem e das suas paixões”) (3).

Por outro lado, o mesmo adjetivo de dolce lome é repetido mais adiante, agora por Farinata, no v.82 -- dolce mondo. A conotação de tal palavra, pronunciada no Inferno, é de melancolia e nostalgia pelo mundo dos vivos, onde há a luz do Sol (Deus), que os condenados ali perderam para sempre.

Dante se justifica perante Cavalcante:
E io a lui: ‘Da me stesso non vegno:
colui ch’attende là per qui mi mena
forse cui Guido vostro ebbe a disdegno.’ ( v.61-63)

(“E eu a ele: ‘Por meu poder não venho:/ aquele que me espera lá por aqui me guia/ talvez até alguém que vosso Guido desdenhou”).

Por que o poeta Guido Cavalcanti desdenharia Virgílio? talvez pela diferença de suas concepções estéticas quanto à linguagem (Virgílio adotara na “Eneida” -- a sua “alta tragédia”, conforme Inf. XX, 113, escrita em latim -- o estilo elevado dos antigos) (4).

Antes que Dante pudesse explicar ao pai que o filho ainda vivia, Cavalcante “atrás caiu supino (=inerte) e mais não veio para fora” (supin ricadde e più non parve fora- v.72).

A cena em que Cavalcante é protagonista abrange os versos 52-72 e está intercalada numa outra cena, mais longa, a de Farinata (que inicia no v.22 e se estende até o final do Canto). Após a interrupção, Farinata, que se mantivera na mesma posição, no túmulo, prossegue de onde havia parado,afirmando que se seus descendentes não haviam aprendido a “arte” de retornar do exílio, “isso me atormenta mais que este leito” (ciò mi tormenta più che questo letto – v. 78). E prevê a Dante que ele também vai sentir o peso dessa arte antes de 50 meses (o que de fato ocorreria; lembremo-nos que a ação da “Comédia” situa-se em 1300 e que Dante seria exilado de Florença anos mais tarde, dentro desse prazo. O poeta usa o artifício de prever aqui o que já havia ocorrido com ele):
Ma non cinquanta volte fia raccesa
la faccia de la donna che qui regge,
che tu saprai quanto quell’arte pesa. (v.79-81)

(“Não vai cinquenta vezes vir acesa/ a face da dama que aqui nos rege/ e saberás quanto essa arte pesa”)

(a dama que rege o Inferno, a sua rainha, é Proserpina, esposa de Pluto, que na mitologia antiga é a deusa da lua, conforme Mandelbaum et al. (5), os quais entendem que o verso refere-se a cinquenta luas-cheias, ou seja cinquenta meses).

Farinata pergunta porque Florença é tão cruel com seus partidários. Dante lhe responde que isso é consequência da matança que ocorreu às margens do rio Arbia, ou seja, da matança da batalha de Montaperti (6):
Ond’io a lui: "Lo strazio e ‘l grande scempio
che fece l’Arbia colorata in rosso,
tal orazion fa far nel nostro tempio" (v. 85-87)

("E eu a ele: ‘A matança, o grande derramamento de sangue,/ que fez o Arbia colorir-se de vermelho/ nos levou a tais orações em nosso templo’". Note-se a recorrência, neste v.87, do vocabulário religioso).

Farinata diz que não foi o único responsável pela matança, mas foi o único, sim, a defender Florença no conselho guibelino, após a vitória sobre os guelfos, em que todos queriam arrasar a cidade. Ele afirma ainda -- esclarecendo uma questão levantada por Dante -- que os mortos podem ver longe como os presbitas, i.e. predizer o futuro, mas não têm condições de ver o que está perto, de saber o que ocorre no presente. Dante então pede a Farinata para informar a Cavalcante “que seu filho ainda está entre os vivos” (che ‘l suo nato è co’vivi ancor congiunto – v.111) (Dante sente-se culpado por não ter lhe dado essa resposta rapidamente, confundido naquele momento, por achar que Cavalcante conhecia também o presente, além do futuro).

Todavia, os mortos só podem fazer previsões até o Juízo Final, pois depois disso não haverá mais futuro (7). A “porta ao futuro” se fechará para eles:
Però comprender puoi che tutta morta
fia nostra conoscenza da quel punto
che del futuro fia chiusa la porta. (v.106-108)

(“Assim podes compreender que seja morta/ a nossa consciência desde o momento/ em que a porta ao futuro for cerrada”).

Na sequência, Dante é chamado por Virgílio, que se mantivera um pouco afastado. Mas antes de atendê-lo, pede a Farinata apressadamente para que lhe diga quem mais está com ele naquele círculo dos hereges. Ele diz então:
/.../ “Qui con più di mille giaccio:
qua dentro è 'l secondo Federico,
e 'l Cardinale; e de li altri mi taccio” (v.118-120)

(/.../ “Aqui jazem mais de mil comigo:/ lá dentro está o segundo Frederico/ e o Cardeal; e quanto aos outros me calo”)

Frederico II foi rei de Nápoles e da Sicília, e imperador do Sacro Império Romano de 1215 a 1250. Segundo Ciardi ele era considerado um epicurista assim como o era, assumidamente, Cavalcante dei Cavalcanti (8). Quanto ao Cardeal, informa que se trata de Ottaviano degli Ubaldini (circa 1209-1273), que teria dito, ao ser-lhe recusado um empréstimo pelos guibelinos: “Se tenho uma alma, eu a perdi por causa dos guibelinos, e nenhum deles me ajuda agora” (9), declaração que o torna culpado de heresia.

É curioso notar que essas informações são dadas pelos comentaristas (os atuais se apoiando nos mais antigos) e não por Dante-autor, que é muito sucinto a respeito dos personagens que cita, pressupondo o conhecimento deles por parte do leitor.

Em seguida, enquanto os dois poetas avançam em sua jornada, Dante se mostra pensativo, refletindo sobre a previsão que lhe fizera Farinata. Virgílio então lhe afirma:
“quando sarai dinanzi al doce raggio
di quella il cui bell’occhio tutto vede,
da lei saprai di tua vita il vïaggio.” (v.130-132)

(“quando estiveres diante do gentil esplendor/ daquela cujos belos olhos tudo vêem,/ dela saberás de tua vida a viagem”)

Depois os passos de Virgílio rumam para a esquerda, e avançam para o meio.  Dante o segue, por um caminho que vai dar num vale malcheiroso.

É interessante destacar, para concluir, que é uma atitude bem católica essa condenação aos epicuristas aqui realizada. Para Epicuro (342-270 a.C.), cuja moral foi muito mal interpretada, o supremo bem humano é o prazer, ou a ausência de dor. Prazer do corpo (dentro dos limites da razão; por isso nem todo prazer é desejável) e prazer da mente (sem o medo dos deuses, que são indiferentes às paixões humanas) (10). Como não considerar legítima essa busca do prazer em nossa vida para compensar, ainda que minimamente, a miséria da condição humana?

NOTAS

(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 359
(2) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.2- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 402
(3) Erich Auerbach- “Mimesis”. S.Paulo: Perspectiva, 1971- p. 172 (“Farinata e Cavalcante”- p.148-173)
(4) Id., ib, p. 157 e 159
(5) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”- op cit, p. 360-361
(6) Id., ib., p. 361
(7) Dante Alighieri- “A Divina Comédia”. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989- v.1, p.190
(8) John Ciardi- “Inferno” (tradução para o inglês e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition. W.W.Norton & Company, p. 806-807.
(9) Id., ib, p. 807
(10) “The Concise Encyclopedia of Western Philosophy and Philosophers”. New edition, completed revised. Edited by J.O.Urmson and Jonathan Rée. London: Unwin Hyman, 1991- p.92-93