quarta-feira, 26 de agosto de 2009

INFERNO- CANTO III




Canto III

Dante e Virgílio estão no portal do Inferno, que traz a inscrição famosa:

Per me si va ne la città dolente,
per me si va ne l’etterno dolore,
per me si va tra la perduta gente.
Giustizia mosse il mio alto fattore;
fecemi la divina podestate,
la somma sapïenza e’l primo amore.
Dinanzi a me non fuor cose create
se non etterne, e io etterno duro.
Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate.(v.1-9)

(“Por mim se vai à cidade do sofrimento,/ por mim se vai à dor eterna,/ por mim se vai à gente condenada./ Justiça moveu o meu alto artífice;/ sou obra da divina podestade (*),/ da suma sapiência e amor primeiro./ Antes de mim só existiam coisas eternas,/ e eu duro eternamente./ Deixai toda esperança, ó vós que entrais.”)
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(*) Podestade: “O primeiro magistrado, nas cidades centrais e setentrionais da Itália, na Idade Média” (1)

Note-se a musicalidade de toda essa inscrição, decorrente do refinado jogo fonético das sílabas escolhidas, em que o portal do Inferno, personificado, fala na primeira pessoa e onde estão presentes uma anáfora (repetição de "Per me si va" em v. 1-3), metonímia (a "dor eterna" é sinônimo de Inferno no v. 2) e aliteração (no v. 6, os sons sibilantes ocorrem três vezes).

Dante ouve na escuridão suspiros, choros e gritos, o que o emociona até as lágrimas. Virgílio o acalma, dizendo-lhe que ali é o lugar “daqueles que viveram sem merecer louvor ou execração” (...di coloro/ che visser sanza 'nfamia e sanza lodo- v.35-36). Dante repara numa bandeira, no ar girando, movendo-se rapidamente, sem parar, e atrás dela, uma longa fila de gente. Ele não acreditaria “que a morte tivesse desfeito tantos”(che morte tanta n’avesse disfatta.-v. 57). Compreende que aí estavam os tíbios, que desagradaram Deus e os inimigos de Deus. Não praticaram nem o bem nem o mal, mas só pensaram no seu própio interesse. Iam nus (os condenados sempre estão despidos, tal como Deus os criou e as artes plásticas representam os seres humanos) e aguilhoados por moscões e vespas. Os insetos faziam listras nos rostos deles com seu sangue, e esse sangue, misturado com suas lágrimas, caía a seus pés, onde alimentava vermes repulsivos.

A partir do v. 70, inicia-se outra cena. Dante, olhando além dos tíbios, vê muita gente na margem de um grande rio, e indaga a seu mestre a respeito disso. Mas Virgílio diz que tudo lhe será esclarecido quando chegarem àquela margem. Lá chegando, vem em sua direção, de barco, Caronte, um velho de barbas brancas, que assim se dirige aos condenados que vai transportar para a outra margem, gritando às “almas danadas”, como as chama, estas palavras:

Non isperate mai veder lo cielo:
i’ vegno per menarvi a l’altra riva
ne le tenebre etterne, in caldo e ‘n gelo. (v.85-87)
(“Não espereis mais ver o céu:/ eu venho para vos conduzir ao outro lado,/ à escuridão eterna, ao fogo e ao gelo “).


Em sua resposta, cheia de desespero, os condenados, que “perderam a cor e rangeram os dentes” (cangiar colore e dibattero i denti- v. 101- cf. o contraste desse "cangiar colore" com os “discos ígneos” que circundam os olhos de Caronte, piloto da “lívida laguna”) amaldiçoam Deus, seus pais, “a espécie humana e o lugar e o tempo e a semente” (l' umana spezie e 'l loco e 'l tempo e 'l seme- v.104, um polissíndeto) de sua concepção e de seu nascimento.

Antes disso, Caronte manda a “alma viva “ ali presente (Dante) procurar “outra via, outros portos”. Mas Virgílio intervém, mandando Caronte calar-se, pois a travessia deles foi decidida ”lá em cima”. As almas que estavam ali perdem a cor e rangem os dentes com as palavras do “demônio Caronte” que tem os “olhos como brasas” e as “faces lanosas”. Caronte os faz embarcar a todos, e dá com o remo nos retardatários. Assim que eles se movem pelas águas escuras, já um novo grupo se junta naquela margem do rio. Virgílio explica que são almas que morreram sob a ira de Deus. A justiça divina os impele, de modo que o temor se transforma em desejo. Elas estão ansiosas por atravessar o rio e cumprir a sua pena. Esse rio é o Aqueronte, um dos quatro rios do Inferno. Depois a “imensidão escura” estremece e um redemoinho irrompe da “terra encharcada de lágrimas”, com uma luz vermelha, fazendo Dante desfalecer: “e caí como o homem que o sono subjuga” (e caddi come l’uom cui sonno piglia- v.136).

Dante coloca assim no vestíbulo do Inferno, objeto do Canto III, os tíbios (= mornos; fracos; indolentes) ou oportunistas, aqueles que não tomaram partido na vida, a não ser o seu próprio. Não ganharam o Céu e nem mesmo o Inferno (situam-se por isso em seu vestíbulo, i.e. antes de Dante e Virgílio transporem o rio Aqueronte, que os fará ingressar no Inferno propriamente dito). Não foram bons nem maus. Não foram fiéis a Deus nem tampouco ao Diabo.

Ed elli a me: Questo misero modo
tegnon l’anime triste di coloro
che visser sanza ‘nfamia e sanza lodo. ( v.34-36)
(“E ele para mim: ‘Este modo miserável/ é adotado pelas almas tristes daqueles/ que viveram sem merecer louvor ou execração’ ”)

Virgílio tem por eles esta opinião:

Fama di loro il mondo esser non lassa;
misericordia e giustizia li sdegna:
non ragioniam di lor, ma guarda e passa. (v.49-51)
(“O mundo não deixará fama de sua vida;/ misericórdia e justiça os desprezam; / não falemos deles; olha e passa.”)

Dante, ao imaginar os castigos infligidos aos pecadores que cumprem pena no inferno, segue a chamada “lei do contrapasso”, que implica atribuir uma punição apropriada ao pecado cometido. Assim, como castigo, os tíbios estarão permanentemente seguindo a bandeira que se move sem parar, de um lado para outro, que não se fixa em nenhum lugar. Isso porque os oportunistas não optam por nada, estão sempre em movimento, não se estabelecem na defesa de alguma tese, alguma idéia, algum partido, representados pela bandeira do compromisso.

Muitos antigos comentaristas, segundo Mandelbaum, julgam que os versos 59-60, sobre alguém “que fez por covardia a grande recusa” (che fece per viltade il gran rifiuto- v.60), referem-se ao papa Celestino V, o qual renunciou ao pontificado cinco meses após assumi-lo, omitindo-se ao exercício de seu papel de reformador da Igreja numa época em que ela era merecedora de muitas críticas. Tal renúncia daria ocasião à ascensão de Bonifácio VIII, odiado por Dante, que lhe reserva um lugar na terceira vala do Malebolge, a dos simoníacos (Canto XIX). Curiosamente, Celestino V era um santo homem, um asceta, que seria canonizado posteriormente (2). O episódio mostra bem a diferença de concepção, a respeito do papel do cristão no mundo, entre Dante e seus contemporâneos, sendo que a do poeta florentino, mais moderna, prenuncia a atitude atual da Igreja participante de nosso tempo. A conclusão de que Dante é um poeta engajado é reforçada pelos versos 107-108 quando ele descreve os condenados "chorando forte, na margem desgraçada/ que espera por aqueles que não temem a Deus (forte piangendo, a la riva malvagia/ ch'attende ciascun uom che Dio non teme). Ele se dirige aqui, na realidade, ao leitor, procurando demovê-lo do pecado pela evocação dos horrores do Inferno... Uma vez ali, a situação será irreversível, e os condenados, “a gente sofredora” não contará mais com o bem do intelecto, i.e. o livre-arbítrio... (le genti dolorose/ c'hanno perdutto il ben de l'inteletto- v.17-18).

Nos v. 22-30, Dante considera as manifestações de tristeza e lamento das primeiras almas que ouve no Inferno como areia quando um furacão redemoinha. Os sons são equiparados a esse elemento físico (areia). Dante materializa assim aquelas manifestações sonoras de dor, torna-as concretas, palpáveis, o que aumenta seu impacto sobre a sensibilidade do leitor:

Quivi sospiri, pianti e alti guai
risonavan per l’aere sanza stelle,
per ch’io al cominciar ne lagrimai.

Diverse lingue, orribili favelle,
parole di dolore, accenti d’ira,
voci alte e fioche, e suon di man con elle

facevano un tumulto, il qual s’aggira
sempre in quell’aura sanza tempo tinta,
come la rena quando turbo spira.

(“Ali suspiros, choros e gritos altos/ ecoavam pelo espaço sem estrelas/ me suscitando lágrimas, mal entrei./ Línguas estranhas, horríveis falas,/ exclamações de dor, acentos de ira,/ vozes agudas e roucas, e bater de mãos,/ produziam um tumulto, que rodopia/ para sempre naquele ar eterno e sombrio/ como areia quando um furacão redemoinha.”)

Estão presentes aqui rimas internas (parole di dolore- v.26) que intensificam a sonoridade dos versos. Tais rimas já ocorreram no v. 10 (parole di colore) e vão ocorrer também nos v.38-39 (ribelli/fedeli). A caracterização do Inferno como l'aere sanza stelle (v.23) -- imagem recorrente na primeira parte do divino poema -- é algo que impressiona o leitor, e atribui maior força ao seu último verso, no Canto XXXIV, quando os dois poetas, ao sair do Inferno, revêem as estrelas: E quindi uscimmo a riveder le stelle (E dali saímos para rever as estrelas-v.139) (para esse efeito também contribui a afirmação categórica de Caronte, ao embarcar as "almas danadas", de que nunca mais elas verão o céu (cf. v.85 citado acima).

Nos versos 112-117 temos uma outra comparação, na realidade, uma dupla comparação: na primeira, Dante associa as almas dos condenados vindos um a um para a barca de Caronte com as folhas que se desprendem da árvore no outono; na segunda, a associação é com o falcão amestrado do caçador, que retorna à prisão a um gesto dele:

Come d’autunno si levan le foglie
l’una appresso de l’altra, fin che ‘l ramo
vede a la terra tutte le sue spoglie,

similemente il mal seme d’Adamo
gittansi di quel lito ad una ad una,
per cenni come augel per suo richiamo.

(“Como no outono as folhas se desprendem/ uma depois da outra, até que o ramo/ vê na terra todos os seus despojos,/ similarmente as más sementes de Adão/ desceram da margem uma por uma/ ao aceno, como um falcão vem, quando chamado.”)

T.S.Eliot, no “The Waste Land” (3), faz alusão nos versos 55-57 do Canto III ao referir-se à gente anônima que vê deslocar-se por uma rua de Londres a caminho do trabalho:

Unreal City,
Under the brown fog of a winter dawn,
A crowd flowed over London bridge, so many,
I had not thought death had undone so many.

Os versos do Canto III são aqueles em que Dante-personagem nota vir atrás da bandeira “tão longa fila/ de gente que eu nunca acreditaria/ que a morte tivesse desfeito tantos”:
/.../ si lunga tratta
di gente, ch' io non averei creduto
che la morte tanta n'avesse disfatta (v.55-57).





NOTAS

(1) “Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”. 1a ed., Nova Fronteira,s.d.
(2) Dante Alighieri- “Obras Completas, v.2- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p.53-65
(3) T.S. Eliot- “Collected Poems 1909-1962”. Great Britain, Faber and Faber,1986- p.65 e 81 (Notes)




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