sábado, 29 de agosto de 2009

INFERNO- CANTO XII




Uma das razões do encanto da Divina Comédia é a de que ela envolve em seu enredo personagens mitológicos ou históricos, incorporando ao poema suas histórias curiosas, singulares ou dramáticas. Eles são mencionados para ilustrar uma dada situação ou para exemplificar o tipo de pecadores dos diversos círculos infernais. Todavia, Dante não reconta as histórias desses personagens, apenas faz ligeiras menções a eles, dando aquelas como subentendidas. É o que ocorre no Canto XII.

O Canto inicia descrevendo o cenário pedregoso, de ruínas, de rochas tombadas e despedaçadas, em que se encontram Dante e seu guia (mais adiante, o leitor vai entender que isso é consequência do terremoto que abalou o Inferno quando Cristo morreu, conforme a Bíblia). Os poetas buscam uma passagem que lhes permita avançar em sua descida ao próximo círculo do Inferno, o sétimo, dos violentos. Ao encontrar tal passagem, deparam-se com a “infâmia de Creta”, i.e. o Minotauro, obstaculizando a descida (esse é um fato recorrente: a presença de um personagem mitológico representando um obstáculo ao avanço dos dois viajantes, que é neutralizado pela intervenção de Virgílio, enviado do Céu indiretamente, por meio de Beatriz). Tal personagem ou monstro reveste-se sempre de um caráter simbólico, relacionado ao círculo que se vai visitar. No caso, tanto o Minotauro quanto os Centauros, que aparecerão logo mais, são metade gente e metade animal e por isso, símbolos apropriados da bestialidade humana, característica dos tiranos e outros assassinos punidos nesta primeira volta do sétimo círculo (1).

Dante-autor refere-se à manifestação irada da “infâmia de Creta” quando os viu, ela que foi “concebida na falsa vaca” (che fu concetta ne la falsa vacca- v.13). Segundo a mitologia clássica, Pasifae, mulher do rei Minós, de Creta, gerou o Minotauro, por ter tido, escondida numa vaca de madeira, relações sexuais com um touro. O monstro depois foi encerrado num labirinto. Alimentava-se de carne humana. Anualmente, para tal finalidade, eram sacrificados sete jovens (rapazes e moças) atenienses. Um deles seria Teseu (o “duque de Atenas”), por quem se apaixonara Ariadne (irmã do monstro). Com a ajuda dela, que lhe deu uma espada e um novelo de fio, ele conseguiu matar o Minotauro e sair do labirinto (2).

Virgílio diz ao irado Minotauro que talvez ele pense que quem está ali é o ”Duque de Atenas” ,
che sù nel mondo la morte ti porse?
Pàrtiti, bestia, ché questi non vene
ammaestrato da la tua sorella,
ma vassi per veder le vostre pene. (v.18-21)

(“o qual no mundo acima te deu morte?./Vai-te, besta, porque este aqui não vem/ instruído pela tua irmã, / e sim para observar as vossas penas.” ).

Aproveitando a desorientação causada pela fúria do Minotauro—e aqui surge uma comparação entre o modo como se moveu e o de um touro, após receber o golpe mortal no matadouro-- eles avançam pela passagem “por aquelas pedras que se moviam/ debaixo de meus pés pelo peso diferente” (outra recorrência: a referência ao peso de Dante, por estar vivo, contrastando-o assim com relação às inúmeras sombras que ali cumprem pena, o que contribui para criar uma impressão sugestiva).

A seguir, Virgílio conta a Dante que da outra vez que desceu ao Inferno não havia aquela ruína e rochas destroçadas:
Ma certo poco pria, se ben discerno,
che venisse colui che la gran preda
levò a Dite del cerchio superno, (v.37-39)

(“Mas foi pouco antes, se bem discirno,/ de vir aquele que a grande presa/ tirou de Dite do círculo superno (= superior)”

Explicitando: Virgílio desceu ao Inferno pouco antes da morte de Cristo. Este, por sua vez, após a morte, desceu ao Limbo para dali tirar os pagãos justos e levá-los consigo para o Céu (“a grande presa”). Lembremo-nos de que o nome de Cristo (= Deus) jamais é pronunciado no Inferno. Por isso ele é chamado “aquele que a grande presa tirou de Dite” (ou Lúcifer).

Aproximam-se depois do “rio de sangue no qual fervem/ aqueles que feriram os outros pela violência” (la riviera del sangue in la qual bolle/ qual che per vïolenza in altrui noccia- v. 47-48), os apenados da primeira volta do sétimo círculo. O “rio de sangue”, que será identificado posteriormente, é Flegetonte, o terceiro rio do Inferno (eles já ultrapassaram antes o Aqueronte e o Estige). E Dante-autor exclama:
Oh cieca cupidigia e ira folle,
che sì ci sproni ne la vita corta,
e ne l’etterna poi sì mal c’immole! (v.49-51)

(“Ó cega cupidez e ira louca,/ que tanto nos aguilhoa na vida curta,/ e depois, na eterna, nos imerge em tanto mal!”).

Em torno desse rio ou fosso de sangue fervente eles avistam uma fila de centauros, que corriam “armados com setas, como se andassem à caça, no mundo acima.” Detêm-se à vista dos visitantes. Três centauros separam-se do grupo, e um deles indaga de longe qual martírio os dois vêm cumprir. Devem falar de longe, pois se se aproximarem, seu arco será disparado. Virgílio lhe responde que darão resposta somente a Quíron (o centauro sábio, tutor de Aquiles, segundo a lenda). Virgílio explica para Dante que esse que se manifestou é Nesso “que morreu pela bela Dejanira,/ e fez de si vingança para si mesmo” (Dejanira é a mulher de Hércules, que matou Nesso. Mas o manto deste, com seu sangue envenenado, foi usado por Hércules e acabou por matá-lo também, vingando-o desse modo) (3). Virgílio identifica ainda os outros dois: Quíron, chefe dos centauros, e Folo, que, furioso, participou da campanha contra os Lapitas (4).


Esses centauros que correm em torno do fosso, aos milhares, têm por função vigiar os condenados aí imersos, que cumprem sua pena. São os violentos contra o próximo, e seus bens. Eles são flechados quando se erguem do sangue mal-cheiroso mais do que lhes é permitido.



Depois, quando os dois se aproximam de Quíron, este observa que Dante tem peso:
disse a’ compagni: “Siete voi accorti
che quel di retro move ciò ch’el tocca?
Così non soglion far li piè d’i morti”. (v.80-82)

(“disse aos companheiros: ‘Vós notastes/ como o de trás move aquilo que toca?/ Isso não costuma fazer os pés dos mortos’”).

Virgílio então lhe explica que Dante é vivo, e que lhe cabe mostrar o “vale escuro”. Pede em seguida a Quíron que indique um dos centauros para lhes acompanhar
e che ne mostri là dove si guada,
e che porti costui in su la groppa,
chè non è spirto che per l’aere vada. (v. 94-96)

(“e que nos mostre lá onde se possa transpor o fosso a vau,/ e que leve este homem em sua garupa,/ pois não é espírito que vá pelo ar“).

Nesso é designado para acompanhá-los, e eles avançam.
Or ci movemmo con la scorta fida
lungo la proda del bollor vermiglio,
dove i bolliti facieno alte strida. (v.100-102)

(“Agora, avançamos com a escolta fiel, / costeando a fervura vermelha/ onde os fervidos
faziam gritaria”).

O Centauro informa que estão ali imersos até os olhos os tiranos “que derramaram sangue e saquearam” (É son tiranni/ che dier nel sangue e ne l’aver di piglio- v.104-105). São citados nominalmente Alexandre (Alexandre o Grande, da Macedônia, ou Alexandre de Pherae, tirano da Tessália- c.368 a C), Dionísio (tirano de Siracusa, de 405 a 367 a C), Azzolino (1194-1259), que massacrou os cidadãos de Padua, e Obizzo da Esti (1247-1293), senhor de Ferrara, confome as notas de Mandelbaum et al. (5).

Mais adiante há uma referência a outro assassino, imerso no sangue até a garganta, que praticou seu crime dentro de uma igreja. Trata-se, ainda conforme os mesmos comentaristas, de Guy de Montfort que em 1271 matou o príncipe Henrique, filho de Ricardo Duque de Cornwall, para vingar o pai. Seu coração foi colocado num cofrezinho de ouro junto à estátua a Henrique erigida em ponte do rio Tâmisa. Por isso os versos 119-120 dizem: “Dentro do lar de Deus, ele feriu/ um coração que no Tamisa vela” (Colui fesse in grembo a Dio/ lo cor che ‘n su Tamisi ancor si cola). E Dante prossegue assim, num pseudo-realismo que faz o poema soar realmente como um relatório de viagem:
Poi vidi gente che di fuor del rio
tenean la testa e ancor tutto ‘l casso;
e di costoro assai riconobb’io. (v.121-123)

(“Depois vi gente que fora do rio/ mantinha a cabeça e mesmo o peito,/ e a muitos deles bem reconheci.”)

Posteriormente o poeta florentino vê condenados com a cabeça ou mesmo o peito fora do rio (a maior ou menor imersão no Flegetonte está relacionada ao grau de violência praticada).

Mais adiante, o sangue do rio se torna cada vem mais raso, permitindo que só “cozinhe” os pés. Mas ele se avolumará novamente, pouco a pouco, do outro lado, e quando estiver com a profundidade adequada outros tiranos serão ali castigados, como Átila, rei dos Hunos (433-453), Pirro (provavelmente o filho de Aquiles, que matou muitos na Guerra de Tróia) e Sexto (filho de Pompeu, que praticou atos cruéis de pirataria), além de dois salteadores de estrada, contemporâneos de Dante, Rinier de Corneto e Rinier Pazzo. (6). Aqui o autor usa uma linguagem curiosa, afirmando que a “divina justiça”
/.../ e in etterno munge
le lagrime, che col bollor diserra,
a Rinier da Corneto, a Rinier Pazzo,
che fecero a le strade tanta guerra. (v.135-138)

(“eternamente ordenha/ lágrimas que a fervura libera/ de Rinier de Corneto, de Rinier Pazzo,/ esses que fizeram nas estradas tanta guerra”).

Lembremo-nos de que são castigados nessa primeira volta do círculo os que usaram de violência contra o próximo (derramando seu sangue: por isso cumprem pena imersos no sangue), e também contra os seus bens, conforme a concepção de Dante, explicitada no Canto anterior. A punição imposta aos pecadores, nas duas próximas voltas, será não essa imersão no sangue fervente e mal-cheiroso mas a transformação em árvores exóticas dos suicidas e o dilaceramento por cães dos dilapidadores de seus bens ou o suplício no areal ardente dos violentos contra Deus, a natureza e a arte (7).

Cumprida sua tarefa, Nesso retorna, após deixar os dois poetas do outro lado do rio de sangue fervente onde aqueles violentos são punidos.


NOTAS

(1) John Ciardi- “Inferno” (tradução e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition. W.W.Norton & Company, p. 814
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 362-363
(3) Id., ib, p. 363
(4) Id., ib, p. 363-364
(5)  Id., ib, p. 364
(6)  Id., ib, p. 364
(7) Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.2- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-”Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 445



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