sábado, 29 de agosto de 2009

INFERNO- CANTO IX





Impedidos de entrar em Dite -- a cidade de Lúcifer --, Virgílio e Dante aguardam o auxílio celestial para concretizar sua intenção. Essa cidade (ou melhor cidadela) abrange os próximos círculos do Inferno, onde estão os condenados por pecados mais graves, de acordo com a escala de valores adotada pelo poeta florentino. Até aqui só foram percorridos os círculos relativos aos pecados da incontinência -- luxúria, gula, avareza/prodigalidade, ira (2º ao 5º círculos; o 1º é o do Limbo). Os próximos vão referir-se aos pecados da violência (7º círculo) e da fraude (8º e 9º círculos).

Amedrontado, a confiança de Dante em seu guia vacila. Pergunta se alguém do primeiro círculo já desceu aos outros círculos do Inferno. Virgílio o tranquiliza, dizendo que ele já desceu uma vez até a Judeca (esta é uma área localizada na região mais funda do Inferno, no nono e último círculo). Virgílio diz que foi até lá a fim de buscar um espírito, atendendo a um chamado de Eritone, aquela “que convocava as sombras para os corpos seus”: chi richiamava l'ombre a' corpi sui- v.24 (segundo Mandelbaum et al., essa feiticeira, na obra do poeta romano Lucano, convocou um espírito do mundo dos mortos para revelar a Pompeu o resultado da batalha de Farsalia) (1).

Naquela alta torre antes avistada, de “cimo incandescente”, na escuridão, Dante vê surgirem três Fúrias, com seus membros e modos femininos. Traziam “hidras (= serpentes) verdíssimas” como cinto e pequenas serpentes por crinas. Elas são as servas de Proserpina, rainha do Inferno, mulher de Pluto. As Fúrias, ou Erínias, citadas são três: Megera, Aleto, Tesífone. Elas estão tintas de sangue, pois se ferem no peito, se batem e gritam. Em vista disso, Dante, receoso, se aproxima mais do guia, buscando proteção. Elas invocam Medusa, para transformar o intruso (Dante) em pedra, caso ele olhe para ela. Querem com isso vingar-se de um outro intruso, Teseu, o qual desceu antes ao Hades para raptar Proserpina. Aprisionado lá, foi depois libertado por Hércules.

Na interpretação do Mons. Pinto de Campos, as Fúrias simbolizam o remorso. Elas são filhas de "Aqueronte, que quer dizer tristeza, ou privação da graça, e da Noite, que quer dizer ignorância. As serpentes em sua cintura e na cabeça sugerem fraudes e enganos. Segundo esse mesmo autor, a Medusa, de “funesta beleza” (daí seu apelo sensual), é uma das três irmãs Gorgones da mitologia grega. Medusa significa esquecimento  (2).

Virgílio manda Dante tapar bem os olhos (caso contrário, nunca mais retornará para cima, quer dizer ficará no Inferno). Não contente com isso, ele próprio põe suas mãos sobre as de Dante (quer assegurar-se assim de que seu discípulo se manterá na correta via). Na sequência, o poeta aconselha o leitor a estar atento ao sentido oculto de suas alegorias:
O voi ch’avete li’ntelletti sani,
mirate la dottrina che s’asconde
sotto ‘l velame de li versi strani. (v. 61-63)

(“O vós que tendes o intelecto são/ observai a doutrina que se esconde/ sob o velame desses versos estranhos”)

Esses versos mostram como Dante é poeta conscientemente engajado na defesa da sua concepção religiosa (católica) do mundo, o que prova a compatibilidade entre a grande poesia e o engajamento a uma causa.

Ouve-se a seguir um estrondo, que estremece as duas margens do Estige. O poeta aqui primeiro faz o registro sonoro e depois relata a ação, situação semelhante à do Canto anterior, em que a aproximação a Dite é anunciada por um “alto lamento”. Esse estrondo é comparado ao da tempestade na floresta, que despedaça ramos e afugenta animais e pastores (note-se a precisão da poesia visual de Dante). O som anuncia a chegada do mensageiro celeste, que vem em socorro da razão humana impotente. Dante faz aqui uma comparação. A chegada desse anjo do céu – quando “mais de mil” almas condenadas, imersas no pântano, fogem -- é comparada à da serpente, que faz as rãs fugirem, dispersando-se na água e buscando abrigo em terra. Como se vê, as imagens de animais retornam intermitentemente nesses Cantos do Inferno.
O enviado celeste cruza o Estige sem molhar os pés, apenas afastando de seu rosto o ar pesado do pântano. E com um toque de vareta abre a porta de Dite, sem encontrar resistência. Verifica-se nessa passagem a ocorrência do maravilhoso, num clima mágico, semelhante ao das histórias infantis...




Em sua fala o enviado do Céu critica a audácia dos demônios e menciona a vontade “cujos fins não podem ser mudados” (i.e. a vontade de Deus. Como já foi dito antes, seu nome não é pronunciado no Inferno). Eles não podem ir “contra os fados”, ou seja, os desígnios divinos. Da mesma forma que Cérbero, representante dos demônios (“vosso Cérbero”), não pôde resistir à ação de Hércules, que o retirou à força do Hades, deixando as marcas das cadeias em seu focinho e pescoço, assim também agora, em Dite, eles não podem opor-se à vontade divina. O mensageiro se retira e os dois entram na cidade de Lúcifer. Dante está curioso para saber como ela é, dentro de seus muros. A menção à sua curiosidade estimula a nossa própria, a respeito do assunto.

Dante olha em torno “e vê por todo lado uma grande planura/ cheia de dor e de tormento” ( e veggio ad ogne man grande campagna, / piena di duolo e di tormento rio.- v.110-111). Compara a paisagem que vê com Arles e Pola, regiões com muitos sepulcros (eram antigos cemitérios romanos) (3), “salvo que o modo aqui era mais amaro” (salvo che ‘l modo v’era più amaro – v.117). É interessante sublinhar que Dante-autor frequentemente recorre ao passado, como nesse caso, ou à mitologia clássica, para produzir no leitor uma sensação de estranhamento equivalente àquela que seria causada pelo “outro mundo”. ..




Entre os túmulos, chamas se espalhavam, deixando-os todos esbraseados.
Tutti li lor coperchi eran sospesi,
e fuor uscivan sì duri lamenti,
che ben parean di miseri e d’offesi. (v.121-123)

(“Os tampos dos túmulos estavam levantados/ e de cada um deles saíam tão duros lamentos/ que pareciam vir de torturados”).

Virgílio informa a Dante quem ocupa o sexto círculo:
E quelli a me: “Qui son li eresïarche
con lor seguaci, d’ogne setta, e molto
più che non credi son le tombe carche.

Simile qui con simile è sepolto,
e i monimenti son più e men caldi.” (v.127-131)

(“Aqui estão os heresiarcas (4)/ e seus sequazes, de todas as seitas;/ esses túmulos estão mais cheios do que pensas./ Aqui igual com igual é sepultado/ e os túmulos estão mais e menos quentes”
(a intensidade de calor varia, certamente, em função da maior ou menor heresia).

E os dois poetas seguem em frente, passando “entre tormentos e altos muros” (tra i martìri e li alti spaldi- v.133).

NOTAS

(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 358
(2) Dante Alighieri- “Obras Completas, v.2- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p.368-369
(3) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p.359

(4) Heresiarca, segundo o dicionário Aurélio, significa “fundador de seita herética”

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