sábado, 29 de agosto de 2009

INFERNO- CANTO VII





Prosseguindo em sua jornada, Dante e Virgílio encontram Pluto, o guardião do quarto círculo, que atemoriza Dante ao invocar Satã numa linguagem incompreensível (v.1). Mas Virgílio “que tudo sabe” (che tutto seppe- v.3), e entende por isso o que ele disse, manda-o calar-se, pois sua jornada “foi desejada no alto”. Esse Pluto, imaginado por Dante-autor, tem voz desagradável, o focinho proeminente e está cheio de raiva.
Pluto, originalmente, é o rei do mundo subterrâneo, ou do Inferno (o Hades), na mitologia grega. É também o deus da riqueza. Foi certamente por essas associações que Dante chamou assim o guardião do círculo dos avarentos e perdulários, aqueles que não se relacionam bem com a riqueza, cujo valor superestimam ou subestimam.
Virgílio manda-o calar-se nestes termos: Taci, maladetto lupo! (“Cala-te, lobo maldito!”- v.8), o que nos remete ao Canto I, em que apareciam três feras, uma das quais era uma loba magra, que simbolizava a avareza.
Como já ocorrera antes, com Caronte e Minós (Cantos III e V), Virgílio manda Pluto calar-se, pois
Non è sanza cagion l’andare al cupo:
vuolsi ne l’alto, là dove Michele
fé la vendetta del superbo strupo. (v.10-12)

(“Não é sem razão esta jornada:/ ela foi desejada no alto, lá onde Miguel/ vingou-se da arrogante rebelião”)

Por que Dante-autor faz Virgílio lembrar aqui do anjo Miguel, e também da rebelião dos anjos maus? Certamente para marcar posição, para mostrar que seu campo é antagônico ao dos demônios. Os dois poetas tomaram o partido dos inimigos dos demônios.

Com as palavras de Virgílio, a fera cai ao chão. Dante-autor compara essa queda à das velas quando se parte o mastro:
Quali dal vento le gonfiate vele
caggiono avvolte, poi che l’alber fiacca,
tal cadde a terra la fiera crudele. (v.13-15)

(“Tal como velas, infladas pelo vento, caem,/ embaraçadas numa pilha, quando o mastro parte,/ assim caiu à terra a fera cruel”)

No quarto círculo estão assim os avarentos e os perdulários, i.e. os que gastaram de menos ou demais:
Ed elli a me: Tutti quanti fuor guerci
sì de la mente in la vita primaia,
che con misura nullo spendio ferci. (v.40-42)

(“E ele a mim: Todos estes, à esquerda e à direita, foram/ tão estrábicos mentais na vida primeira/ que nenhum dispêndio fizeram com medida”).

Note-se aqui a recorrência de imagem relacionada ao sentido da visão associada aos que cumprem pena no Inferno. Anteriormente, o poeta já usara a imagem de “cegos” para indicar a condição desses desgraçados.

O castigo deles (tanto dos avarentos, à esquerda, que abrangem clérigos, papas e cardeais (v.46), como dos perdulários, à direita) é o de rolarem permanentemente pedras enormes, num semicírculo, sendo que nos dois pontos extremos as duas multidões se chocam, umas nas outras, e se perguntam, “como se latissem” (cf. a associação ao cão- v.43): “Por que entesouras?, por que esbanjas?” (“Perché tieni?”, “Perché burli?”- v.30 ), sendo a primeira pergunta feita pelos perdulários aos avarentos, e a segunda, por estes para aqueles). Sua punição é assim estarem permanentemente “rolando pesos à força de seus peitos” (voltando pesi per forza di poppa- v.27).



Dante não reconhecerá ninguém nesse círculo pois a “vida imperceptível que os fez sujos/ agora os torna irreconhecíveis” (la sconoscente vita che i fé sozzi,/ ad ogne conoscenza or li fa bruni ) ( v.53-54).

Na sequência há uma longa digressão (v.67-96) sobre a Fortuna, essa figura da tradição pagã (esotérica) que Dante incorpora à sua visão teológica. Ela, personificada, é considerada uma “ministra geral e guia”. A Fortuna abarca todos os bens terrenos. Mas eles são vãos,
ché tutto l’oro ch’è sotto la luna
e che già fu, di quest’anime stanche
non poterebbe farne posare uma. (v.64-66)

(“pois todo o ouro que há debaixo da lua,/ ou que já houve, não poderia oferecer repouso/ a nem mesmo uma dessas almas cansadas”, i.e. as que rolam pedra eternamente).

Assim, aqueles bens da Fortuna, usufruídos efemeramente, “os quais a humana gente disputa” (per che l’umana gente si rabbuffa- v.63), o ouro (ou o dinheiro, ou a riqueza), tem seu valor relativizado, quando visto pela ótica da vida eterna, o que Dante lembra aos avarentos, muitos deles clérigos, mais uma crítica do poeta católico à Igreja de seu tempo.

A Fortuna está autorizada por “Aquele cujo saber tudo transcende” (Colui lo cui saver tutto trascende- v. 73) (mais uma forma indireta de referir-se a Deus) a promover mudanças de tempos em tempos na vida das nações e das pessoas no tocante à posse dos bens. Assim, ela provê, julga e mantém seu reino como “as outras inteligências” que regem os céus (1) os deles. Move a sua roda, indiferente às queixas das pessoas quanto às mudanças da sorte:
ma ella s’è beata e ciò non ode:
con l’altre prime creature lieta
volve sua spera e beata si gode. (v.94-96)

(“mas ela, venturosa, isso não ouve:/ feliz, com os outros seres primeiros ,/ move a sua roda e se ufana em sua bem-aventurança).

Dante-autor estabelece, nos versos 73-85, um símile entre os céus -- cujas partes iluminam a terra desigualmente (2) -- com a distribuição desigual da riqueza entre as nações e as pessoas. Essa imagem é dinâmica, pois a distribuição desigual da luz/ dos bens se altera de tempos em tempos. Verifica-se dentro dessa comparação uma outra, pois o juízo dessa mulher, a Fortuna, “está oculto como a serpente na relva” (che è occulto come in erba l’ angue- v. 84). Introduz-se aqui assim mais um animal, os quais vêm sendo sempre associados ao mal  (mesmo os pássaros do Canto V, sobre os amantes Paolo e Francesca, apesar de seu caráter romântico, não deixavam de estar associados ao pecado da luxúria).

Logo adiante, o poeta usa linguagem com conotação religiosa ao afirmar que a Fortuna é frequentemente “posta na cruz” (posta in croce- v.91) pelos que se queixam dela.

Virgílio depois convida Dante a prosseguir em sua descida no Inferno (cuja conformação, como já vimos, é a de um funil, onde níveis mais baixos correspondem a pecados mais graves):
Or discendiamo omai a maggior pieta;
Già ogne stella cade che saliva
Quand’io mi mossi, e ‘l troppo star si vieta. (v.97-99)

(“Desçamos agora a lugar de dor maior; já caem as estrelas que subiam/ quando eu parti, e ficar demais se veda”)

As referências cronológicas indicadas ao longo dos versos até este Canto permitem que Mandelbaum et al .deduzam o seguinte: se Dante deparou-se com as três feras na alvorada da Sexta-Feira Santa de 1300, Virgílio o encontrou ao meio-dia e os dois poetas entraram no Ante-Inferno na noite dessa Sexta-Feira. Estarão no quinto círculo logo depois da meia-noite do Sábado de Aleluia e no sexto círculo às 4 horas da manhã desse Sábado (3).

O quinto círculo é habitado pelos iracundos. Ao entrarem nele, Virgílio diz a Dante, de modo paternal:  "Filho, agora vê/ a alma dos que sucumbiram à ira" ( Figlio, or vedi/ l’anima di color cui vinse l’ira- v.115-116 ). Tais condenados estão todos nus, enlameados, mergulhados num pântano chamado Estige. Batem-se o tempo todo, com as mãos, a cabeça, o peito e os pés, e se mordem, dilacerando as carnes uns dos outros.


Debaixo da água quente e suja desse pântano, que borbulha, há ainda gente que suspira. São os rancorosos, que guardam dentro de si a ira, sem deixá-la vir à tona, como ocorre com eles próprios, aí submersos. Não podem nem completar as palavras inteiras. Mas Virgílio os entende, e assim se refere a eles ao seu acompanhante:
Fitti nel limo dicon: ‘Tristi fummo
ne l’aere dolce che dal sol s’allegra,
portando dentro accidïoso fummo:

or ci attristiam ne la belletta negra.’ (v. 121-124)

(“Presos no limo dizem: ‘Tristes fomos/ no ar doce que se alegra do sol,/ levando dentro acidioso fumo/ tristes ficamos agora nesta lama negra.’”)


”Acidioso” significa o que tem “acídia”, palavra que denota “abatimento de corpo e do espírito” (4). É o caso desses rancorosos, abatidos pelos sentimentos que os dominam. Note-se aqui o hábil efeito de contraste que Dante-autor produz quando faz os rancorosos mencionar, com melancolia, o “ar doce que se alegra do sol” que eles, enquanto vivos, ignoraram, ao guardar para si a sua raiva. Agora, que cumprem pena mergulhados na lama negra do Inferno, o ar não é doce nem há alegria nem sol...

Os dois poetas circundam esse pântano, “com os olhos postos nos que engoliam lama” (con li occhi vòlti a chi del fango ingozza- v.129), e chegam então ao pé de uma torre.

NOTAS

(1) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.2- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p.285
(2) Id, ib,  p. 285
(3) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 357
(4) “Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”. 1a ed., Nova Fronteira,s.d.






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