segunda-feira, 21 de setembro de 2009

INFERNO- CANTO XXXIII



Ugolino- Henry Fuseli
        
            Após a pergunta de Dante, formulada no final do canto anterior, o condenado que roía a nuca do outro interrompe a sua horrível atividade:

La bocca sollevò dal fiero pasto
quel peccator, forbendola a' capelli
del capo ch' elli avea di retro guasto. (v. 1-3)

A boca levantou do fero pasto/ aquele pecador, limpando-a nos cabelos/ da cabeça que ele roía atrás.

            Logo os dois envolvidos nessa cena grotesca são identificados: o primeiro é o conde Ugolino della Gherardesca, guibelino, ex-podestà (principal magistrado) de Pisa, e o outro, cuja cabeça é devorada, é o arcebispo Ruggieri degli Ubaldini, antigo aliado político que o traiu, prendendo-o numa torre, após Ugolino aceitar seu convite de retornar a Pisa, com a sua ascensão ao poder. Na torre, deixou-o morrer de fome, juntamente com seus quatro “filhos”, como são referidos nos versos  (na realidade, são dois filhos e dois netos) (1). A “lei do contrapasso” manifesta-se aqui de forma bem evidente: assim como Ruggieri o fez morrer de fome, agora no Inferno a punição eterna deste é servir de pasto ao conde.

            Ugolino e Ruggieri estão numa região limítrofe entre Antenora e Tolomeia. A primeira, como já vimos, é a área do nono círculo em que ficam os traidores da pátria, caso de Ugolino, acusado de entregar castelos de Pisa para as cidades de  Luca e Florença. A outra área é reservada aos que traíram seus convidados e associados, caso do Arcebispo, que procedeu daquela forma reprovável com relação a Ugolino quando se apoderou do controle de Pisa (2).

            O conde Ugolino responde à pergunta de Dante contando sua história, apesar do sofrimento que lhe causa relembrar os fatos. Mas ele o fará, pois isso contribui para prejudicar a fama de Ruggieri em nosso mundo. E também para que os pisanos saibam a crueldade a que foram submetidos na torre, pela qual também foram responsáveis, após Ruggieri jogá-los contra Ugolino.

Ugolino- G.Doré
             Ugolino e seus “filhos” já estavam presos há muitos meses quando ele teve um sonho premonitório: sonhou que Ruggieri era o senhor de uma caçada e perseguia o lobo e seus filhotes com suas cadelas adestradas (o povo revoltado contra ele). Após breve corrida, eles, exaustos, foram alcançados por elas, que dilaceraram seus flancos.

            Ao acordar, Ugolino ouviu que os filhos, dormindo, choravam e pediam pão:

Quando fui desto innanzi la dimane,
pianger senti' fra ' l sonno i miei figliuoli
ch' eran con meco, e dimandar del pane. (v.37-39)

Quando despertei antes de romper o dia,/ chorar ouvi, dentro do sono, meus filhos/ que estavam comigo lá, pedindo pão.

            Esperaram o alimento inutilmente. E ouviram depois, embaixo, a porta da torre ser pregada, o que significava sua condenação à morte pela fome (o som aqui é um elemento a mais que Dante mobiliza para criar o clima de pesadelo desejado).    

            Ugolino não chorou mas por dentro petrificou (Io non piangëa, sì dentro impetrai: - v. 49). Passa-se o tempo, e ele, desesperado com a situação, morde as próprias mãos. Os filhos, pensando que fizera isso pela fome, oferecem suas próprias carnes para alimentá-lo:

/.../ ‘Padre, assai ci fia men doglia
se tu mangi di noi: tu ne vestisti
queste misere carni, e tu le spoglia.’ (v.61-63)

/.../ ‘Pai, seria bem menos doloroso para nós/ se nos comesses: tu nos vestiste/ destas míseras carnes, delas podes nos despojar’.

            Ugolino prossegue em sua narração:

Queta' mi allor per non farli più tristi;
lo dì e l' altro stemmo tutti muti;
ahi dura terra, perché non t' apristi? (v. 64-66)

Me aquieto então para não deixá-los mais tristes;/ naquele dia e no seguinte nos conservamos mudos;/ ah, dura terra, por que não te abriste ?

Ugolino e Gaddo- G.Doré

            No quarto dia Gaddo atira-se aos pés do pai, perguntando-lhe: “Pai, por que não me ajudas?(/.../ “Padre mio, ché non m’aiuti?”- v. 69). E morre. Depois, no quinto e sexto dias, Ugolino vê os outros caírem um a um. Nos dois dias seguintes, já cego, arrastando-se até eles, apalpa-os e os chama pelos nomes. O episódio se encerra com um verso terrível e ambíguo (não por acaso, certamente)--  “Depois, mais do que a dor, pôde o jejum” (Poscia, più che 'l dolor, poté 'l digiuno- v.75) -- que sugere canibalismo (sugestão que já foi antecipada pelas palavras dos filhos referidas acima) ou a simples morte pela fome.
   
            Terminada a narração, Ugolino revira os olhos, e volta à sua horrenda ocupação, roer o crânio de Ruggieri.

Ugolino- G.Doré

            Na sequência Dante condena Pisa, pois se Ugolino traiu a sua cidade, seus “filhos” (Uguiccione, Brigata, Gaddo e Anselmuccio ou Anselminho), inocentes, não mereceram aquele castigo. Todo esse episódio relativo a Ugolino vai do v. 1 ao 90, tomando assim a maior parte dos 157 versos do canto XXXIII.

G.Stradano

            Os poetas prosseguem sua jornada e entram na Tolomeia. Este nome, segundo o comentarista, deriva de Ptolomeu, da Bíblia (I Macabeus, 16: 11-17), governador de Jericó, que matou seu sogro e dois filhos dele, seus convidados em um banquete, ou de Ptolomeu do Egito, que traiu Pompeu, depois de lhe oferecer abrigo (3), após ser derrotado por César na batalha de Farsália. Na Tolomeia, os condenados estão deitados de costas, presos no gelo, e não têm nem o consolo do choro pois se choram suas lágrimas ficam congeladas nas órbitas dos olhos, impedindo-os de ver.

            Uma alma se manifesta pedindo que os poetas retirem dela “os duros véus” (i duri veli- v. 112) para que possa desafogar a dor que lhe emprenha o coração (che’l cor m’impregna- v. 113; cf. a linguagem insólita). Dante diz que só vai ajudá-la se ela disser quem é. Fica sabendo então que se trata de frei Alberigo, “aquele das frutas do mau horto,/ aqui recebo tâmaras pelos meus figos(/.../ quel da le frutta del mal horto/ che qui riprendo dattero per figo- v.119-120). Ele, ao mandar vir as frutas em um banquete, deu o sinal para que os assassinos matassem dois de seus convidados. A menção a tâmaras e figos é interpretada como uma queixa sua à punição que recebeu, mais do que merecida, pois a tâmara vale mais que o figo...(4) 

            Dante se admira que ele já esteja morto. Mas Alberigo lhe explica que quando a alma trai ela vem imediatamente para ali enquanto seu corpo, na terra, é tomado por um demônio que lhe cumpre o tempo de vida restante (essa é uma peculiaridade da Tolomeia: a alma cai ali antes que Atropos -- uma das três parcas da mitologia clássica -- lhe corte o fio da vida) (5).

            Alberigo diz ainda que esse também deve ser o caso do condenado que está ali atrás dele já há muitos anos. É o senhor Branca d'Oria, um proeminente habitante de Gênova (6). Dante também se admira com isso, pois sabe que está vivo. Mas sua alma já está no Inferno há muito tempo, antes mesmo que seu sogro Michel Zanche -- que ele mandou matar durante um banquete -- chegasse ao outro círculo do Inferno que lhe estava reservado (como vimos antes, Zanche foi para o oitavo círculo, quinta vala do Malebolge, a dos traficantes de influência).

            Concluída sua fala, frei Alberigo pediu que Dante cumprisse sua promessa e lhe retirasse aquela “viseira de cristal” (visiere di cristallo- v. 98), que lhe era desconfortável. Mas Dante não fez isso. Ser vilão com esse condenado foi ato de cortesia (e cortesia fu lui esser villano- v. 150). Já vimos que exercer a caridade no Inferno é contrapor-se à justiça divina...

            O Canto termina com Dante condenando os genoveses, conterrâneos de Branca d’Oria, cujos costumes então se corrompiam pela aglomeração em Gênova de povos de diferentes culturas (7). Dante quer vê-los exterminados do mundo. Da mesma forma, a narração do episódio de Ugolino terminara com a condenação de Pisa, que foi injusta com os “filhos” inocentes do conde Ugolino. Dante desejou que fossem afogados todos os seus habitantes. Como se vê, o próprio poeta, ao compor os versos do “Inferno”, se deixou influenciar pela ausência de caridade cristã ali reinante...

            Nos últimos versos do canto XXXIII  o poeta florentino, dirigindo-se aos genoveses, refere-se a Branca d’Oria, que teve a mesma sorte de Frei Alberigo, nascido em Faenza, na Romagna (8):

Ché col peggiore spirto di Romagna
trovai di voi un tal, che per sua opra
in anima in Cocito già si bagna,

e in corpo par vivo ancor di sopra. (v. 154-157)

Pois com o pior espírito da Romagna/ encontrei um de vós, que pela sua obra,/ em alma já se banha no Cocito,
e em corpo aparece ainda vivo lá em cima.


NOTAS


(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books, 1982- p.391

(2) Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 977

(3) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 392

(4) Id., ib, p. 392

(5) Id., ib, p. 392

(6) Musa, Mark-- "Inferno", op cit, p. 980

(7) Dante Alighieri- “Obras Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- v.4, p. 435

(8) Musa, Mark-- "Inferno", op cit, p. 980



Conte Ugolino- Auguste Rodin

Goya- Saturno devorando um de seus filhos- 1820-1823

Traidores de seus convidados- Dalí
J.B.Carpeaux- Ugolino e seus filhos. 

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