segunda-feira, 21 de setembro de 2009

INFERNO- CANTO XXXI



Canto XXXI- Vellutello

         Este Canto é inteiramente tomado pela presença de gigantes, equiparados a guardiões do próximo círculo do Inferno, o último.  Vistos de longe, quando os dois poetas se aproximam do nono círculo -- quando “Ali era menos que noite e menos que dia” (Quiv' era men che notte e men che giorno- v.10) --, Dante os confunde com torres circundando uma cidade. Ouvem soar então “uma alta trompa”, comparada à de Orlando (ou Roland) -- mencionada na famosa “Chanson de Roland” da literatura medieval francesa -- que alertou Carlos Magno para a derrota iminente de sua retaguarda (em Roscevalles, nos Pirineus) em luta contra os sarracenos (1). 

       Virgílio explica a Dante que as suas “torres” são na realidade gigantes, tão altos que só aparecem, no fosso central, do umbigo para cima, ficando o restante de seus corpos dentro deles. Dante usa aqui uma metáfora curiosa, chamando de avental dos gigantes a borda do fosso para baixo:

sì che la ripa, ch' era perizoma
dal mezzo in giù, ne mostrava ben tanto
di sovra, che di giugnere a la chioma

tre Frison s'averien dato mal vanto; (v.61-64)

de modo que a borda do poço, seu avental/ do meio para baixo, mostrava tanto dele/ para cima, que sua cabeleira
três frisões, postos um sobre o outro, não alcançariam;


        Os frisões eram os naturais da Frísia, região mais setentrional da Holanda, considerados então os homens mais altos do mundo. (2)

G.Sradano
            Os protagonistas do Canto são os gigantes Nimrod, Efialtes e Anteu.

            Nimrod -- o que soprou a trompa, avisando a chegada dos dois -- é o rei da Babilônia que concebeu a idéia da torre de Babel e foi punido com a confusão das línguas (Dante o imagina um gigante). Seu “/.../ perverso pensamento/ foi causa de não se falar no mundo uma só língua” (per lo cui mal coto/ pur un linguaggio nel mondo non s' usa- v.77-78). Dante inclui no poema um verso incompreensível, sem sentido- “Raphèl maì amècche zabì almi” (v.68), imaginado para dar uma amostra de sua língua estranha. Ninguém compreende a sua linguagem e ele não compreende a linguagem de ninguém. Após Nimrod pronunciar essas palavras, Virgílio, chamando-o de “alma estúpida” (Anima sciocca- v.70), manda-o ater-se à trompa que carrega, para nela expressar a sua ira ou outro sentimento, já que não pode fazê-lo pela linguagem de palavras.

Nimrod- G.Doré
            Lembremo-nos que Dante já usou antes, no primeiro verso do canto VII, esse recurso de um personagem do Inferno pronunciar palavras ininteligíveis, o que acentua a estranheza do outro mundo imaginado por ele.   

            Os poetas seguem em frente, “voltando à esquerda” (essa direção é recorrente no Inferno- cf. os cantos nºs X, XIV, XVIII e este, XXXI. O Mons. Joaquim Pinto de Campos explica a recorrência pelo fato de que esse é o lado pior, i.e. associado ao mal; no dia do Juízo Final, os condenados ao Inferno estarão situados à esquerda do Supremo Juiz) (3). Encontram então Efialtes, outro gigante, “bem mais feroz e maior” (assai più fero e maggio- v.84). 

Efialtes- G.Doré
Ele e seu irmão gêmeo, filhos de Netuno e Ifimédia, tentaram atacar o monte Olimpo, onde moram os deuses, colocando o  monte Pelion sobre o Ossa (4); por isso, está agora acorrentado. A corrente enrola seu corpo, prendendo-lhe os braços, cinco vezes. Foi punido por sua arrogância:

 “Questo superbo volle esser esperto
di sua potenza contra 'l sommo Giove,”
disse 'l mio duca, “ond' elli ha cotal merto”. (v.91-93)

“Este soberbo quis experimentar/ seu poder contra o supremo Jove,”/ disse o meu guia, “e tal mereceu”.

            Dante sugere aqui uma identificação de Jove (ou Júpiter) com o Deus judaico-cristão, e vê na revolta do gigante um sinal de arrogância, associando assim a mitologia clássica à da Bíblia. A revolta dos gigantes faz-nos lembrar da revolta dos anjos contra Deus, origem dos demônios.

Anteu- G.Doré
             O terceiro gigante que encontram é Anteu. Ele, que se alimentava de leões, viveu num “afortunado vale” (na África) onde Cipião derrotou Aníbal na segunda guerra púnica, entre romanos e cartagineses, conforme a referência feita por Dante nos versos 116-117. Anteu, segundo a mitologia filho de Netuno e Telus (a terra), foi morto por Hércules, que o ergueu da terra e o estrangulou no ar, pois a terra, mãe dos gigantes,  era fonte de sua força (5). Não está acorrentado, porque não participou da revolta contra os deuses. E pode se comunicar pela linguagem de palavras. Virgílio diz que “os filhos da terra” (i figli de la terra- v. 121), ou os gigantes, teriam vencido os deuses se Anteu tivesse participado da luta. Virgílio diz isso para lisonjeá-lo e fazer o que lhe propõe, isto é, transportá-los para o fundo do nono círculo, lá “onde a frialdade encerra Cocito” (dove Cocito la freddura serra- v.123), o que de fato vem a ocorrer (nessa parte mais baixa do Inferno, onde corre o rio Cocito e impera o frio, e não o calor, estão Lúcifer e Judas). Também usa como argumento o fato de Dante estar vivo e poder retornar ao nosso mundo, promovendo aqui o seu nome (um argumento frequentemente utilizado, como já vimos):

Ancor ti può nel mondo render fama,
ch' el vive, e lunga vita ancor aspetta
se 'nnanzi tempo grazia a sé nol chiama. (v.127-129)

Ele ainda pode no mundo te dar fama/ pois é vivo, e longa vida ainda espera viver,/ se a graça não o chamar antes do tempo.

            Anteu então estendeu as mãos, apanhando Virgílio e logo depois Dante, depondo-os em seguida no fundo do nono círculo. Quando Dante vê aquele vulto imenso inclinar-se sobre ele amedronta-se, pois tem a mesma sensação de quem está debaixo da torre inclinada de Garisenda, em Bolonha,  ao passarem nuvens (a impressão é a de que a torre se movimenta, e não as nuvens):

Qual pare a riguardar la Carisenda
sotto 'l chinato, quando un nuvol vada
sov'r essa sì, ched ella incontro penda:

tal parve Antëo a me stava a bada
di vederlo chinare, e fu tal ora
ch' i' avrei voluto ir per altra strada. (v.136-141)

Como parece a Garisenda, quando vista/ debaixo do lado inclinado ao passarem nuvens,/ parece pender como se fosse cair,
assim me pareceu Anteu, quando/ o vi inclinar-se, e nessa hora/ teria querido ir por outra estrada.

            No Canto há ainda referência aos gigantes Briareu (que Dante deseja ver, mas está muito distante dali), Tizio e Tifeu (lembrados por Virgílio, a quem recorreria, caso Anteu não se dispusesse a transportá-los para o fundo do nono círculo, o último do Inferno).

Anteu- W.Blake
            Qual o sentido para tantas referências a gigantes da mitologia clássica, nesse canto de transição do oitavo para o nono círculo, i.e. da passagem do círculo dos dez tipos de fraude comum (Malebolge) para os da fraude que envolve traição? Para Ciardi, os gigantes corporificam as forças elementares desequilibradas cujas paixões desconhecem as leis morais ou religiosas. São colocados como guardiães do círculo mais profundo do Inferno pela sua natureza de “filhos da terra”, por serem símbolos da condição terrena submetida às paixões bestiais (6). Sua posição, como guardiões dos traidores, é semelhante à das entidades míticas que apareceram antes, a saber, Cérbero, Plutão, Minotauro e Gerion, em relação, respectivamente, aos gulosos, avaros, violentos e fraudulentos, como assinala o Mons. Pinto de Campos (7).

NOTAS

(1) Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 968
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books, 1982- p. 388
(3) Dante Alighieri- “Obras Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- v.4, p. 308
(4) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p.389
(5) Ciardi, John- “The Inferno” (tradução para o inglês e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition, p.896
(6) Ciardi, John- “The Inferno”, op cit, p. 893
(7) Dante Alighieri- “Obras Completas”, op cit, v.4, p. 274-275 


Os gigantes- S.Dalí, 1951
Canto XXXI-Botticelli


Anteu- António Carneiro




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