segunda-feira, 21 de setembro de 2009

INFERNO- CANTO XXI


Amos Nattini- canto XXI

            Virgílio e Dante avistam agora, do alto do rochedo, a quinta vala do Malebolge, que é “estranhamente escura” (mirabilmente oscura- v.6), diferente das outras, que todavia também são escuras (pois no Inferno não há estrelas). Esse é o lugar onde expiam sua culpa os traficantes de influência, que usaram o cargo público em proveito próprio, (recebendo suborno). Eles incorreram no pecado da “barataria”, equivalente civil, segundo Mandelbaum et al., à simonia do Canto XIX (1).


               Os condenados estão imersos numa represa fervente de piche, e quando se erguem dali recebem arpoadas dos demônios presentes em suas margens (o piche é que deve dar à escuridão dessa vala um caráter peculiar). Assim como a prática da barataria não é feita às claras (ela exige que a administração pública não seja transparente, como se diz hoje), tais pecadores devem permanecer ocultos, i.e. submersos no piche. 

            Dante-autor faz aqui uma comparação curiosa (a partir do v.7): o lago de piche e seus ocupantes são associados àquele usado por um arsenal de Veneza, onde   trabalhadores executam, no inverno, diferentes serviços de reparação de navios, realizados simultaneamente.  


            Dante, distraído, olhando para baixo, não percebe a aproximação, por trás, de um diabo negro. Virgílio o alerta e o puxa para si. Mas o diabo na realidade só está vindo no mesmo rochedo, ou na mesma “ponte” em que eles estão, para chegar ao seu destino final, que é o lago fervente de piche. Ele vem correndo pelo rochedo e traz nos ombros um homem, segurando-o pelos tornozelos. Mas Dante diz a respeito desse diabo:

Ahi quant'elli era ne l'aspetto fero!
e quanto mi parea ne l'atto acerbo,
com l'ali aperte e sovra i piè leggero! (v.31-33)

Ah quanto o aspecto dele era feroz!/ e quanto me parecia ameaçador/ com as asas abertas e os pés ligeiros!

            Em seguida, o diabo dirige-se para os seus colegas:

/.../ O Malebranche,
ecco un de li anzïan di Santa Zita!
Mettetel sotto, ch'i' torno per anche

a quella terra, che n'è ben fornita:
ogn' uom v'è barattier, fuor che Bonturo;
del no, per li denar, vi si fa ita.” (v. 37-42)

O Malebranche (= “más garras”, nome coletivo dos demônios do quinto “bolgia),/ eis um dos anciãos de santa Zita!/ Atirem-no abaixo, que eu volto para buscar mais
àquela terra, que deles é bem fornida:/ lá todos são venais, exceto Bonturo;/ por dinheiro, o não se transforma em sim.

            Segundo os comentaristas, o “ancião de Santa Zita” é na realidade um dos magistrados de Lucca, cidade da Toscana cuja padroeira é Santa Zita; a menção a Bonturo, por sua vez, é irônica, pois trata-se de um político da época conhecido por sua venalidade.

            Assim, o diabo retorna à venal Lucca, e sua pressa sugere a Dante-autor outra comparação: “jamais mastim solto/ foi com tanta pressa atrás do ladrão” (/.../ e mai non fu mastino sciolto/ con tanta fretta a seguitar lo furo.- v.44-45). Também o recém-chegado pecador atirado no lago de piche fervente e mantido lá (quando ele se ergueu acima do piche recebeu cem pontaços) inspira a comparação dessa situação com a do cozinheiro:

Non altrimenti i cuoci a' lor vassalli
fanno attuffare in mezzo la caldaia
la carne con li uncin, perché non galli. (v.56-57).

Não de outra forma procede o cozinheiro/ ao mandar seus ajudantes espetar, para o fundo do caldeirão,/ a carne, a fim de que não boie.

            Virgílio então avança sozinho pela ponte e inicia a descida, depois de mandar Dante refugiar-se atrás de um rochedo. Os demônios aproximam-se de Virgílio ameaçadoramente:

Con quel furore e con quella tempesta
ch' escono i cani a dosso al poverello
che di sùbito chiede ove s'arresta,

usciron quei di sotto al ponticello,
e volser contra lui tutt'i runcigli;
ma el gridò: “Nessun di voi sia fello! (v. 67-72)

Com o mesmo furor e o alarido/ de cães quando perseguem o mendigo/ que então para, exausto, como para pedir esmola,
assim eles saíram de sob a ponte/ e voltaram-se contra meu guia com seus forcados,/ mas este gritou: “Que nenhum se atreva!



            Virgílio chama um dos demônios para ouvi-lo e decidir se devem atacá-lo ou não. Os diabos mandam Malacoda (= ”má cauda”), a quem Virgílio diz que está ali pela vontade divina: “Vamos seguir, pois no céu é desejado/ que eu mostre a alguém este caminho silvestre” (Lascian' andar, ché nel cielo è voluto/ ch'i' mostri altrui questo cammin silvestro.- v. 83-84). Ante isso, Malacoda deixa cair o seu forcado e diz aos outros para não os ferirem. Dante sai então de seu abrigo e se aproxima, ainda temeroso, de Virgílio. O poeta compara sua situação à dos soldados de Caprona que, após a rendição, viu tremerem ao passar pelos inimigos (esse castelo no vale do Arno foi tomado em 1289 pelos guelfos de Florença -- um dos quais Dante, a julgar por essa passagem-- e de outras cidades) (2).

            O zombeteiro Scarmiglione (= “desgrenhado”) (3) ameaça espetar Dante no traseiro, mas Malacoda manda-o aquietar-se. Depois diz a Virgílio que para prosseguir viagem ele não pode seguir por aquela ponte pois ela foi destruída há mil duzentos e sessenta e seis anos (devido ao terremoto que ocorreu por ocasião da morte de Cristo; essa quantidade de anos, acrescida da idade de Cristo pelo critério dos antigos, que inclui o período de sua gestação (4), resulta no ano em que transcorre a ação do poema- 1300). Afirma também que há um outro caminho e que ele poderá confiar no grupo de dez demônios que os acompanharão, grupo esse que está sendo enviado para assegurar que os condenados não se erguerão do piche. E convoca Alichino, Calcabrina, Cagnazzo, Barbariccia (= “barba eriçada”) (5), que guiará o grupo, Libicocco, Draghignazzo, o dentudo (sannuto) Ciriatto,  Graffiacane, Farfarello e o insano (pazzo) Rubicante. Mais importante, esteticamente, que o significado desses nomes imaginados por Dante é o “carnaval de sons” (6) que eles produzem, contribuindo assim para a (bela) sonoridade do poema.  

            Dante prefere ir sem essa escolta. Acha que Virgílio não deve confiar neles, a julgar pelos seus dentes, que rangem, e semblantes ameaçadores. Mas o mestre diz ao discípulo que tal aspecto não é por causa deles e sim pelos condenados.

            Todos se põem em marcha então, voltando-se para a esquerda. Antes, os diabos haviam apertado a língua com os dentes para Barbariccia, como um sinal, e este “fizera do cu trombeta(ed elli avea del cul fatto trombetta- v. 139). O sinal que os diabos fizeram seria de obediência às ordens do chefe (7), o qual em seguida age da forma grosseira indicada. Coerentemente, Dante usa aqui uma linguagem correspondente ao ambiente em que estão os protagonistas. No Paraíso, com certeza, a linguagem adotada será outra...  

NOTAS

(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 375
(2) Id., ib, p. 375
(3) Dante Alighieri- “A Divina Comédia”. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2005-p.199
(4) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 375
(5) Dante Alighieri- “A Divina Comédia”. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura, op cit, p. 201
(6) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p.376
(7) Dante Alighieri- “A Divina Comédia”. Tradução, prefácio e notas prévias de Hernâni  Donato. São Paulo: Abril Cultural, 1981- p. 85            





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