segunda-feira, 21 de setembro de 2009

INFERNO- CANTO XXIV


Amos Nattini

            Dante inicia o Canto XXIV com uma longa comparação. Dedica os primeiros quinze versos a descrever a atitude do pastor perante as condições da natureza, inicialmente desapontado por achar que a geada era ainda neve e a falta de forragem para o rebanho persistiria, mas logo depois contente por ver que aquelas condições haviam mudado. Assim também o humor do poeta se alterou quando viu Virgílio inicialmente irritado (por ter sido enganado pelo demônio quanto ao caminho a seguir), mas logo depois, ao identificar um novo caminho, voltando para “aquela maneira doce que vi pela primeira vez ao pé do monte(/.../ con quel piglio/ dolce ch'io vidi prima a piè del monte- v. 20-21).

            Os dois poetas seguem por essa áspera via, escalando rochedos, o que é mais difícil para Dante do que para Virgílio, que o auxilia a transpor os obstáculos. O caminho é mais difícil para Dante pois ele é ainda vivo e portanto tem peso. Esse contraste entre os dois é lembrado também em outras ocasiões, reforçando o clima “sobrenatural” do poema. Neste Canto, é referido nestes versos:

Non era via da vestito di cappa,
ché noi a pena, ei lieve e io sospinto,
potavam sù montar di chiappa in chiappa. (v. 31-33)

Não era via para os vestidos de capa / pois nós dois – ele leve, eu amparado --/ mal subíamos de rocha em rocha
(a menção a capa -- de chumbo, implicitamente -- nos remete à punição dos hipócritas no Canto anterior)

            Também no v.54, quando Virgílio aconselha a um Dante exausto, sentado sobre uma pedra, há uma referência ao peso de seu corpo:

E però leva sù; vinci l'ambascia
con l'animo che vince ogne battaglia,
se col suo grave corpo non s'accascia. (v.52-54)

Levanta-te portanto; vence o cansaço/ com o ânimo que vence todas as batalhas,/se o peso do teu corpo não impedir isso.

            Tal peso tem um sentido metafórico: pode ser entendido como as exigências da matéria, que devem ser superadas no processo da evolução espiritual de Dante.... Ele deve percorrer o íngreme caminho que leva à fama (à glória eterna, ao Paraíso), que exige muito esforço para ser alcançada. Os versos antecedentes são explícitos com relação a isso:

“Omai convien che tu così ti spoltre,”
disse 'l maestro; “ché, seggendo in piuma,
in fama non si vien, né sotto coltre;

sanza la qual chi sua vita consuma,
cotal vestigio in terra di sé lascia,
qual fummo in aere e in acqua la schiuma. (v. 46-51)

“Que afastes a preguiça ora convém,”/ disse o mestre; “porque assentado em pluma/ ou sob dossel, à fama não se vem;
aquele que consome sua vida sem ela/ deixa tal vestígio de si na terra/ como fumo no ar e na água a espuma”
(temos aqui uma imagem extraída da Bíblia católica - Livro da Sabedoria 5:15 -segundo Mandelbaum et al) (1).

            Esse conselho de Virgílio é uma reafirmação da essência da mensagem da “Divina Comédia”, toda ela uma grande alegoria sobre a salvação da alma.  Trata-se de um poema comprometido com a concepção de mundo de seu autor (do que tiramos uma conclusão importante, a de que é possível haver grande poesia e engajamento simultâneo a uma causa).

            Dante readquire forças após o estímulo moral do mestre, e ambos prosseguem a jornada, acabando por chegar à sétima vala ou “bolgia”, onde há uma multidão de serpentes e gente nua correndo, apavorada, com elas enlaçando essa gente, inclusive atando-lhe as mãos atrás de seus corpos (o que é significativo, considerando que os habitantes dessa vala são ladrões). Repentinamente, ocorre essa metamorfose num dos pecadores que aí são castigados:  

Ed ecco a un ch'era da nostra proda,
s'avventò un serpente che 'l trafisse
là dove 'l collo a le spalle s'annoda.

o sì tosto mai né i si scrisse,
com' el s'accese e arse, e cener tutto
convenne che cascando divenisse;

e poi che fu a terra sì distrutto,
la polver si raccolse per sé stessa
e 'n quel medesmo ritornò di butto. (v.97-105)

E eis que uma serpente se lança/ a um que estava em nossa margem e o transfixa,/ ali onde o pescoço se junta aos ombros.
Nenhum o ou i jamais foi escrito/ tão rapidamente quanto ele se incendiou, ardeu,/ e caiu, em cinzas transformado.
Quando estava na terra assim desfeito,/ seu pó se juntou por si mesmo/ e retornou ao que ele era antes, subitamente.

            Dante por esse renascimento o compara à fênix mitológica, que só se alimenta de lágrimas de incenso e amono, e morre quando chega aos quinhentos anos, preparando seu último leito com nardo e mirra (essa frequente alusão à mitologia clássica, e exploração dos pormenores de suas lendas, é uma das razões do encanto do poema).

Gustave Doré
            Dante-personagem pergunta então ao homem quem ele era, e este  afirma ser Vanni Fucci, de Pistoia. Dante-autor usa aqui uma inovação de linguagem, pois o condenado assim se expressa, ao dizer como foi parar naquela vala: “Eu chuvi de Toscana,/ há pouco tempo, nesta garganta fera” (/.../ Io piovvi di Toscana,/ poco tempo è, in questa gola fiera- v.122-123).

            Em seguida o discípulo de Virgílio quer saber que culpa o lança ali, pois “o via como homem de sangue e rixas” (ch'io 'l vidi omo di sangue e di crucci”- v. 129). Dante assim já devia saber que Vanni Fucci era filho de um líder dos (guelfos) Negros de Pistoia, adversário político dos Brancos, seu partido. Ele era filho bastardo (mul- v.125) ou  “mula”, o que dá a Dante pretexto para referir-se à sua vida “bestial” e a chamar de “caverna” a cidade onde morava, nos versos  124-126. Conforme um comentarista, Dante se surpreende de encontrá-lo aqui e não no Flegetonte, junto aos outros violentos (cf. Canto XII) (2). Vanni  Fucci diz que roubou ornamentos da sacristia (da Catedral de Pistoia), deixando que outro fosse responsabilizado por isso. Para Vanni Fucci, Dante saber disso lhe é mais penoso do que ter sido retirado da vida terrena (v. 133-135), pois sabe que o poeta florentino o divulgará no mundo dos vivos, prejudicando seu conceito. Mas para que Dante não se regozije com a miséria de sua atual condição, ele faz uma profecia sobre o que acontecerá com os Brancos (na realidade, como a ação do poema se passa em 1300, o que ele profetiza é aquilo que já acontecera ao poeta). Os Brancos serão derrotados pelos Negros em Campo Piceno, em Pistoia, os quais passarão a dominar a política de Florença (dentre os banidos dali e que tiveram sua casa incendiada inclui-se o próprio Dante) (3). No último verso do Canto, Vanni Fucci encerra a sua profecia nestes termos, revelando toda a sua malignidade: “E o disse para que doer te faça!” (E detto l'ho perché doler ti debbia!”- v.151).



NOTAS

(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p.378

(2) Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 943 

(3) Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p.431.







         

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