segunda-feira, 21 de setembro de 2009

INFERNO- CANTO XXV


Gustave Doré


            Este Canto apresenta-se essencialmente descritivo, sem diálogos, diferente de outros da “Divina Comédia”. Sua pujança visual, não estática mas dinâmica, é tão extraordinária que nem mesmo as ilustrações dos artistas a ele relativas conseguem captá-la. Na maior parte do tempo, o Canto XXV concentra-se na transformação de pecadores do sétimo bolsão (o dos ladrões) do círculo oitavo em serpentes, e vice-versa. Possivelmente, foi por essa sua singularidade que Machado de Assis o escolheu para traduzi-lo, em “terza rima”, para o português. O resultado alcançado pode ser lido no seu livro de poemas “Ocidentais”.

            O Canto inicia por um gesto obsceno e blasfemo: Vanni Fucci faz figas a Deus, no que é imediatamente atacado pelas serpentes. Sobre esse nativo de Pistoia, Dante admira-se com a sua soberba:

Per tutt ' i cerchi de lo 'nferno scuri
non vidi spirto in Dio tanto superbo,
non quel che cadde a Tebe giù da' muri. (v..13-15)

Em todos os círculos escuros do Inferno/ não vi ante Deus espírito tão soberbo,/ nem aquele que caiu dos muros de Tebas  (i.e. Capaneu, presente no Canto XIV)

            Vanni Fucci foge e é perseguido pelo centauro Cacus, que carrega na garupa muitas serpentes e nos ombros um dragão “com as asas abertas”. Cacus está ali, e não junto aos outros centauros, porque também é ladrão. Roubou o rebanho de Hércules e por isso foi morto por este:

onde cessar le sue opere biece
sotto la mazza d'Ercule, che forse
gliene diè cento, e non sentì le diece. (v.31-33)

suas obras más cessaram/ debaixo da maça de Hércules, que talvez/ lhe deu cem golpes, e ele já não sentiu o décimo

Amos Nattini- Inferno XXV
            Depois aproximam-se dos poetas três espíritos. Dante ouve um deles dizer aos outros: “Cianfa, onde terá ficado?” (Cianfa dove fia rimaso?- v. 43). Segundo o Mons. Pinto de Campos -- cujos comentários, de modo geral, se baseiam nos antigos comentaristas italianos da “Divina Comédia” -- esses três espíritos, ou melhor cinco, se adicionarmos Cianfa e Francisco de’ Cavalcanti, ora sob a forma de serpentes, pertenciam a nobres e ricas famílias de Florença. Ocuparam cargos importantes da república florentina, “e por fraude cometeram grandes furtos, com tal astúcia praticados, que porventura foram atribuídos a outros” (1).

            Dante autor, antes de prosseguir, previne o leitor, em seu agradável coloquialismo:

Se tu se' or, lettore, a creder lento
ciò ch' io dirò, non sarà maraviglia,
ché io che 'l vidi, a pena il mi consento. (v. 46-48)
Se tu, leitor, és agora lento em crer/ no que eu direi, não é causa de admiração/ pois eu, que o vi, mal posso aceitá-lo.

            Enquanto o poeta os observa, uma serpente “com seis pés” se lança sobre um deles, enlaçando-o completamente, pelo ventre, braços e pernas, se apegando tanto a ele “como se fossem formados de cera quente” (v.61), transformando-os, de modo que

né l' un né l' altro già parea quel ch' era:

come procede innanzi da l' ardore,
per lo papiro suso, un color bruno
che non è nero ancora e 'l bianco more. (v.63-66)

nem um nem outro parecia já aquilo que era antes:
assim o calor do fogo produz/ num papel, que arde, uma cor escura/ que não é negro ainda, e o branco morre

            O espírito sobre quem a serpente se lançou é identificado, no v.68, como Agnel (ou Agnello de' Bruelleschi). A serpente é, na realidade, Cianfa, transformado (pertence à família Donati) (2). Ambos se fundem numa só matéria amoldável, como a cera quente, formando um “sujeito monstruoso” (3).

            A partir do v. 79 descreve-se outra metamorfose. Uma “serpentezinha acesa” (serpentello acceso- v.83) ataca um dos dois espíritos remanescentes (mais adiante, no v. 140, ficamos sabendo que se trata de Buoso dos Abatis (ou dos Donatis) (4). Perfura-lhe o ventre, “onde primeiro tomamos alimento” (quella parte onde prima è preso/ nostro alimento- v. 85-86), i.e. o umbigo. Nesse ponto, Dante, usando um recurso retórico, manda calar-se Lucano -- que na “Farsália” escreveu sobre Sabello e Nassidio, vítimas de picadas de serpentes -- e também Ovídio, que nas “Metamorfoses” refere-se a Cadmus e Aretusa, ele transformado em serpente e ela em fonte. Manda os dois se calarem porque quer relatar os acontecimentos fantásticos que presenciou. E faz uma longa descrição (v.103 a v.141) da transformação da serpente em homem e do homem em serpente. Descreve como se formam, na serpente, os pés, a pele, os braços, o membro viril, as orelhas, o nariz, os lábios, os pelos, até ela transformar-se em homem. Descreve paralelamente como este encolhe os pés, perde a junção das pernas e coxas, cria cauda, sua pele se endurece, os braços entram nas axilas, seus pés se encurtam, seu membro cinde-se em duas partes formando os pés traseiros, perde os pelos do corpo, alonga o rosto para formar o focinho, recolhe as orelhas, sua língua se biparte, enfim, adquire todas as características da serpente...

            No v.148, Dante identifica o terceiro espírito, aquele que não havia se transformado (ainda). Seu nome é Puccio Sciancato (da família guibelina de Galigai) (5). Além disso, nesse final do Canto, ficamos sabendo que a serpentezinha mencionada acima era na realidade Francesco de' Cavalcanti, conhecido como Guercio, que há pouco readquiriu (temporariamente) a forma humana enquanto Buso, o atingido anteriormente, torna-se agora serpente. Franceso é identificado no último verso, que diz: “o outro era aquele que te fez, Gaville, chorar” (l' altr' era quel che tu, Gaville, piagni).  Após ele ter sido morto por gente dessa cidadezinha, localizada perto de Florença, seus parentes o vingaram, matando muitos dos habitantes de Gaville (6).

            Na interpretação de Ciardi, assim como os ladrões em nosso mundo despojaram os outros de seus bens, também no Inferno seus corpos são constantemente tirados deles. E eles devem roubar a forma humana de algum outro pecador, oscilando constantemente entre a condição de homem e de réptil (7).


NOTAS

(1) Dante Alighieri- “Obras Completas”, S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- v.4, p. 7 e 36
(2) Musa, Mark-- "Inferno" (tradução para o inglês, notas e comentários) in "World Masterpieces". Third Edition. Volume I. New York, W.W.Norton & Company Inc., 1973, p. 945
(3) Dante Alighieri- “Obras Completas”, op cit, v.4, p. 38
(4)  Musa, Mark-- “Inferno”, op cit, p. 947
(5) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 380
(6) Id., ib, p. 380.
(7) Ciardi, John- “The Inferno” (tradução para o inglês e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition, p. 867



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