O Canto XVII é todo dominado pela figura impressiva de Gerion, um monstro da mitologia clássica (morto por Hércules), cujas características físicas são alteradas por Dante para servir aos seus propósitos. Como em outras situações, um monstro aparece na transição de um círculo infernal para outro, apresentando caráter simbólico, relacionado à natureza desse novo círculo, que no caso é o oitavo, dos fraudulentos, apresentados sob dez formas diferentes. Como Caronte, no início dessa jornada pelo Inferno, Gerion transportará os dois poetas para o próximo círculo (o chamado “Malebolge”).
Gerion é uma alegoria da fraude. A descrição de sua aparência física abrange os primeiros vinte e sete versos do Canto. Ele é a “sórdida imagem da fraude” (sozza imagine di froda- v.7). Tem o rosto de um homem justo, mas seu corpo é como o da serpente. É um “monstro de cauda aguçada” (la fiera con la coda aguzza- v.1) que, passando por montes e destruindo muros e armas, contamina o mundo todo com seu mau cheiro (che tutto ‘l mondo appuzza- v.3), vale dizer a fraude está presente em toda parte. Tem duas patas, com pelos até as axilas. Os versos 26-27 dizem que a ponta de sua cauda é bifurcada e venenosa, como a do escorpião. As referências explícitas à serpente e ao escorpião indicam o caráter nocivo e traiçoeiro da fraude, que prejudica o ser humano e o condena ao Inferno.
Virgílio inicia o Canto fornecendo a Dante essas informações sobre Gerion. Ao seu chamado, o monstro pousa, com a cabeça e o busto, na margem de pedra ao lado do areal, enquanto sua cauda estremecia sobre o precipício, ensejando ao autor da "Comédia" comparar essa situação com barcos e com o castor em região germânica nestes dois símiles:
Come talvolta stanno a riva i burchi,
che parte sono in acqua e parte in terra,
e come là tra li Tedeschi lurchi
lo bivero s’assetta a far sua guerra, (v.19-22)
(“como barcos que na praia às vezes ficam/ com parte em terra e parte na água”; ou “como lá entre os alemães glutões/ o castor se põe a fazer a sua guerra”). De acordo com Mandelbaum et al., acreditava-se então que o castor, à beira do rio, atraía os peixes agitando a cauda na água que desse modo produzia um líquido enganoso. Assim também Gerion, símbolo da malícia e do logro, espetava com a cauda os condenados que transporta para o 8º círculo (1).
Dante faz ainda outra comparação, a dos desenhos (“nós e rodelas”) pintados nas costas e peito do monstro com os dos tecidos tártaros e turcos, famosos na Idade Média, ou com as telas de Aracne, a hábil tecelã transformada em aranha pela arrogância de ter desafiado Minerva (2). Tais comparações certamente têm o propósito de mostrar como a fraude esconde a sua vilania intrínseca por uma aparência agradável aos sentidos humanos.
Enquanto Virgílio vai parlamentar com a besta, “para que nos conceda seus ombros fortes” (che ne conceda i suoi omeri forti- v. 42), i.e. sirva de meio de transporte, Dante, que avistara “um pouco mais distante, sobre a areia,/ gente sentada perto do abismo” (poco più oltre veggio in su la rena/ gente seder propinqua al loco scemo- v.35-36) tem a autorização do seu guia para ter com esses condenados uma “conversação curta”. Este é o relato de Dante sobre eles, os usurários, que praticaram violência contra a arte (3):
Per li occhi fora scoppiava lor duolo;
di qua, di là soccorrien con le mani
quando a’ vapori, e quando al caldo suolo:
non altrimente fan di state i cani
or col ceffo or col piè, quando son morsi
o da pulci o da mosche o da tafani. (v.46-51)
(“Pelos olhos vertiam sua dor;/ deste lado, daquele, com as mãos se defendiam/ às vezes das chamas, às vezes do solo quente:/ não outra coisa fazem os cães no verão,/ com o focinho ou a pata, quando incomodados/ pelas pulgas, moscas ou moscardos” (temos aqui uma outra comparação).
Dante não reconhece ninguém ali. Mas constata
che dal collo a ciascun pendea una tasca
ch’avea certo colore e certo segno,
e quindi par che ‘l loro occhio si pasca. (v. 55-57)
(“que do pescoço de cada um pendia uma bolsa/ que tinha certa cor e certo emblema,/ e seus olhos pareciam deleitar-se em contemplá-la”).
Na realidade, pelas características heráldicas desses emblemas, Dante está citando usurários de famílias nobres da época (a identificação das famílias apóia-se nas notas de Mandelbaum et al (4) ). Inicia referindo-se a uma bolsa amarela com um leão em azul (família Gianfigliazzi, de Florença), depois a uma “rubra como sangue” (come sangue rossa- v.62) com um alvo ganso (família Obriachi, também florentina). Um dos condenados, cuja bolsa, pequena e branca, tinha inscrita “uma porca azul e prenha” (una scrofa azzurra e grossa- v.64) (família Scrovegni, de Pádua), pergunta a Dante, admirado de alguém vivo estar ali: “Que fazes nesse fosso?” (Che fai tu in questa fossa?- v.66). Esse usurário, que afirma ser um paduano entre florentinos, afirma que aguarda “seu vizinho Vitaliano” (Vitaliano del Dente, de Pádua, magistrado de Vicenza e Pádua). O paduano, de acordo com nota de Mandelbaum et al. (5), é provavelmente Reginaldo Scrovegni, cujo filho, para expiar o pecado do pai, erigiu uma capela em Padova, onde Giotto pintou seus afrescos. A propósito, segundo o Mons. Pinto de Campos (6), Giotto e Dante eram amigos e o poeta visitou o artista quando pintava aquela capela. Os usurários florentinos aguardam a vinda para o seu círculo infernal do “cavaleiro soberano,/ que trará a bolsa com três bodes” (cavalier sovrano,/ che recherà la tasca con tre becchi!” – v.72-73). Esta é uma referência irônica de Dante ao importante banqueiro Giovanni Buiamonte dei Becchi, de Florença, cuja cidade, além de considerá-lo “cavalier”, prestigiou esse usurário com elevados cargos públicos, conforme as notas de Mandelbaum et al já referidas. Que diferença do tratamento que Florença concedeu ao poeta! Dante conclui a passagem com esta última impressão do paduano, sedento, pelas condições de seu suplício (pois como vimos os usurários estão sentados no areal sob flocos de fogo): “Aqui torceu a boca e pôs para fora/ a língua como o boi que a venta lambe” (Qui distorse la bocca e di fuor trasse/ la lingua, come bue che ‘l naso lecchi- v.74-75).
Chama a atenção a frequência com que são mencionados animais neste Canto. Acabou de citar-se o boi. Antes, na referência aos brasões, citaram-se leão, ganso, porca e bode. Antes ainda, cães, pulgas, moscas e moscardos. Quando se descreveu Gerion, mencionaram-se serpente e escorpião. No final do Canto, citam-se enguia e falcão. Certamente isso não ocorre por acaso. Dante deve estar querendo dar ênfase ao fato de que o usurário se desumaniza, se embrutece no exercício da sua atividade condenável, distante de uma prática verdadeiramente humana e produtiva (a “arte”). Ele, ao anular a razão pela sua obsessão monetária, reduz-se à condição da besta. Aliás o 7º círculo, do qual os dois poetas estão saindo e no qual o usurário é o último representante destacado, é o círculo, como vimos, da violência e bestialidade, dos violentos contra o próximo, contra si mesmo e contra Deus, sendo que estes últimos abrangem os blasfemadores, sodomitas e usurários. Enquanto os sodomitas ofendem Deus por infringir as leis da natureza, os usurários O ofendem contrapondo-se à arte.
Dante retorna para junto de Virgílio, e o encontra já montado na garupa da besta. O autor da “Eneida” lhe diz:
/.../ “Or sie forte e ardito.
Omai si scende per sì fatte scale;
monta dinanzi, ch’i’ voglio esser mezzo,
sì che la coda non possa far male.” (v.81-84)
(“Agora, sê forte e ousado./ Desceremos por esta espécie de escada;/ monta na frente, que eu fico no meio, / para que a cauda não te faça mal.”)
Virgílio ordena então que Gerion parta, movendo-se com cuidado: “Pensa na nova carga que tu levas.” (pensa la nova soma che tu hai- v.99). Carga diferente da habitualmente transportada por Gerion, pois Dante ainda está vivo. Este compara seu medo ao de Faetonte, quando perdeu o controle das rédeas (do carro do Sol, que Apolo, seu pai, lhe dera), ameaçando incendiar a Terra, e ao de Ícaro, quando sentiu suas asas serem derretidas pelo Sol. Ao passar sobre a cachoeira do Flegetonte, Dante olha para baixo e fica mais receoso ainda de cair, ao ver fogos e ouvir lamentos. Ao descer e girar, viu “grandes tormentos/ que ficavam mais pertos em diversos cantos” (gran mali / che s’appressavan da diversi canti- v.125-126).
No final, Gerion deixa os dois poetas no fundo, ao pé da rocha escarpada. Ele é comparado ao falcão, que após voar longo tempo sem abater nenhum pássaro, pousa ressentido longe do falcoeiro.
Nos dois últimos versos, Dante diz: (Gerion) “livre de nossas pessoas,/ se disparou como da corda a seta.” (e, discarcate le nostre persone,/ si dileguò come da corda cocca- v. 135-136).
NOTAS
(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 370
(2) Id., ib, p. 370.
(3) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-”Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 171
(4) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”- op cit, p. 370
(5) Id., ib., p. 370
(6) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- op cit, p. 188
Gerion por Dalí |
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