sábado, 29 de agosto de 2009

INFERNO- CANTO VIII



"Dante e Virgílio no Inferno"- Delacroix, 1822

Virgílio e seu discípulo se aproximam de uma alta torre. Em seu topo brilham duas chamas, que uma outra chama responde, ao longe (esse início do Canto é um exemplo do talento de Dante também como narrador, pois consegue, de imediato, prender a nossa atenção relativamente ao que vai ser narrado).

O discípulo indaga a seu mestre, chamado aqui “mar de todo o bom senso” (mar di tutto 'l senno- v.7), sobre a razão desses sinais, e quem os faz, mas Virgílio, como resposta, manda-o apenas observar as águas quentes (que por isso exalam um “fumo”) e sujas do Estige. Nelas logo vem, como consequência daqueles sinais, um pequeno barco, velocíssimo, uma vez que corre mais que uma seta lançada pela corda de um arco. A velocidade desse pequeno barco, numa época em que era inimaginável barco a motor, é certamente um elemento a mais utilizado para acentuar a estranheza do ambiente.
G.Doré
O barqueiro se chama Flégias. Esse é o nome de um personagem mitológico, filho de Marte, cuja filha foi violentada por Apolo. Por isso, ele, irado, ateou fogo ao templo desse deus em Delfos. Flégias assim representa não só os iracundos, que habitam o quinto círculo, mas também os incrédulos que cumprem pena no próximo círculo (1).

G.Doré
O barqueiro Flégias pensa que Dante é mais uma “alma perversa” (anima fella- v.18) que está chegando, mas Virgílio responde-lhe dizendo que ele grita em vão pois os dois poetas só estão ali de passagem. Os versos comparam Flégias frustrado (por não poder levar consigo Dante) à pessoa que foi vítima de grande logro. Os poetas entram na barca, que cede quando Dante entra nela (revelando que ele é o único ali a ter peso, por estar vivo ainda):
Lo duca mio discese ne la barca,
e poi mi fece intrare appresso lui;
e sol quand’io fui dentro parve carca. (v.25-27)

(“Meu guia entrou na barca,/ e depois me fez entrar também;/ só quando eu estava dentro ela demonstrou possuir carga”).

Esse último verso, pseudo-realista, serve para Dante acentuar o clima “sobrenatural” do ambiente. O poeta florentino repete aqui procedimento já usado por Virgílio, na “Eneida” (2) (o Livro VI dessa obra trata da descida de Enéas ao Inferno).

Na travessia do Estige pantanoso, enquanto aquela “antiga proa” vai sulcando as águas (v.29), encontram alguém que interpela Dante. O poeta usa aqui “antiga” porque tal barco data do princípio dos tempos, segundo o Mons. Pinto de Campos, que também se refere à metonímia de “proa” (uso da parte pelo todo) (3).
Dante logo reconhece aquele condenado, apesar de sujo de lama, como os outros iracundos ali imersos. Há aqui certamente um sentido metafórico, o da sujeira moral. No Canto anterior, v.53-54, os versos diziam que os iracundos se fizeram sujos na vida imperceptível que levaram.

O condenado em questão é Filippo Argenti, identificado no v. 61, sobre quem Dante se mostra extremamente hostil, regozijando-se com o seu sofrimento. Dante-autor faz aqui Dante-personagem mostrar-se rancoroso contra Filippo Argenti (por alguma razão não muito clara). Este, que já era falecido em 1300, devia ser um adversário político, um Guelfo Negro, de quem ele guardava muita mágoa. Mostra-se assim rancoroso justamente no círculo a eles reservado. Lembremo-nos, todavia, que ele representa, em termos alegóricos, o ser humano em busca de perfeição, apresentando ainda defeitos morais.

Dante chama Filippo “espírito maldito” (spirito maladetto- v.38) e entende seu castigo como merecido, o que o faz revidar, de modo irado, levantando as mãos para agarrar a borda do pequeno barco (a fim de virá-lo). Virgílio então o empurra, “dizendo: ‘Vai! Junta-te aos outros cães!’- (dicendo: ‘Via costà con li altri cani!’- v.42) (como se vê é recorrente a imagem do cão, associada aos que cumprem pena no Inferno). Virgílio em seguida abraça e beija Dante no rosto, elogiando-o (por achar que o castigo é merecido, i.e. por ter opinião que coincide com o julgamento divino) e criticando Filippo Argenti:
Quei fu al mondo persona orgogliosa;
bontà non è che sua memoria fregi:
così s’è l’ ombra sua qui furiosa. (v.46-48)

(“Aquele foi no mundo pessoa orgulhosa;/ sem bondade que doure sua memória:/ e assim sua sombra aqui é furiosa”).

Em vista disso, Virgílio faz esta observação:
Quanti si tegnon or là sù gran regi
che qui staranno come porci in brago,
di sé lasciando orribili dispregi! (v.49-51)

(“Quantos lá em cima que se julgam grandes reis/ estarão aqui como porcos no lodo,/ de si deixando atrás desprezo horrível”)

Note-se a comparação reiterada dos iracundos com animais. No caso, eles são como porcos no lodo, mais uma sugestão de sujeira moral.

Antes que o barco alcance a outra margem, Dante diz que quer ver Filippo afundar no lamaçal. Virgílio lhe responde que “tal desejo atender é conveniente” (di tal disïo convien che tu goda- v.57). Isso porque, deduz-se, está de acordo com a Justiça Divina (como se verá adiante, mostrar compaixão no Inferno é contrapor-se a essa Justiça). E o desejo de Dante é de fato atendido quando os outros iracundos atacam Filippo:
Dopo ciò poco vid’io quello strazio
far di costui a le fangose genti,
che Dio ancor ne lodo e ne ringrazio. (v.58-60)

(“Pouco depois eu vi/ aquela gente enlameada despedaçá-lo/ e eu louvo e agradeço a Deus por isso”).

Dante mostra-se assim um católico medieval, vingativo, que se regozija com o castigo divino.

Aproximam-se agora da cidade dolorosa (città dolente, cf. Canto III, v.1) de Dite. Mas antes de Virgílio informar isso a Dante, a atenção deste é atraída por um lamento alto (v.65). Note-se que o poeta aqui faz o som do lamento anteceder a tudo o que vem depois, valorizando-o assim, a fim de despertar a curiosidade do leitor e cumprir uma função estética.

Dite é apresentada contendo prédios que o v.70 chama de “mesquitas”, avermelhadas pelo fogo dentro de sua “muralha de ferro”. Mesquitas, como se sabe, são os templos dos muçulmanos, dos “infiéis”, do diabo, portanto, pois na concepção medieval só a religião católica era de Deus. Após chegarem aos altos fossos que circundam essa “terra desconsolada” (terra sconsolata- v.77), aproximam-se da entrada da cidade. Nas suas portas, Dante vê mais de mil demônios, os anjos rebeldes expulsos do Céu, ou melhor, “chovidos do Céu” (da ciel piovuti- v.83), na linguagem usada pelo poeta. Virgílio faz sinal, indicando querer lhes falar. Eles concordam, mas não querem que ele venha acompanhado de Dante, que é mandado retornar por onde veio, sozinho, o que deixa este atemorizado:
Pensa, lettor, se io mi sconfortai
nel suon de le parole maladette,
ché non credetti ritornarci mai. (v.94-96)

(“Imagina, leitor, minha aflição/ diante do som dessas palavras malditas;/ julguei não mais retornar para cá”, i.e. para o mundo dos vivos)

Note-se aí que Dante fala com o leitor, num coloquialismo cativante, tanto mais surpreendente quanto nos lembramos que a “Comédia” data do início do século XIV, cujo formalismo moderado não a distancia do leitor moderno.

Dante pede a Virgílio que ambos retornem dali. Porém Virgílio está confiante, uma vez que ninguém pode impedi-los de avançar. Diz que Dante deve esperar por ele ali mesmo, enquanto vai conversar com os anjos decaídos. Mas a conversa dura pouco, pois logo estes saem correndo para dentro de sua cidade, e batem as portas na cara de Virgílio, que retorna cabisbaixo para onde Dante estava (notar o caráter quase cômico do comportamento desses diabos travessos). Virgílio assegura a Dante que vencerá a prova, pois já vem descendo do céu aquele que abrirá as portas desse reino.

Segundo John Ciardi, o fracasso de Virgílio em avançar se explica pelo fato de que a Razão Humana sozinha não pode vencer a essência do Mal. Precisa do auxílio divino para tanto, na concepção de Dante (4).


NOTAS

(1) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.2- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p.309-310
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 358
(3) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.2- op cit, p.332
(4) John Ciardi- “Inferno” (tradução para o inglês e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition. W.W.Norton & Company, p. 796.

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