Acordado por um trovão, Dante volta a si e constata que está à beira de um abismo:
Vero è che ‘n su la proda mi trovai
de la valle d’abisso dolorosa
che ‘ntrono accoglie d’infiniti guai.(v.7-9)
("Na verdade eu estava à beira/ de um abismo, um vale doloroso/ por gritos infinitos povoado”).
Ali ele não distingue coisa alguma por causa da escuridão. Virgílio o convida a descer ao “mundo cego” (cieco mondo), assim chamado certamente porque o Inferno é desprovido da luz que vem de Deus.
Dante repara na palidez do seu guia quando se aproximam desse primeiro círculo infernal, o Limbo, habitado pelos pagãos justos, inclusive pelo próprio Virgílio (essa "palidez" imaginada por Dante-autor reforça o clima sobrenatural do contexto em que se situam os dois poetas). Mas Virgílio lhe responde que aquilo que ele toma por temor é na realidade compaixão pelos que estão ali. São pagãos, viveram antes da vinda de Cristo. Não receberam o batismo, “porta da fé” (porta de la fede- v.36) do Cristianismo (Dante usa aqui uma metáfora, assim como usará outra no v.66, quando o primeiro círculo é chamado de “selva ... de espíritos apinhada” :selva ... di spiriti spessi ). Os pagãos, conforme a doutrina católica, permanecem com a culpa do pecado original (1).
Os dois poetas entram então nesse primeiro círculo, "que o abismo cinge”.
Quivi, secondo che per ascoltare,
non avea pianto mai che di sospiri
che l’aura etterna facevan tremare;
ciò avvenia di duol sanza martìri,
ch’avean le turbe, ch’eran molte e grandi,
d’infanti e di femmine e di viri. (v.25-30)
(“Ali, tanto quanto se podia escutar, não se ouviam prantos mas suspiros/ que faziam tremer o ar eterno;/ provinham da dor sem martírio,/ das multidões, que eram densas e grandes,/ de crianças, e de mulheres e de homens.” (cf. o polissíndeto deste último verso).
A punição deles é “viver sem esperança, só com anseio” (che sanza speme vivemo in disio- v.42). Não têm esperança de ascender ao Paraíso, só o desejo. Sua dor, conforme a citação acima, é uma "dor sem martírio" (duol sanza martiri- v.28). Todavia, quando Cristo morreu e subiu aos céus, diz Virgílio, tirou dali Adão, Abel, Noé, Moisés, Abraão, David, Israel (ou Jacó) com o pai (Isaac), seus filhos e Raquel, além de outros, que foram santificados. Mas Virgílio não nomeia Cristo. Ele diz: Io era nuovo in questo stato/quando ci vidi venire un possente,/ con segno di vittoria coronato (“Eu era novo neste estado/ quando vi um ser potente entrar aqui,/ coroado com o signo da vitória”: v.53-54). Como Virgílio morreu em 19 a.C. e Cristo no ano 33, isso aconteceu quando ele estava no Inferno (Limbo) há pouco mais de 50 anos (2).
Prosseguindo em sua marcha, os dois poetas divisam um foco de luz onde se agrupam pessoas de aspecto honrado. Ao chegarem mais perto, ouvem uma voz que saúda Virgílio:
Onorate l'altissimo poeta:
l'ombra sua torna, ch' era dipartita (v.80-81)
("Honrai o altíssimo poeta;/ sua sombra retorna, que antes partira").
Então aproximam-se deles quatro sombras:
Poi che la voce fu restata e queta,
vidi quattro grand’ombre a noi venire:
sembianz’ avevan né trista né lieta. (v.82-84)
(“Depois que a voz se calou/ vi quatro grandes sombras virem a nós,/ de aparência nem triste nem alegre”).
Virgílio informa a Dante que essas sombras são as dos poetas Homero, Horácio, Ovídio e Lucano. Dante-autor revela aqui sua admiração por Homero, afirmando “que ele vem à frente dos três (os outros poetas) como um senhor” (che vien dinanzi ai tre sì come sire- v.87), quer dizer, é o maior dentre eles. Na sequência Dante compara Homero a uma águia:
Così vid'i' adunar la bella scola
di quel segnor de l'altissimo canto
che sovra li altri com'aquila vola (v.94-96)
("Assim eu vi reunida a bela escola/ daquele senhor do canto altíssimo/ que sobre os outros como a águia voa").
Passam a conversar entre si, e um dos poetas saúda Dante com um aceno. Chegam mesmo a convidá-lo a integrar-se ao seu grupo: “eu era o sexto de tais intelectos” (sì ch’io fui sesto tra cotanto senno- v.102) (o quinto, naturalmente, era Virgílio), o que é revelador da altivez de Dante-autor. Ele não era humilde, ou melhor, como diria meu pai, “tinha consciência do próprio valor”, pois se colocou ocupando o sexto lugar, na hierarquia dos maiores poetas da literatura ocidental.
Virgílio e seu discípulo prosseguem, andando em direção à luz, e chegam ao pé de um castelo, “sete vezes cercado de altos muros” (sette volte cerchiato d'alte mura-v.107) e protegido por um rio em torno. Passam por ele “como em solo duro" (Questo passammo come terra dura- v. 109) e depois, por sete portas, juntamente com aqueles “sábios” (os poetas são assim chamados, como já ocorrera com Virgílio, anteriormente), chegando a um prado verdejante dentro do castelo, onde Dante divisa gente “de grande autoridade no semblante” (di grande autorità ne' lor sembianti- v.113), “magnos espíritos” (spiriti magni- v.119), os quais passa a citar, abrangendo personagens históricos e fictícios, mulheres notáveis, filósofos e cientistas.
No v. 106 e seguintes temos uma alegoria: o castelo, circundado por sete muros altos, representa, segundo o Mons. Pinto de Campos (3), a Nobreza humana, própria dos “magnos espíritos” citados, fonte de luz (aqui não da luz divina mas humana, restrita apenas a essa área do castelo no primeiro círculo). Os sete muros seriam as sete virtudes (prudência, justiça, fortaleza, temperança, inteligência, ciência e sapiência, arroladas em nota à tradução de Vasco Graça Moura (4) ). O rio por onde passam como se fosse solo duro é interpretado pelo Mons. Pinto de Campos como o amor à sabedoria (Dante compartilha tal amor com os outros poetas, por isso ele transpõe o rio da mesma maneira que eles) (5). As sete portas, por fim, seriam as artes liberais (gramática, dialética, retórica, música, aritmética, geometria e astronomia (6) ).
Estes são os nobres personagens que Dante afirma ter visto ali: Electra, mãe do fundador de Tróia, de quem descendem Heitor e Enéas, citados na sequência (7); Júlio César; Camila e Pentesiléia, a primeira morta pelos troianos quando estes lutavam contra o rei Latino e a outra, rainha das Amazonas, aliada dos troianos e morta por Aquiles (8); o rei Latino e sua filha Lavínia, que se casou com Enéas após a vitória deste na península italiana (9); Brutus, que expulsou Tarquino, o último dos reis romanos, tornando-se o primeiro cônsul da república (10); Lucrécia, Júlia, Márcia e Cornélia, “quatro exemplos da virtude feminina romana” segundo as notas de Mandelbaum et al.: a primeira se suicidou após ser ultrajada por Tarquino, o que contribuiu para a derrubada desse rei; a segunda, filha de César e esposa de Pompeu, poderia ter evitado a guerra entre eles se não tivesse morrido; Márcia, esposa de Cato de Utica; Cornélia, ou a mãe dos tribunos Tibério e Caio Graco ou a segunda esposa de Pompeu, que com ela casou após a morte de Júlia (11); e, em posição mais afastada, Saladino, sultão do Egito, não cristão mas respeitado pelo Ocidente (12).
Depois, alçando mais o olhar, Dante diz que viu “o mestre dos homens que sabem” (Aristóteles) (vidi’l maestro di color che sano- v.131) e perto dele Sócrates e Platão (essa passagem revela a grande admiração que Dante-autor tinha por Aristóteles, colocando-o em posição mais elevada que os outros. É nesse filósofo que se baseia, como se sabe, a doutrina de S.Tomás de Aquino). Dante viu também outros filósofos ali: Demócrito, Diógenes, Anaxágoras e Tales, Empédocles, Heráclito e Zenão; o médico grego Dioscórides (13); os “míticos poetas gregos” Orfeu e Lino (14); Túlio (ou Marco Túlio Cícero) e Sêneca, aqui considerados como filósofos morais (15), Euclides matemático e Ptolomeu astrônomo, “em cuja teoria geocêntrica se baseia a astronomia medieval” (16), Hipócrates, médico grego, Avicena, médico e filósofo árabe, Galeno, médico grego, Averróis, filósofo hispânico-árabe, comentador de Aristóteles (17), e outros mais, que não vai mencionar, pois seu amplo tema o manda ir adiante: “o que é contado é, frequentemente, menos do que o fato” (che molte volte al fatto il dir vien meno- v.147).
E assim o grupo dos seis poetas se divide em dois. Dante segue Virgílio, que o leva para outro caminho, “onde nada alumia” (E vegno in parte ove non è che luca- v.151), ao contrário do círculo que eles acabam de deixar.
NOTAS
(1) Dante Alighieri- “Obras Completas, v.2- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p.125
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 350
(3) Dante Alighieri- “Obras Completas, v.2- op cit, p. 137-138
(4) Dante Alighieri- “A Divina Comédia”. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2005, p.59 (nota)
(5) Dante Alighieri- “Obras Completas, v.2- op cit, p. 138
(6) Aqui citadas tal como constam em Dante Alighieri- “A Divina Comédia”, op cit, p. 59 (nota).
(7) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 351
(8) Id, ib, p. 351
(9) Id, ib, p. 351
(10) Id, ib, p. 351-352
(11) Id, ib, p. 352
(12) Id, ib, p. 352
(13) Id, ib, p. 352
(14) Id, ib, p. 352
(15) Id, ib, p. 352
(16) Id, ib, p. 352-353
(17) Id, ib, p. 353
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