sábado, 29 de agosto de 2009

INFERNO- CANTO XVI





Já ouvindo o som das águas do Flegetonte que se precipitam no próximo círculo (o 8º), Dante e Virgílio veem aproximar-se deles três sombras. Afastando-se do grupo em que vinham, mas continuando debaixo da chuva de fogo, elas se dirigem aos poetas. Reconhecem, pela indumentária (o luco- “uma túnica inteiriça, que se afivelava entre o peito e o pescoço”-- e o capuz) (1), que Dante também era de Florença, a sua “terra perversa” (terra prava- v.9), e pedem para que ele se detenha. Dante se admira (e se condói) das chagas que vê em seu corpo, causadas pelas chamas.

Virgílio recomenda consideração para com eles: ... “Or aspetta”,/ disse, “a costor si vuole esser cortese.” (“Agora espera”, / disse, “a estes devemos demonstrar cortesia”- v.14-15). Se não fosse o fogo, diz Dante-autor pela boca de Virgílio, caberia ao discípulo deste ir ao encontro desses notáveis florentinos, e não o inverso (isso revela, mais uma vez, a reverência que Dante manifesta pelos pederastas conterrâneos, demonstrando não ser preconcebido, apesar de católico e homem da Idade Média).

Junto dos poetas, as três sombras formam uma roda, que se mantém girando, embora sem sair daquele lugar, pois os sodomitas devem movimentar-se continuamente, como vimos no Canto anterior. Dante-autor compara-os nesse movimento a lutadores se estudando, antes de se atracarem (esta é a imagem mais forte do Canto, inclusive pelas suas conotações eróticas):
Qual sogliono i campion far nudi e unti,
avvisando lor presa e lor vantaggio,
prima che sien tra lor battuti e punti,

così rotando, ciascuno il visaggio
drizzava a me, sì che ‘n contraro il collo
faceva ai piè continüo vïaggio. (v.22- 27)

(“Como fazem os lutadores, nus e untados,/ medindo bem a presa e a vantagem,/ antes de começarem os golpes,/ assim giravam, cada um voltando o rosto/ para mim, de modo que o colo/ fazia sempre viagem contrária aos pés”).

Na sequência, uma das sombras fala, dizendo que se a miséria do seu sofrimento e o “aspecto negro e queimado” (decorrente de sua punição ) só provocam desdém, pelo menos que a fama deles estimule o ânimo de Dante a dizer quem é:
la fama nostra il tuo animo pieghi
a dirne chi tu se’, che i vivi piedi
così sicuro per lo ‘nferno freghi. (v.31-33)

(”possa nossa fama inclinar teu ânimo/ a dizer-nos quem tu és, que com vivos pés/ assim seguro pelo inferno andas”).

Há uma inversão aqui (que deve ser intencional) quanto ao diálogo entre o protagonista e seus interlocutores: normalmente é Dante que quer saber quem são as pessoas que encontra no Inferno...

Esse que falou é Jacopo Rusticucci. Segundo Mandelbaum et al, ele se envolveu em assuntos políticos e diplomáticos na Florença de seu tempo (2). Além de identificar-se, Jacopo identifica também os outros dois, politicamente vinculados aos guelfos, como ele próprio. O que vai na sua frente é Guido Guerra, que “em vida/ fez muito com bom senso e com a espada”: (/.../ in sua vita/ fece col senno assai e con la spada- v.38-39). De acordo com aqueles comentaristas antes citados, Guido liderou várias ações militares contra os guibelinos e era neto de uma senhora dotada das antigas virtudes florentinas, por isso chamada a “boa Gualdrada”. O outro condenado, que segue atrás, é Tegghiaio Aldobrandi, ex-dirigente do governo de Arezzo, que desaconselhara, juntamente com Guido, a investida contra Siena em 1260, a qual resultou na batalha de Montaperti, na qual os guelfos foram derrotados. Isso permitiu aos guibelinos retornarem ao poder em Florença. Os três estão ainda naquela mesma área do sétimo círculo do Inferno reservada aos sodomitas. Jacopo afirma no final dessa sua primeira intervenção:
E io, che posto son con loro in croce,
Iacopo Rusticucci fui, e certo
la fiera moglie più ch’altro mi nuoce. (v.43-45)

(“E eu, que com eles estou posto na cruz,/ Jacopo Rusticucci fui, e certamente/ minha feroz mulher mais que ninguém me destruiu.”)

Dante após referir-se à fama dos “nomes honrados” (onorati nomi- v.59) dos três, explica-lhes também o seu itinerário, usando estas metáforas:
Lascio lo fele e vo per dolci pomi
promessi a me per lo verace duca;
ma ‘nfino al centro pria convien ch’i’ tomi. (v.61-63)

(“Deixo o fel e vou para os doces pomos/ a mim prometidos pelo guia veraz;/ mas antes convém que eu desça ao centro (do Inferno)”).

Dante era filho da pequena nobreza empobrecida (3), daí seu ressentimento contra os novos tempos, da ascensão da burguesia no âmbito das transformações econômicas que se processavam então na Europa do final da Idade Média e do capitalismo em formação. Para ele, Florença no passado apresentava certas características que haviam se perdido. À pergunta que Jacopo Rusticucci lhe faz nos versos 67-69:
cortesia e valor dì se dimora
ne la nostra città sì come suole,
o se del tutto se n' è gita fora
(“mas diz se cortesia e valor ainda moram/ na nossa cidade como costumavam,/ ou se de todo foram embora dela”, Dante exclama:
“La gente nuova e i sùbiti guadagni
orgoglio e dismisura han generata,
Fiorenza, in te, sì che tu già ten piagni.” (v. 73-75)

(“A gente nova e os súbitos ganhos/ orgulho e excessos em ti originaram,/ ó Florença, que por isso já choras.”)

Ao se despedirem, as três sombras pedem para que Dante, ao retornar ao mundo, lembre deles junto aos vivos, questão que é recorrente no poema. Nos diálogos de Dante com os mortos-- que encontra ao longo de sua jornada-- é constante a preocupação deles com sua memória no mundo dos vivos, expressando assim o desejo de imortalidade bem próprio da condição humana.

As sombras desaparecem rapidamente, num tempo menor, diz Dante, que se leva para dizer “amém” (aliás, essa é mais uma característica da linguagem do poema: o uso que faz de elementos extraídos da tradição religiosa; neste mesmo Canto há um outro exemplo, citado acima, quando Jacopo diz, para indicar os seus tormentos, e o de seus companheiros: “E eu, que com eles estou posto na cruz”- v. 43.

Virgílio e Dante estão agora bem próximos da queda d’água do Flegetonte, e o ressoar dessa “água escura” (acqua tinta- v.104) caindo no precipício é ensurdecedor. O poeta a compara com a que “ribomba em San Benedetto de l' Alpe”- v.100-101), nos Apeninos, após descrever o trajeto do rio em que ocorre, mencionando várias referências topográficas locais (aliás, essa é outra característica do poema: a de invocar determinada paisagem européia, ou melhor italiana, para dar uma ideia aproximada de como é aquela que está sendo observada no mundo dos mortos).

Dante trazia na cintura uma corda (o que lembra o hábito franciscano), com a qual pensara “prender a onça de pele pintalgada” (prender la lonza a la pelle dipinta- v.108). De acordo com a tradição, ele pertencia à Ordem Terceira de S.Francisco. Assim entrara nela para combater a luxúria, simbolizada pela onça, conforme vimos no Canto I.

O poeta florentino retira a corda de si e a entrega a Virgílio, que a lança para o fundo do abismo. Ele pensa que isso deve ser algum sinal. E de fato o é, pois servirá para chamar Gerion, símbolo da fraude (cf. o próximo Canto). Nessa associação do cordão franciscano à fraude está implícita uma crítica a essa ordem religiosa no tempo de Dante, e a ele próprio, pois na interpretação do Mons. Pinto de Campos estava incorrendo em hipocrisia ao usar o cordão sem ser religioso, ou sem observar a dupla obrigação que lhe
é inerente, definida por S. Francisco: a de usar o hábito e a de cumprir certos deveres como humildade, mortificação da carne etc. Mas Virgílio (ou a razão) arremessando a corda para o fundo do precipício fazia Dante entrar no 8º círculo (o Malebolge, com as suas diversas modalidades de fraude) livre da hipocrisia, avançando em seu processo de purificação (4).

Após lançar a corda Virgílio diz a Dante, que não sabe o que acontecerá na sequência:
El disse a me: “Tosto verrà di sovra
ciò ch' io attendo e che il tuo pensier sogna;
tosto convien ch' al tuo viso si scovra.” (v.121-123)

(“E ele a mim: 'Logo tu verás/ o que eu espero e o teu pensamento sonha;/ logo convém que ao teu olhar se revele'.”)

O mistério sempre está presente nesses versos da “Comédia”, o que lhes atribui uma estranheza cativante. Relaciona-se naturalmente ao mistério metafísico, ou da condição humana. Mas também relaciona-se à própria narrativa, onde há suspense, que renova o interesse do leitor.

O que Dante vê então, se contar, parece mentira. Dirigindo-se diretamente ao leitor, ele afirma que não pode calar a respeito, embora talvez fosse mais conveniente fazê-lo, para não passar vergonha (ou passar por mentiroso):
Sempre a quel ver c’ha faccia di menzogna
de’ l’uom chiuder le labbra fin ch’el puote,
però che sanza colpa fa vergogna; (v.124-126)

(“Sempre à verdade com cara de mentira/ deve o homem fechar os lábios enquanto possa,/ pois passa vergonha, embora sem culpa;”)

Ele afirma então que vê surgir nadando no espaço, vindo do fundo do precipício em direção a eles, uma figura insólita, a qual é comparada a um mergulhador, que depois de liberar a âncora no fundo do mar, retorna à superfície. Nesse relato, Dante afirma:
ch’i’ vidi per quell’ aere grosso e scuro
venir notando una figura in suso,
maravigliosa ad ogne cor sicuro, (v.130-132)

(“que eu vi naquele ar grosso e escuro/ vir nadando uma figura que subia, / assombrando o coração mais duro”).

Trata-se de Gerion, como se verá no Canto a seguir.


NOTAS

(1) Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”-tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 150
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 369
(3) Hilário Franco Jr- “Dante: o poeta do absoluto”. S.Paulo: Brasiliense, 1986- p. 14
(4) Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- op cit, p.131-133

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