Virgílio e Dante continuam percorrendo o círculo dos hereges, caminhando por entre os sepulcros ardentes. Dante pergunta se lhe é permitido ver a gente que está dentro deles, uma vez que seus tampos estão levantados. Virgilio diz a ele que logo sua curiosidade será atendida. Diz também que os sepulcros serão fechados para sempre, depois que as almas, reunidas aos corpos (ressurrectos), retornarem de Josafá (é nesse vale, localizado perto de Jerusalém, que se realizará o Juízo Final segundo a tradição bíblica) (1).
Virgílio lhe explica ainda que naquela área estão os túmulos dos epicuristas (inclusive Epicuro), para quem a alma morria junto com o corpo.
Ouvindo Dante falar com o autor da “Eneida”, alguém se manifesta de um sepulcro, reconhecendo-o como “toscano” e pedindo para que ele ali se detenha:
O Tosco che per la città del foco
vivo ten vai così parlando onesto,
piacciati di restare in questo loco. (v.22-24)
(“Ó toscano que pela cidade ígnea/ passas vivo assim falando honesto/ te apraza deter-te neste lugar”.)
Dante, assustado, aproxima-se mais de seu mestre, em busca de proteção. Virgílio o tranquiliza dizendo que se trata de Farinata, seu conterrâneo, que já se ergueu do túmulo e é visto da cintura para cima, com seu ar altivo (Farinata degli Uberti, segundo os comentaristas, era um líder político de Florença que subiu ao poder com os guibelinos após a derrota dos guelfos na batalha de Montaperti em 1260, cinco anos antes de Dante nascer. Posteriormente porém os guelfos reconquistariam o poder e perseguiriam seus rivais, em especial os parentes de Farinata, motivo da reclamação deste, mais adiante).
Farinata pergunta quem foram os antepassados de Dante (Chi fuor li maggior tui?- v.42). Ouvindo a resposta deste, afirma que eles eram seus adversários políticos. Por duas vezes ele os mandou para o exílio (a primeira vez em 1248, quando os guelfos foram expulsos de Florença, inclusive Cacciaguida, avô de Dante; e a segunda vez, após a batalha de Montaperti, como nos informa o Mons. Pinto de Campos) (2).
Surge então, repentinamente, uma outra sombra que só aparece até o queixo, saindo do túmulo, evidenciando sua diferença de porte físico com Farinata. Tal sombra indaga, chorando:-- se Dante visita “este cego cárcere” (cf. a recorrência da imagem envolvendo o sentido da visão) pelo seu “alto engenho”, por que seu filho não o acompanha? Dante logo percebe que se trata de Cavalcante dei Cavalcanti, pai do poeta Guido Cavalcanti, seu amigo. Ele entende, equivocadamente, das palavras de Dante, que o filho já havia morrido. E lhe pergunta, emocionado: non fieri li occhi suoi lo dolce lome? (“não fere os olhos seus o doce lume?”- v.69). Essa manifestação de Cavalcante serve de exemplo, num modelar ensaio de Auerbach dedicado a este Canto X, para mostrar como a nossa atenção, enquanto leitores, é atraída antes para o ser humano do que para a ordem divina, que se contrapõe a esta (a “figura” terrena de Cavalcante impõe-se, prevalece, mesmo no além: para Auerbach, na “Divina Comédia”, “o além torna-se teatro do homem e das suas paixões”) (3).
Por outro lado, o mesmo adjetivo de dolce lome é repetido mais adiante, agora por Farinata, no v.82 -- dolce mondo. A conotação de tal palavra, pronunciada no Inferno, é de melancolia e nostalgia pelo mundo dos vivos, onde há a luz do Sol (Deus), que os condenados ali perderam para sempre.
Dante se justifica perante Cavalcante:
E io a lui: ‘Da me stesso non vegno:
colui ch’attende là per qui mi mena
forse cui Guido vostro ebbe a disdegno.’ ( v.61-63)
(“E eu a ele: ‘Por meu poder não venho:/ aquele que me espera lá por aqui me guia/ talvez até alguém que vosso Guido desdenhou”).
Por que o poeta Guido Cavalcanti desdenharia Virgílio? talvez pela diferença de suas concepções estéticas quanto à linguagem (Virgílio adotara na “Eneida” -- a sua “alta tragédia”, conforme Inf. XX, 113, escrita em latim -- o estilo elevado dos antigos) (4).
Antes que Dante pudesse explicar ao pai que o filho ainda vivia, Cavalcante “atrás caiu supino (=inerte) e mais não veio para fora” (supin ricadde e più non parve fora- v.72).
A cena em que Cavalcante é protagonista abrange os versos 52-72 e está intercalada numa outra cena, mais longa, a de Farinata (que inicia no v.22 e se estende até o final do Canto). Após a interrupção, Farinata, que se mantivera na mesma posição, no túmulo, prossegue de onde havia parado,afirmando que se seus descendentes não haviam aprendido a “arte” de retornar do exílio, “isso me atormenta mais que este leito” (ciò mi tormenta più che questo letto – v. 78). E prevê a Dante que ele também vai sentir o peso dessa arte antes de 50 meses (o que de fato ocorreria; lembremo-nos que a ação da “Comédia” situa-se em 1300 e que Dante seria exilado de Florença anos mais tarde, dentro desse prazo. O poeta usa o artifício de prever aqui o que já havia ocorrido com ele):
Ma non cinquanta volte fia raccesa
la faccia de la donna che qui regge,
che tu saprai quanto quell’arte pesa. (v.79-81)
(“Não vai cinquenta vezes vir acesa/ a face da dama que aqui nos rege/ e saberás quanto essa arte pesa”)
(a dama que rege o Inferno, a sua rainha, é Proserpina, esposa de Pluto, que na mitologia antiga é a deusa da lua, conforme Mandelbaum et al. (5), os quais entendem que o verso refere-se a cinquenta luas-cheias, ou seja cinquenta meses).
Farinata pergunta porque Florença é tão cruel com seus partidários. Dante lhe responde que isso é consequência da matança que ocorreu às margens do rio Arbia, ou seja, da matança da batalha de Montaperti (6):
Ond’io a lui: "Lo strazio e ‘l grande scempio
che fece l’Arbia colorata in rosso,
tal orazion fa far nel nostro tempio" (v. 85-87)
("E eu a ele: ‘A matança, o grande derramamento de sangue,/ que fez o Arbia colorir-se de vermelho/ nos levou a tais orações em nosso templo’". Note-se a recorrência, neste v.87, do vocabulário religioso).
Farinata diz que não foi o único responsável pela matança, mas foi o único, sim, a defender Florença no conselho guibelino, após a vitória sobre os guelfos, em que todos queriam arrasar a cidade. Ele afirma ainda -- esclarecendo uma questão levantada por Dante -- que os mortos podem ver longe como os presbitas, i.e. predizer o futuro, mas não têm condições de ver o que está perto, de saber o que ocorre no presente. Dante então pede a Farinata para informar a Cavalcante “que seu filho ainda está entre os vivos” (che ‘l suo nato è co’vivi ancor congiunto – v.111) (Dante sente-se culpado por não ter lhe dado essa resposta rapidamente, confundido naquele momento, por achar que Cavalcante conhecia também o presente, além do futuro).
Todavia, os mortos só podem fazer previsões até o Juízo Final, pois depois disso não haverá mais futuro (7). A “porta ao futuro” se fechará para eles:
Però comprender puoi che tutta morta
fia nostra conoscenza da quel punto
che del futuro fia chiusa la porta. (v.106-108)
(“Assim podes compreender que seja morta/ a nossa consciência desde o momento/ em que a porta ao futuro for cerrada”).
Na sequência, Dante é chamado por Virgílio, que se mantivera um pouco afastado. Mas antes de atendê-lo, pede a Farinata apressadamente para que lhe diga quem mais está com ele naquele círculo dos hereges. Ele diz então:
/.../ “Qui con più di mille giaccio:
qua dentro è 'l secondo Federico,
e 'l Cardinale; e de li altri mi taccio” (v.118-120)
(/.../ “Aqui jazem mais de mil comigo:/ lá dentro está o segundo Frederico/ e o Cardeal; e quanto aos outros me calo”)
Frederico II foi rei de Nápoles e da Sicília, e imperador do Sacro Império Romano de 1215 a 1250. Segundo Ciardi ele era considerado um epicurista assim como o era, assumidamente, Cavalcante dei Cavalcanti (8). Quanto ao Cardeal, informa que se trata de Ottaviano degli Ubaldini (circa 1209-1273), que teria dito, ao ser-lhe recusado um empréstimo pelos guibelinos: “Se tenho uma alma, eu a perdi por causa dos guibelinos, e nenhum deles me ajuda agora” (9), declaração que o torna culpado de heresia.
É curioso notar que essas informações são dadas pelos comentaristas (os atuais se apoiando nos mais antigos) e não por Dante-autor, que é muito sucinto a respeito dos personagens que cita, pressupondo o conhecimento deles por parte do leitor.
Em seguida, enquanto os dois poetas avançam em sua jornada, Dante se mostra pensativo, refletindo sobre a previsão que lhe fizera Farinata. Virgílio então lhe afirma:
“quando sarai dinanzi al doce raggio
di quella il cui bell’occhio tutto vede,
da lei saprai di tua vita il vïaggio.” (v.130-132)
(“quando estiveres diante do gentil esplendor/ daquela cujos belos olhos tudo vêem,/ dela saberás de tua vida a viagem”)
Depois os passos de Virgílio rumam para a esquerda, e avançam para o meio. Dante o segue, por um caminho que vai dar num vale malcheiroso.
É interessante destacar, para concluir, que é uma atitude bem católica essa condenação aos epicuristas aqui realizada. Para Epicuro (342-270 a.C.), cuja moral foi muito mal interpretada, o supremo bem humano é o prazer, ou a ausência de dor. Prazer do corpo (dentro dos limites da razão; por isso nem todo prazer é desejável) e prazer da mente (sem o medo dos deuses, que são indiferentes às paixões humanas) (10). Como não considerar legítima essa busca do prazer em nossa vida para compensar, ainda que minimamente, a miséria da condição humana?
NOTAS
(1) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 359
(2) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.2- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 402
(3) Erich Auerbach- “Mimesis”. S.Paulo: Perspectiva, 1971- p. 172 (“Farinata e Cavalcante”- p.148-173)
(4) Id., ib, p. 157 e 159
(5) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”- op cit, p. 360-361
(6) Id., ib., p. 361
(7) Dante Alighieri- “A Divina Comédia”. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989- v.1, p.190
(8) John Ciardi- “Inferno” (tradução para o inglês e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition. W.W.Norton & Company, p. 806-807.
(9) Id., ib, p. 807
(10) “The Concise Encyclopedia of Western Philosophy and Philosophers”. New edition, completed revised. Edited by J.O.Urmson and Jonathan Rée. London: Unwin Hyman, 1991- p.92-93
Olá, Domingos! Muito obrigado por esta e pelas outras publicações aqui. Estou lendo A Divina Comédia e está me ajudando muito a entender o contexto da obra.
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