sábado, 29 de agosto de 2009

INFERNO- CANTO XIV




Virgílio e Dante aproximam-se agora da terceira volta do sétimo círculo (a dos violentos contra Deus), um areal, “em cujo leito nenhuma planta dava”, circundado pelo bosque dos suicidas, que por sua vez o é por um “fosso triste” (o rio Flegetonte). Eles estão na divisa entre a segunda e a terceira volta, na extremidade daquele bosque. Dali “se via a horrível obra da justiça (divina)” ( ...e dove/ si vede di giustizia orribil arte”- v.5-6). Antes de descrever o que viu, Dante exclama assim, evidenciando que é pelo temor da punição divina que os católicos esperam uma conduta adequada das pessoas (e não pela convicção ditada por uma ética terrena, humanista):
O vendetta di Dio, quanto tu dei
esser temuta da ciascun che legge
ciò che fu manifesto a li occhi mei! (v.16-18)

(“Ó vingança de Deus, quanto tu deves/ ser temida por qualquer um que leia agora/ aquilo que foi manifesto aos olhos meus!”).

Ele vê então três bandos de almas nuas, chorando todas, umas deitadas de costas no areal ardente (os blasfemadores), outras sentadas encolhidas (os usurários), e outras ainda andando continuamente, sem parar (os sodomitas). Todas sofrem com a chuva de flocos de fogo que cai sobre esse areal. Seu castigo mantém correspondência com o fato de que, quando vivos, arderam no fogo de suas paixões (violência, sede de ouro, lascívia) (1).

Sovra tutto ‘l sabbion, d’un cader lento,
piovean di foco dilatate falde,
come di neve in alpe sanza vento. (v.28-30)

(“Sobre todo o areal, em lento cair,/ choviam flocos dilatados de fogo/ como a neve nos Alpes sem o vento.”)

Note-se que se verifica aqui não só uma comparação mas também um contraste, entre a neve e o fogo.

A esses três bandos de violentos contra Deus correspondem três zonas da terceira volta do sétimo círculo. A primeira, abordada neste Canto XIV, trata dos blasfemadores. São os que mais sofrem, pois estão deitados de costas, com o rosto voltado para cima. Os próximos Cantos (XV a XVII) tratarão dos sodomitas (violentos contra a Natureza, criada por Deus) e dos usurários (violentos contra a Arte, que imita a Natureza).

O fogo que caía do céu acendia a areia “como pavio na pederneira, redobrando a dor”, quer dizer duplicando o tormento das almas que ali estavam deitadas. E as mãos dos blasfemadores se agitavam constantemente, procurando afastar as novas chamas.

Dante então pergunta a Virgílio “quem é aquele gigante que parece alheio/ ao incêndio, e jaz altivo e irado” (chi è quel grande che non par che curi/ lo ‘ncendio e giace dispettoso e torto- v. 46-47). Mas é o próprio gigante quem lhe responde: “Como fui vivo, tal morto sou” (Qual io fui vivo, tal son morto.- v.51). E prossegue reafirmando a sua atitude desafiadora perante Jove (outro nome de Júpiter), que em seu último dia o transfixou com um raio. Mesmo que Jove usasse agora todos os raios fornecido por Vulcano ou seus auxiliares (os ciclopes) do Mongibello (o vulcão Etna), ainda assim sua vingança não seria completa (quer dizer, ele não se submeteria). Virgílio explica a Dante que esse “desdenhoso de Deus” é Capaneu, “um dos sete reis que sitiaram Tebas”, capital da Beócia, tema de um famoso episódio da mitologia grega.

Em seguida, Virgílio pede a Dante que o siga: “...e cuida para não pisar/ sobre a areia em brasa; / mas sempre tem os pés junto ao bosque”. Chegam ao lugar onde sai desse bosque um pequeno riacho, “cuja cor vermelha ainda me faz estremecer” (lo cui rossore ancor mi raccapriccia- v.78), nas palavras de Dante. Esse riacho -- em que o leito e as margens eram de pedra -- corria pelo areal, e representava uma passagem para os dois poetas, pois ao longo dele não seriam incomodados pela chuva de fogo. Virgílio diz a Dante que nada do que este viu,
cosa non fu da li tuoi occhi scorta
notabile com’ è ‘l presente rio,
che sovra sé tutte fiammelle ammorta. (v.88-90)

(“nenhuma (coisa) foi testemunhada por teus olhos/ tão notável quanto o presente rio/ que extingue toda chama que cai sobre ele.” ).

E Virgílio continua, referindo-se à ilha de Creta. “Sob seu rei o mundo já foi casto” (/.../ Creta,/ sotto ‘l cui rege fu già ‘l mondo casto- v.95-96), i.e. inocente (é o uso da espécie pelo gênero, nas palavras do Mons. Pinto de Campos, que afirma haver aqui uma referência à mitica idade de ouro de Saturno, mencionada pelos poetas antigos) (2). Reia, a esposa de Saturno, escolheu uma montanha dali, chamada Ida, para esconder seu filho do pai, que enlouquecera e queria devorá-lo pois segundo uma profecia um de seus filhos deveria destituí-lo do poder (3). Quando o bebê chorava, Reia mandava seus súditos fazerem um alarido, para não denunciar sua presença ali.
Dentro dal monte sta dritto un gran veglio,
che tien volte le spalle inver’ Dammiata
e Roma guarda come süo speglio. (v.103-105)

(“No monte está de pé um grande velho/ que volta os ombros para Damiata/ e olha Roma como seu espelho.” )

Trata-se de um monumento cuja cabeça é de ouro, os braços e o peito de prata, o tronco de bronze e o restante de ferro, “salvo o pé direito, que é de terracota,/ sobre o qual, mais do que sobre o outro, está ereto”- salvo che ‘l destro piede è terra cotta;/ e sta ‘n su quel, più che ‘n su l’altro, eretto- v. 110-111 ). Ele apresenta fissuras nas diversas partes, exceto na de ouro, por onde vertem lágrimas que originam os rios do Inferno (Aqueronte, Estige, Flegetonte e Cocito).

O “grande velho de Creta” é, segundo os comentaristas, uma alegoria da humanidade, e suas diversas idades, começando pela do ouro, a da inocência perdida (a parte de ouro não verte lágrimas porque sua idade não apresenta os males que causam prantos, diferente das idades da prata, do bronze e do ferro). O pé direito (o mais frágil) representa a Igreja Católica e o esquerdo, o Império Romano (4). Localiza-se na Ilha de Creta, no centro do mundo de então (os três continentes). Está de costas para Damiata, na foz do Nilo (representando o Oriente, o passado), e seu olhar contempla Roma (símbolo da civilização cristã ocidental, do futuro).

Dante se admira de que, se a origem do riacho é o “nosso mundo”, porque ele só pode ser visto no Inferno. Virgílio lhe explica que ele não deve se admirar porque “embora já tenha descido muito/ sempre à esquerda, em direção ao fundo” (e tutto che tu sie venuto molto,/ pur a sinistra, giù calando al fondo, - v. 125-126), ainda não completou a jornada, e poderá ver coisas novas. No final, ele pergunta onde estão os rios Flegetonte e Letes. O primeiro é aquele mesmo, próximo deles (segundo o já citado Mons.Pinto de Campos, Flegetonte, em grego, significa “ardente”, enquanto Aqueronte quer dizer “sem alegria”, Estige “tristeza” e Cocito “pranto”) (5). Quanto ao rio Letes (que significa “esquecimento”), diz Virgílio:
Letè vedrai, ma fuor di questa fossa,
là dove vanno l’anime a lavarsi
quando la colpa pentuta è rimossa. (v.136-138)

(“Letes o verás, mas fora dessa fossa (i.e. fora do Inferno, no Purgatório),/ lá onde as almas vão lavar-se/ quando a culpa arrependida é cancelada”).

E os dois peregrinos seguem em frente, pelas margens de pedra do Flegetonte, pois “estas margens formam um caminho que não queima/ e sobre elas todo o vapor se esvanece” (li margini fan via, che non son arsi,/ e sopra loro ogne vapor si spegne.- v.141-142).

NOTAS

(1) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.-tradução em prosa do “Inferno”, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 82
(2) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, op cit- p.91
(3) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by
Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 367
(4) Id., ib, p. 367
(5) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, op cit- p.94-96

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