/.../ un bosco
che da neun sentiero era segnato.
Non fronda verde, ma di color fosco;
non rami schietti, ma nodosi e ‘nvolti;
non pomi v’eran, ma stecchi con tòsco. (v.2-6)
(“/.../ um bosque/ que não era cortado por nenhum caminho. Não frondes (= copas de árvores) verdes, mas de cor escura;/ não ramos lisos, mas nodosos e retorcidos;/ não pomos, mas farpas venenosas” ).
Não há nenhum caminho no bosque, quer dizer o suicídio não leva a lugar nenhum. Suas frondes não têm o verde da esperança, mas a cor escura do desespero. A imagem dos ramos nodosos e retorcidos, e não lisos, acentua a aspereza do ato antinatural, contrário ao instinto de sobrevivência. A menção aos seus frutos, que são farpas venenosas, reforça a idéia da esterilidade e nocividade do ato. O fruto do suicídio não alimenta os homens, ou contribui para o seu bem, mas, pelo contrário, lhes é prejudicial (na vida eterna).
É nesse bosque que as Harpias fazem ninho. Os versos dizem que seu rosto e colo são humanos, mas possuem asas, ventre emplumado e pés com garras (são, como já foi dito, símbolo da bestialidade humana). Elas, de acordo com a lenda, expulsaram os troianos da ilha Estrófade, predizendo-lhes um mau futuro (1). Mais adiante se verá que as Harpias alimentam-se com as folhas desse bosque, e isso é causa de sofrimento para os suicidas transformados em árvores.
Virgílio explica que estão agora na segunda volta do sétimo círculo. Aí estão os suicidas e dissipadores, os que praticaram violência contra si mesmos ou os seus bens.
Dante-autor relata sua impressão:
Io sentia d’ogne parte trarre guai
e non vedea persona che ‘l facesse;
per ch’io tutto smarrito m’arrestai. (v.22-24)
(“De toda parte eu ouvia gritos,/ mas não via ninguém que os desse;/ por isso me detive, desnorteado.”)
Dante, hábil na técnica narrativa, faz suspense e assim mantém o interesse do leitor. Onde estão os condenados, i.e os suicidas? A descoberta pelo leitor será fonte de prazer estético.
A princípio, Dante-personagem pensa que as almas se escondiam por entre as árvores (literalmente, ele diz que Virgílio é quem pensava que ele pensava isso, pretexto para Dante-autor conceber este verso tão sonoro pela sua aliteração: Cred'ïo ch'ei credette ch'io credesse- v. 25, assim traduzido por Cristiano Martins- "Eu creio que ele cria então que eu cresse" etc... (1-A). Mas depois (atente-se para o clima mágico, semelhante ao das histórias infantis), ao quebrar ramo de uma delas, é surpreendido por ouvir o seu tronco gritar: Perché mi schiante? (“Por que me partes?” -v.35) . E pelo que ocorre em seguida:
Da che fatto fu poi di sangue bruno,
ricominció a dir: “Perché mi scerpi?
non hai tu spirto di pietade alcuno?
Uomini fummo, e or siam fati sterpi:
ben dovrebb’ esser la tua man più pia,
se state fossimo anime di serpi.” (v.34-39)
( “Cobriu-se logo de sangue escuro,/ e recomeçou: ‘Por que me feres?/ Não possuis nenhum sentimento de piedade?/ Homens fomos e agora somos lenho:/ tua mão bem poderia ser mais pia,/ mesmo que fôssemos apenas almas de serpentes.’” ).
Segue-se uma comparação curiosa entre esse ramo quebrado, de onde saem “palavras e sangue”, e uma acha verde cuja ponta fora do fogo verte água (seu “choro”) e sibila, sons que o poeta procura traduzir pela escolha de certas palavras com z, s e c nestes versos, especialmente no v.40 (conforme observa o Mons. Pinto de Campos) (2):
Come d' un stizzo verde ch' arso sia
da l' un de' capi, che da l' altro geme
e cigola per vento che va via,
sì de la scheggia rotta usciva insieme
parole e sangue; ond' io lasciai la cima
cadere, e stetti come l' uom che teme.” (v. 40-45)
(“Como acha verde que se incendeia/ numa ponta, e na outra chora/ e silva pelo vapor dali desprendido,/ assim daquele lenho roto saíram/ palavras e sangue, de modo que o ramo/ deixei cair, e fiquei como um homem que receia.”)
Virgílio pede à alma em questão que diga quem foi, na vida terrena, para que Dante possa reparar a sua falta involuntária renovando a fama desse condenado no mundo acima, quando a ele retornar. Ele diz que é aquele que detinha as “chaves do coração de Frederico” e “compartilhava seus segredos”, quer dizer desfrutava de sua confiança. Os comentaristas o identificam como Pier della Vigna (c1190-1249), ministro, secretário particular e principal conselheiro do imperador dos romanos Frederico II (3).
Pier caiu em desgraça por conta da inveja, não mencionada explicitamente por ele,
que a chama de meretriz nesta alegoria:
La meretrice che mai da l’ospizio
di Cesare non torse li occhi putti,
morte comune e de le corti vizio,
infiammò contra me li animi tutti;
e li ‘infiammati infiammar sì Augusto,
che ‘lieti onor tornaro in tristi lutti. (v. 64-69)
(“A meretriz que jamais da morada/ de César (= corte de Frederico II) tirou os olhos,/ ela que é a morte de todos e o vício das cortes,/ inflamou contra mim os ânimos de todos;/ e os inflamados inflamaram tanto Augusto (= Frederico II) / que as minhas ledas (= felizes) honras se tornaram tristes lutos.”)
Pier, acusado de traição, foi metido no cárcere e cegado. Desgostoso, suicidou-se. Mas sempre foi leal ao seu senhor e pede agora que lhe promovam a memória no futuro:
E se di voi alcun nel mondo riede,
conforti la memoria mia, che giace
ancor del colpo che ‘nvidia le diede. (v.76-78)
(“E se um de vós retorna ao mundo,/ ajuda minha memória, que ainda jaz/ sob os golpes desferidos pela inveja.”).
Dante está tão apiedado desse homem justo, cuja opção pelo suicídio fez dele injusto (ingiusto fece me contra me giusto- v.72), que não consegue formular perguntas. Pede então a Virgílio que o faça por ele. Este lhe indaga assim:
spirito incarcerato, ancor ti piaccia
di dirne come l’anima si lega
in questi nocchi; e dinne, se tu puoi,
s’alcuna mai di tai membra si spiega”.
Allor soffiò il tronco forte, e poi
si convertì quel vento in cotal voce: (v.87-92)
( “espírito encarcerado, queira dizer-nos ainda/ como a alma se apega/ a estes nós; e dize-nos, se puderes,/ se alguma já se libertou de tais membros nodosos.’. / Então soprou forte o tronco/ e tal vento converteu-se nesta voz:).
A voz lhes explica que quando o suicida comete o seu ato desesperado, Minos manda a sua alma para o sétimo círculo. Onde ela cai, fica, não havendo um lugar predeterminado para ela. Ali germina e a nova planta se desenvolve. As Harpias se alimentam de suas folhas, o que lhes causa sofrimento, abrindo-lhes, por outro lado, “janelas” para as lamentações. No Juízo Final, todas as almas (também chamadas sombras) recuperarão seus corpos, exceto a dos suicidas (já que eles voluntariamente os rejeitaram). Seus corpos ficarão pendurados nesse bosque, “cada um no tronco de sua sombra,/ que lhe foi molesta” (ciascuno al prun de l’ombra sua molesta.- v.108) (essas imagens lembram certas cenas do filme “Apocalypse Now”, de Coppola, inspiradas em Dante, quando o protagonista se aproxima do refúgio do Cel. Kurtz, interpretado por Marlon Brando, no interior da selva. Aliás, um dos grandes paradoxos da nossa civilização, em que a imagem assume um papel tão relevante, é não ter sido a “Divina Comédia” vertida para o cinema, pelo menos não o ter sido por algum diretor importante. E sentimos mais esse paradoxo quando lembramos que o poema é essencialmente visual... ).
De repente, surgem, correndo, “dois espíritos, pela esquerda, nus e arranhados”, que fogem celeremente de duas cadelas negras ferozes. O primeiro é identificado como Lano (provavelmente, Arcolano de Siena, que morreu na batalha de Pieve al Toppo, perto de Arezzo) (4), cujas pernas não foram tão ágeis assim “na justa de Toppo”, conforme observa o segundo, que, sem fôlego, cai sobre um arbusto e é alcançado pelas cadelas, que lhe metem os dentes, fazendo-o em pedaços.
Em seguida esse arbusto se manifesta, quando Virgílio, tomando Dante pela mão, aproxima-se dele, que se lamenta (sopra “dolorosas palavras”) por fendas que sangram. Ele pergunta ao espírito que há pouco foi vitimado:
“O Iacopo”, dicea, “da Santo Andrea,
che t' è giovato di me fare schermo?
che colpa ho io de la tua vita rea?” (v.133-135)
(“Ó Jacopo da Santo Andrea”, ele disse,/ “o que ganhaste usando-me como abrigo?/ que culpa tenho eu pela tua vida iníqua?”)
Jacopo, juntamente com Lano, foram notáveis perdulários, diferentes daqueles mencionados no Canto IV por serem intencionalmente esbanjadores. Lano chegou a pertencer, segundo Mandelbaum et al., a um Clube dos Perdulários.
O Canto conclui com as palavras desse espírito transformado em arbusto, um suicida anônimo de Florença, cidade que, com o advento do cristianismo, substituiu, como patrono, Marte por João Batista. Dante explora literariamente o assunto, atribuindo a instabilidade política de sua cidade natal às artes de Marte, o deus da guerra:
Ed elli a noi: “O anime che giunte
siete a veder lo strazio disonesto
c’ha le mie fronde sì da me disgiunte,
raccoglietele al piè del tristo cesto.
I’ fui de la città che nel Batista
mutò ‘l primo padrone; ond’ei per questo
sempre com l’arte sua la farà trista;
e se non fosse che ‘n sul passo d’Arno
rimane ancor di lui alcuna vista,
que’ cittadin che poi la rifondarno
sovra ‘l cener che d’Attila rimase,
avrebber fatto lavorare indarmo.
Io fei gibetto a me de le mie case.” (v.139-151)
( “E ele para nós: ‘Ó almas que juntas/ já vedes o assalto doloroso/ que minhas frondes andou despedaçando,/recolhei-as ao pé deste triste arbusto./ Eu fui da cidade que trocou pelo Batista/ o seu antigo patrono; por isso, este/ sempre com a sua arte a fará triste;/ e se, na ponte sobre o Arno,/ não restasse ainda dele alguma imagem,/ aqueles cidadãos que depois a refundaram/ sobre as cinzas que Átila deixou,/ teriam feito trabalhar em vão./ Da minha casa eu fiz o meu patíbulo.”’).
Na realidade, segundo os comentaristas, Florença não foi destruída por Átila e sim por Tótila, rei dos Vândalos e dos Godos, em 542 (5).
Como diz Ciardi, o castigo que os suicidas receberam nesse círculo do Inferno (sua transformação em árvores) é bem apropriado, considerando que destruíram a si próprios, quer dizer, rejeitaram a sua forma humana. Por outro lado, o dos dissipadores de seu patrimônio (estraçalhados pelas cadelas ferozes) representa simbolicamente a violência que praticaram contra seus próprios bens (6).
NOTAS
(1) Dante Alighieri- “A Divina Comédia”. Tradução, introdução e notas de Cristiano Martins. 5a. ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1989- v.1, p. 210
(1-A) Id., ib., p.212
(2) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 39-40
(3) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 365
(4) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”- op cit, p. 365
(5) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”- op cit, p. 365; Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d., p.55
(6) John Ciardi- “Inferno” (tradução para o inglês e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition. W.W.Norton & Company, p. 816-817
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