Malebolge- Botticelli |
Neste Canto, os poetas iniciam a visita ao oitavo círculo, chamado por Dante Malebolge, que significa “bolsas do mal”. São dez fossas ou valas circulares e concêntricas, em torno de um poço central (local do nono e último círculo). Essas dez valas, situadas descendentemente entre tal poço e paredes de pedra, são atravessadas por arestas, ou “pontes”, que unem todas elas (precariamente na sexta vala, pois estão ali em ruínas por causa do terremoto que ocorreu após a morte de Cristo, como se verá adiante) (1). É por aí que os poetas avançam em sua jornada em direção ao fundo do Inferno.
No Malebolge, que abrange treze cantos (Cantos XVIII a XXX), estão diversos tipos de fraudulentos, os que lograram os outros para alcançar os seus propósitos mesquinhos, geralmente associados ao dinheiro. O Canto XVIII trata das duas valas iniciais, a primeira reservada aos rufiões e sedutores e a segunda aos bajuladores.
Os poetas desmontam de Gerion, e Dante observa os que são castigados na primeira vala, desnudos, açoitados pelos demônios, uns indo e outros vindo (Dante os compara à multidão de peregrinos em Roma em busca de indulgências, no ano do Jubileu de 1300: por um lado da ponte iam os que tinham vista para o Castelo (de Sant’Angelo) e rumavam para S.Pedro, e por outro, em direção oposta, os que vinham dali, “em direção ao Monte” (Giordano, provavelmente) (2). Diz Dante, sobre a pena imposta a esses condenados:
Di qua, di là, su per lo sasso tetro
vidi demon cornuti con gran ferze,
che li battien crudelmente di retro. (v.34-36)
(“Aqui e ali, pelo rochedo tétrico,/ vi demônios cornudos, com grandes chicotes/ que lhes açoitavam cruelmente por trás.” )
Os demônios, segundo Ciardi, representam a natureza viciosa dos rufiões e sedutores e o fato de serem cornudos pode sugerir a traição dos amantes (3). Também para o Mons. Pinto de Campos os cornos “Significam os efeitos do vício punido nessa fossa” (4).
As chicotadas os faziam avançar continuamente. Dante então reconhece um deles. Já o viu antes, e expressa essa idéia de uma forma peculiar no v. 42, em que intencionalmente confunde os sentidos da visão e do paladar: “Já de ver este não passei jejum” (Già di veder costui non son digiuno”). Trata-se de Venedico Caccianemico, um bolonhês, ”que levou Ghisolabella (sua irmã) a fazer a vontade do Marquês” (d'Este) (v. 55-56 ), quer dizer serviu de alcoviteiro da própria irmã. E Dante aproveita a oportunidade para fazer aqui uma crítica mais geral aos bolonheses, quando Venedico diz:
E non pur io qui piango bolognese;
anzi n’è questo loco tanto pieno,
che tante lingue non son ora apprese
a dicer ‘sipa’ tra Sàvena e Reno; (v.58-61)
(”Não sou o único bolonhês que chora aqui;/ este lugar é tão cheio de nós/ que tanta língua não vês dizer sipa (“sim”, em seu dialeto)/ entre Savena e Reno.”) (Esses rios servem de limites para a circunscrição de Bolonha).
Mas “Enquanto falava, um demônio o golpeou/ com seu chicote, e disse: ‘Fora, rufião!/ aqui não há mulheres que possas vender!’” :
Così parlando il percosse un demonio
de la sua scurïada, e disse: “Via,
ruffian! qui non son femmine da conio.” (v. 64-66)
Depois, na “ponte”, eles olham a fileira dos que se aproximavam do outro lado, também impulsionados pelo chicote. Identificam Jasão, o líder dos argonautas da mitologia clássica, que roubou dos cólquidas o velocino de ouro. Dante então faz referências aos fatos da vida desse sedutor, que engravidou e abandonou a jovem Hipsípile, filha do rei da ilha de Lemnos, e se envolveu também com Medéia, a qual, sendo rejeitada, matou por vingança os dois filhos que tivera com ele (5). Jasão está entre outros sedutores: “Com ele vai quem de tal modo engana” (Con lui sen va chi da tal parte inganna; v 97).
Na sequência aproximam-se da segunda vala, ouvindo os condenados dali bufar e bater em si mesmos com as palmas das mãos, em ambiente tão repugnante “que aos olhos e nariz fazia guerra” (che con li occhi e col naso facea zuffa- v. 108). Bem no seu fundo estão os bajuladores, imersos nas fezes. Diz Dante:
Quivi venimmo; e quindi giù nel fosso
vidi gente attuffata in uno sterco
che da li uman privadi parea mosso.
E mentre ch’ío là giù con l’occhio cerco,
vidi un col capo sì di merda lordo,
che non parëa s’ era laico o cherco. (v. 112-117)
(”Ali chegamos; e lá no fosso/ vi gente chafurdada em tal esterco/ que parecia provir de privadas humanas./ E enquanto o fundo com os olhos eu investigava,/ vi um com a cabeça tão suja de merda/ que não distinguia se era leigo ou clérigo. “).
sì che la faccia ben con l’occhio attinghe
di quella sozza e scapigliata fante
che là si graffia con l’unghie merdose,
e or s’accoscia e ora è in piedi stante.
Taïde è, la puttana /.../ (v.129-133)
(“de modo que atinjas com os olhos a face/ daquela suja e desgrenhada rameira/ que lá se arranha com suas unhas cheias de merda,/ e ora se agacha, ora se levanta./ É Taís, a puta /.../)”(segundo os comentaristas, ela é uma cortesã na peça “Eunuco” de Terêncio (6) )
Como se vê, a linguagem de Dante também pode ser chula, incorporando os palavrões usados pelo povo, o que reflete sua concepção original a respeito da obra literária, que o diferencia dos clássicos antigos. Tal concepção o levou a compor a “Comédia” no italiano popular em vez do latim erudito e a adotar aí uma linguagem nem sempre elevada mas correspondente ao contexto em que se situa a ação do poema.
NOTAS
(1) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d.- “Inferno”- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p. 203
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 371
(3) John Ciardi- “Inferno” (tradução e notas) in “The Norton Anthology of World Masterpieces”. Fifth Continental Edition. W.W.Norton & Company, p. 838
(4) Dante Alighieri- “Obras Completas", v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d., op cit, p. 224
(5) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 371-372.
(6) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 372; cf também Dante Alighieri- “Obras Completas, v.3- S.Paulo: Editora das Américas, s.d., op cit, p. 229-230.