sexta-feira, 13 de março de 2009

INFERNO- CANTO II


Beatriz e Virgílio


No final daquele dia, do início da viagem pelo mundo dos mortos (Sexta-feira Santa), Dante expressa suas dúvidas a Virgílio. Não sente que essa viagem esteja suficientemente justificada, nem se sente autorizado a fazê-la, pois ele não é Enéas (“o pai de Sílvio”), nem S.Paulo (“o Vaso de Eleição”), que a fizeram antes dele, quando vivos. Estes eram pessoas especiais. O primeiro foi o escolhido por Deus (chamado de “o adversário de todo o mal”: l'avversario d'ogne male- v.16) para fundar Roma e o segundo, para reforçar a fé dos homens. E quanto a ele?

Virgílio, para afastar aquilo que qualifica como covardia (viltade- v.45) na alma de Dante, inicia sua resposta lhe dizendo como foi solicitado a vir em seu socorro, quando seu acesso ao bel monte (ou dilettoso monte, cf. Canto I) era impedido pela loba. Ele se encontrava “entre aquelas almas suspensas” (Io era tra color che son sospesi- v.52), i.e., no Limbo, onde ficam os pagãos justos, e foi lá visitado por Beatriz, que o mandou ir em socorro de Dante. Reproduz então o diálogo que manteve com Beatriz (v.43-126), o qual abrange 83 dos 142 versos do Canto. Contém diálogos dentro do diálogo padrão, que é o mantido entre Dante e Virgílio. Assim, respondendo a Dante, Virgílio incorpora a sua conversa com Beatriz, que por sua vez, quando fala, reproduz o que a “gentil Senhora”, no Céu, disse a Lúcia (v.98-99), e o que esta lhe disse (v.103-108), sugerindo que fosse procurar Virgílio. O autor da “Eneida” pergunta a Beatriz a razão de ela não ter sido mais prudente, descendo para o Inferno, desde o Paraíso. Beatriz lhe responde que as coisas dali lhe são inócuas, as chamas não têm o poder de afetá-la. Pelo que ela diz, ficamos sabendo que se desenrolou no céu esta cena delicada, imaginada pelo Dante-autor: a “gentil Senhora” (Nossa Senhora), compadecendo-se da situação aflitiva de Dante, chama Lúcia (ou Luzia, “cujo nome deriva de luz” (1), a santa protetora da visão, de quem Dante era devoto) e lhe diz:

/.../ --Or ha bisogno il tuo fedele
di te, e io a te lo raccomando-- (v.98-99)
(“Agora precisa de ti aquele que te é fiel,/ e eu o confio a ti”).

Lúcia então vem até onde estava Beatriz, sentada ao lado de Raquel (a amada de Jacob, irmã de Lia, conforme a Bíblia), e
Disse:-- Beatrice, loda di Dio vera,
ché non soccorri quei che t’amò tanto,
ch’usci per te de la volgare schiera?

Non odi tu la pieta del suo pianto,
non vedi tu la morte che’l combatte
su la fiumana ove ‘l mar non ha vanto?—(v. 103-108)
( “Disse: -- Beatriz, vero louvor a Deus,/ por que não socorres aquele que te amou
tanto,/ que por tua causa afastou-se da multidão vulgar?/ Não ouves o tormento do seu pranto?/ não o vês lutando contra a morte/ junto ao rio implacável como o mar?”).

Então, Beatriz imediatamente vai ao encontro de Virgílio, para pedir a sua intervenção, pois confia “no seu falar honesto”. Essa é a explicação para Virgílio estar lá na selva oscura, no momento de perigo, e auxiliar Dante, retirando-o do caminho da loba, que impedia a sua subida na montanha. Virgílio assim não compreende a tibieza de seu discípulo, quando “três damas benditas” do Céu, e ele próprio, estão buscando o seu bem. O Canto termina quando Dante, desse modo encorajado, decide reiniciar a viagem.
Destaque-se, nesse final do Canto, o símile contido nos versos 127-130, que expressa a mudança de ânimo de Dante, após Virgílio lhe mostrar o interesse nele por parte daquelas tre donne benedette:

Quali fioretti dal notturno gelo
chinati e chiusi, poi che ‘l sol li’ mbianca,
si drizzan tutti aperti in loro stelo,

tal mi fec’io di mia virtude stanca,
( “Como florezinhas que, à noite, enregeladas,/ pendem murchas, e à luz do sol/ se endireitam e desabrocham em seus caules,/ assim fiz eu, também, com minhas forças exaustas”).

Qual o sentido do Canto II? Para Dante-autor, engajado na defesa da fé católica, o ser humano deve vencer a sua tibieza, deve empenhar-se na busca da salvação. Pois Dante-personagem --representante do gênero humano-- se mostra, no início, vacilante em empreender a sua jornada espiritual. Segundo Virgílio, isso ocorre com freqüência no homem, essa covardia “o distrai da honrada empresa,/ como os animais vêem fantasmas quando escurece” (sì che d'onrata impresa lo rivolve,/ come falso veder bestia quand'ombra- v.47-48). Os homens são comparados aos animais quando se desviam do bom caminho e vivem na escuridão, i.e. na ignorância (já no v.2 deste Canto Dante refere-se a li animai). Mas Dante afinal decide-se a fazer a viagem, convencido pelas palavras sensatas de Virgílio. Aliás, Virgílio é chamado de “sábio” no v. 36, como o fora no Canto anterior (I,89). Ele representa, como vimos, a Razão humana, enquanto Beatriz é símbolo da Fé. Ela é chamada de “bem-aventurada e bela” (beata e bella-v.53), sua voz é angelical (angelica voce-v.57). Nos versos 55-57 seus olhos, reforçando a conotação celeste, são associados às estrelas:

Lucevan li occhi suoi più che la stella;
e cominciommi a dir soave e piana,
con angelica voce, in sua favella:
(“Seus olhos luziam mais do que a estrela;/ e começou a falar gentil e suavemente,/ com voz angélica, na pátria língua sua:” )

Também nos versos 115-117, quando Beatriz vai pedir a intervenção de Virgílio, este destaca que seus olhos são “cintilantes”:

Poscia che m’ebbe ragionato questo,
li occhi lucenti lagrimando volse,
per che mi fece del venir più presto.
(“Quando ela terminara de falar,/ voltou para o lado seus cintilantes olhos lacrimosos,/ que me fizeram vir mais rápido”) (em socorro de Dante).

No v. 61, Beatriz chama Dante de seu amigo, “não da ventura”, esta assim personificada.

Ocorre nesse Canto a intervenção do primeiro personagem bíblico: Raquel, com quem Jacob queria se casar. Mas o pai dela, em vez de Raquel, lhe deu a irmã, Lia. Segundo notas à tradução de Mandelbaum (2), Raquel é símbolo da Vida Contemplativa e Lia, da Vida Ativa. São personagens também do famoso soneto de Camões, que reproduz o episódio narrado na Bíblia, cujo primeiro quarteto é o seguinte: “Sete anos de pastor Jacob servia/ Labão, pai de Raquel, serrana bela;/ Mas não servia ao pai, servia a ela,/ Que a ela só por prêmio pretendia.”

No Canto II são mencionados também os primeiros personagens mitológicos. Além da musa, referida no v. 7, menciona-se Enéas, filho de Anquises e Vênus. Após a derrota de Tróia ele se estabeleceu na região da atual Itália, sendo considerado fundador mítico de Roma. A menção ao “pai de Sílvio”, como diz a “Eneida”, e à metáfora do “Vaso de Eleição” (3), conforme a Bíblia, ou seja Enéas e S.Paulo, nos remetem às instituições do Império (Romano) e da Igreja, os dois pilares em que se assenta a sociedade humana conforme o ponto de vista de Dante exposto em seus escritos sobre teoria política (cf. mais adiante a referência à alegoria do Velho de Creta nos comentários ao Canto XIV).

Os versos 103-108 citados acima nos fazem lembrar da morte prematura de Beatriz real, a quem o poeta encontrou pela primeira vez ainda na infância, aos 9 anos, amando-a à primeira vista. Ela faleceu aos 24 anos, em 1290. Certamente a morte dessa jovem tão cedo deve ter sido um dos fatores determinantes da concepção da “Divina Comédia”, essa viagem de um ser vivo pelo mundo dos mortos. O poeta então teria a oportunidade de reencontrá-la, ainda que em sonho...



Os versos 37-42, que contêm uma comparação, expressam situações contraditórias, muito freqüentes em nossa vida. Impulsivamente, nos decidimos por alguma coisa. Mas depois, ao refletirmos sobre o tema, mudamos de idéia e já não queremos mais aquilo pelo qual nos decidíramos:
E qual è quei che disvuol ciò che volle
e per novi pensier cangia proposta,
sì che dal cominciar tutto si tolle,

tal mi fec’io ‘n quella oscura costa,
perché, pensando, consumai la ‘mpresa
che fu nel cominciar cotanto tosta.
(“E como quem já não quer o que quer/ e muda o que pretende para buscar novos fins/ retirando-se do que tinha começado, /assim eu me encontrava naquela escura selva,/ porque, com meu pensar, eu anulava a empresa/ de que me encarregara tão rapidamente”).


NOTAS

(1) Dante Alighieri- “Obras Completas, v.2- S.Paulo:Editora das Américas, s.d.-tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p.9 e p.44
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 348

(3) Segundo o Mons. Pinto de Campos, o “Vaso de Eleição” “é a grande nau escolhida pelo Espírito Santo /.../ para levar o nome de Cristo a todas as nações” (Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.2- op.cit., p. 33). Afirma-se aí também que S.Paulo visitou o Paraíso “para excitar os homens a seguir a verdadeira fé”.

quinta-feira, 12 de março de 2009

INFERNO- CANTO I

O original italiano, não só deste Canto mas de todos os outros, pode ser ouvido no seguinte web site:  http://etcweb.princeton.edu/dante/pdp/ 

Ilustrações inspiradas pela "Divina Comédia":



Ilustrações de Giovanni Stradano (ou Jan van der Straet) para o Inferno:


Ilustrações de Gustave Doré para o Inferno:
http://www.youtube.com/watch?v=1cQlCHhwXE8 

Aquarelas de William Blake para a "Divina Comédia":
http://www.ideafixa.com/as-aquarelas-de-william-blake-para-a-divina-comedia/




O Canto I (e o poema) inicia com o famoso terceto:
Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi retrovai per una selva oscura,
ché la diritta via era smarita. (I, 1-3)
(“No meio do caminho de nossa vida/ me encontrei numa selva escura/ pois havia me extraviado do caminho certo” ) (*)

Dante, protagonista da “Comédia”, que a posteridade chamará de “Divina”, inicia sua jornada pelos três reinos do Além -- o Inferno, o Purgatório e o Paraíso -- quando se encontra no meio da vida. Ele contava então 35 anos, pois nasceu em 1265 e a ação do poema se passa em 1300, iniciando em 7 de abril desse ano, uma Quinta-Feira Santa, segundo notas à tradução de Mandelbaum (2), que também informam ser essa idade, para ele, o ponto médio da existência humana, conforme passagem em outra obra sua, “Il Convivio”, baseada numa citação bíblica (Livro dos Salmos).
O poeta, assim, no meio da vida, encontra-se perdido numa selva oscura. Extraviou-se do bom caminho. Após transpor um desfiladeiro perigoso, numa noite aflitiva, povoada de temores no “lago do coração” (lago del cor- v.20), uma metáfora, chega ao pé de uma montanha. Seu medo se abranda ao ver a encosta da montanha já revestida dos primeiros raios de Sol do novo dia. E ele faz esta
comparação:
E come quei che con lena affannata,
uscito fuor del pelago a la riva,
si volge a l’acqua perigliosa e guata,

cosi l’animo mio, ch’ancor fuggiva,
si volse a retro a rimirar lo passo
che non lasciò già mai persona viva (I,22-27)
(“E como aquele que, com respiração cansada,/ fugido do mar, chega à praia,/ volta-se para olhar as águas perigosas,/ assim a minha alma, ainda fugitiva,/ voltou-se para olhar o desfiladeiro/que pessoa viva jamais transpôs” )

Anima-se a escalar a montanha, mas encontra uma onça. Apesar disso, a hora e a “doce estação” (dolce stagione), a primavera, lhe deixam esperançoso; a hora é a do sol nascente:
e 'l sol montava 'n sù con quelle stelle
ch'eran con lui quando l'amor divino
mosse di prima quelle cose belle; (I, 38,40)
(“o sol se levantava agora em associação/ com as mesmas estrelas que o tinham escoltado/ quando o amor divino primeiro moveu essas coisas belas” ).

Aparece depois um leão faminto, que lhe infunde medo, e por fim uma loba insaciável. À vista desta fera, toda a sua esperança de subir a montanha desaparece. Enquanto a loba se aproxima, ameaçadora, ele recua para terreno mais baixo, mais escuro: “me impelira para onde o sol se cala”: mi ripigneva là dove 'l sol tace- v.60, uma sinestesia (3). Dante sente a presença de alguém ali, naquele local mais escuro, o que lhe aumenta o temor. E a sombra lhe fala. Pergunta porque ele não subiu a montanha. Pelas informações que ela lhe dá sobre si mesma, Dante reconhece nessa sombra a presença de Virgílio. Ocorre aqui outro caso de sinestesia (cf. nota à tradução de Mandelbaum (4) ), quando o v. 63 diz: ele era “alguém que parecia indistinto pelo longo silêncio” (chi per lungo silenzio parea fioco), misturando-se no verso os sentidos da audição e da visão.

Ao reconhecer Virgílio, Dante o elogia, considerando-o “fonte/ que jorra tão largo rio de eloqüência” (fonte/ che spandi di parlar sì largo fiume- v.79-80), uma metáfora. Além disso, afirma o seguinte, colocando-se na posição de seu discípulo:
Tu se’ lo mio maestro e ‘l mio autore,
tu se’ solo colui da cu’ io tolsi
lo bello stilo che m’ha fatto onore (I,85-87).
(“Tu és o meu mestre e o meu autor,/ o único de quem meu escrito retirou/ o belo
estilo pelo qual tenho sido honrado”).

No Canto II, Virgílio será referido assim: tu duca, tu segnore e tu maestro ("tu és o guia, o senhor e o mestre") (II, 140)

Note-se, quanto à linguagem utilizada, que Dante o trata por “tu”, mais informal e íntimo do que o tratamento por “vós”. Virgílio também o tratará assim, nos versos (e cantos) subseqüentes.
Dante diz a Virgílio que não subiu a montanha por causa da loba e pede que o poeta lhe ajude a enfrentá-la. Virgílio, ao tomar a palavra (sua manifestação vai quase até o fim do Canto), faz esta crítica à loba:
e ha natura sì malvagia e ria,
che mai non empie la bramosa voglia,
e dopo ‘l pasto ha più fame che pria.

Molti son li animali a cui s’ammoglia,
e più saranno ancora, infin che ‘l veltro
verrà, che la farà morir com doglia. (I, 97-102)
(“sua natureza é tão malvada e suja,/que nunca sacia sua vontade cobiçosa;/ depois de alimentada tem mais fome ainda./ Muitos são os animais com quem se acasala,/ e mais serão ainda, até que chegue o galgo,/ que a fará ter morte dolorosa.”)

O galgo -- "Cão de talhe elevado, pernas longas e musculares, abdômen estreito e focinho afilado, e que se caracteriza pela agilidade e rapidez" (5) -- matará a loba e a mandará de volta para o Inferno. Restaurará a Itália, por quem morreram Cammilla, Eurialo, Turno e Niso (personagens da “Eneida”, que lutaram contra Enéas, o troiano, nas guerras das suas origens míticas). Virgílio afirma que será o guia de Dante (io sarò tua guida- v.113) por lugares eternos, onde ele ouvirá “os uivos do desespero” (ove udirai le disperate strida-v.115) (o Inferno) mas também verá “almas contentes dentro do fogo” (e vederai color che son contenti/ nel foco /.../ v.118-9) (o Purgatório). Depois disso, “uma alma mais digna que ele o guiará” (anima fia a ciò più di me degna- v. 122) (Beatriz), pois o “Imperador” celeste (metáfora usada aqui para designar Deus, cujo nome não é pronunciado no Inferno), que rege em toda parte, não permite que ele entre em “sua Cidade”, por não ter vivido de acordo com sua Lei (Virgílio pertence à era pagã, pois viveu no primeiro século antes de Cristo). Dante, ao falar, pede que ele o guie nessa jornada em que foge dos males terrenos. Virgílio então inicia a viagem, e Dante o segue. Encerra-se assim o enredo do Canto I.

A forma poética adotada por Dante neste Canto, e em toda a “Divina Comédia”, é a chamada “terza rima”, criada por ele mesmo. Compõe-se de versos decassilábicos, encadeados num esquema de rimas do tipo aba-bcb-cdc..., em que o primeiro verso do terceto rima com o terceiro e o segundo fornece a rima para o próximo terceto. A cesura desses versos é, geralmente, apoiada na 6a. e 10a sílabas, como ocorre nos versos citados: Nel mezzo del cammin di nostra vita (I,1) etc. É o chamado “decassílabo heróico”, segundo os manuais de Teoria Literária (1). Mas o “decassílabo provençal” também pode ser usado, com cesura na 4a., 7a. e 10a sílabas, como em: ripresi via per la piaggia diserta (I, 29) (Movendo-me de novo, tentei o declive solitário) assim como o “decassílabo sáfico”, com cesura na 4a., 8a e 10a.: sembiava carca ne la sua magrezza, (I, 50) (sua magreza era só anseio). Essas são características formais comuns a todos os Cantos do poema, cujo tamanho é, em geral, de 140 ou 150 versos.

No Canto I, o diálogo entre Dante e Virgílio abrange 71 dos 136 versos do Canto. Essa é outra característica formal comum aos Cantos. Eles geralmente se baseiam em diálogos, mantidos entre Dante e seu mestre, ou com alguma alma que encontram pelo caminho. O poema, uma narrativa dramática, é afinal uma “commedia”, que tem esse nome porque acaba bem, ao contrário do que ocorre na tragédia.

Até aqui vimos o que diz, resumidamente, o Canto I. Qual é o seu sentido?
O Canto introduz o leitor no universo da obra, que se propõe a ser um relato da viagem insólita de um homem, ainda vivo, pelos três reinos do Além, em conformidade com a concepção da religião católica. Esse homem é Dante mesmo, autor e protagonista do seu poema. A jornada por esses mundos é na realidade uma alegoria da sua desejada ascensão espiritual, após um balanço do passado feito no meio da vida, em que constata estar levando vida pecaminosa, extraviado do bom caminho, aquele que leva à salvação da alma. Para alcançar o Paraíso é preciso que ele passe primeiro pelo Inferno (reconhecendo a existência dos pecados) e depois pelo Purgatório (onde se verifica o seu arrependimento), sempre guiado por Virgílio, o poeta latino, chamado no v.89 de sábio (“famoso saggio”), que representa a Razão humana no poema. Por isso ele não poderá guiá-lo até o Paraíso, papel que será atribuído a Beatriz, símbolo da Fé , como se verá adiante, pois para o católico Dante a salvação não é alcançada apenas pela Razão.

A “Comédia” faz extenso uso das alegorias (6). E o Canto I do Inferno, que nos introduz a todo o poema, é justamente o mais alegórico. O poeta, no meio do caminho da vida (a vida é um caminho), se encontra extraviado da via eticamente correta, verdadeira (diritta via- v.3; verace via- v.12). Encontra-se na selva oscura-v.2 (ou “selva selvagem áspera e densa”: selva selvaggia e aspra e forte- v.5 -- notar aí o polissíndeto-- ou selva amarga: selva amara- v.7) da vida pecaminosa, quando se depara com a sombra de Virgílio, que o guiará a partir de então, possibilitando a Dante avançar em sua jornada de modo a evitar as três feras que o ameaçam-- uma onça, um leão e uma loba, impedindo-o de escalar a montanha, imagem da ascensão espiritual almejada pelo poeta (“/.../ montanha do deleite, que é origem e causa de toda alegria”: /.../ dilettoso monte/ ch’è principio e cagion di tutta gioia- v.77-78) visando a salvação. Ele se sente atraído a subi-la, quando suas encostas estão iluminadas pelo Sol (encostas “revestidas já dos raios do planeta/ que conduz direito os homens por todos os caminhos”— vestite già de’ raggi del pianeta/ che mena dritto altrui per ogne calle- v.17-18) o qual já anuncia o novo dia. O Sol é fonte de luz, esclarecimento, é Deus. Naturalmente a escuridão está associada ao vício e à ignorância.

As três feras citadas simbolizam, respectivamente, os pecados punidos nas três divisões em que se agrupam os nove círculos do Inferno, onde estão os que pecaram pela incontinência (círculos 2º ao 5º), os violentos (círculo 7º) e os fraudulentos (círculos 8º e 9º). A classificação dos pecados de Dante, exposta no Canto XI, baseia-se na Ética do “mestre dos homens que sabem” (/.../ maestro di color che sanno- IV, 131), Aristóteles. Mas também representam, de acordo com a tradição, a luxúria, a soberba (responsável pela situação conflituosa da Itália de Dante, decorrente da rivalidade de suas principais famílias) e a avareza, representada pela loba. A onça tem “pele manchada” (pel macolato- v.33), “pele graciosa” (gaetta pelle- v.42). O soberbo leão, no v.47, tem a “cabeça erguida” (testa alta) e “fome voraz” (rabbiose fame).
Mas é sobre a loba que Dante se estende mais em sua crítica. Ela é o maior obstáculo que ele enfrenta no seu caminho para Deus, impelindo-o “para onde o sol não fala” (v.60), i.e. para a escuridão. Também o impede de escalar o dilettoso monte... A loba se destaca pela sua magrezza- v.50 (v.50), “vontade cobiçosa” (bramosa voglia- v.98). Atemoriza muito Dante. Sua natureza é má, “depois de alimentada tem mais fome ainda” (e dopo 'l pasto ha più fame che pria- v.99) etc (cf. os versos citados acima).

Dante usa o expediente sonoro da aliteração no nome das três feras- lonza, leone, lupa, cuja consoante inicial (consoante líquida) é a mesma de Lúcifer, não por acaso, certamente (cf. nota à tradução de Mandelbaum) (10). Aliás, no v. 5 a expressão selva selvaggia também contém uma aliteração, enfatizando a “selva” alegórica da vida pecaminosa em que Dante se encontra.



O galgo (veltro) expressa a esperança do poeta pela vinda de alguém que mudará radicalmente a situação da Itália de seu tempo. Ele é assim caracterizado: “não se alimentará de terra ou moeda, como a loba, “mas de sabedoria, amor e virtude” (Questi non ciberà terra né peltro,/ ma sapïenza, amore e virtute- v.103-104). Quem seja ele é assunto controvertido entre os intérpretes. As notas à tradução de Mandelbaum (7) citam as várias possibilidades aventadas. Ele poderia ser Cangrande della Scalla, protetor do Dante exilado, pois Feltre e Montefeltro eram os limites de seus domínios; ou um outro líder político, entendendo “feltro” como o forro das urnas em que depositavam seus votos os eleitores de então. Os partidários dessa interpretação traduzem essa palavra no v.105 com letras minúsculas: “o seu local de nascimento será entre dois feltros” (e sua nazion sarà tra feltro e feltro). O Mons. Joaquim Pinto de Campos vê no galgo não um líder temporal da época (Cangrande ou outro dos nomes aventados pelos estudiosos- Henrique de Luxemburgo, Ugoccione della Faggiola), não um homem vivo mas um espírito, um santo pontífice, do reino que não é deste mundo. Assim, o galgo representaria o papa Bento XI, que também nasceu entre Feltro e Montefeltro e foi envenenado em 1304 pelos partidários de Felipe o Belo, rei de França. Ele imporia a civilização sobre a barbárie. O mesmo autor entende “feltros”, de acordo com antigos comentadores, como “os céus”. “O Poeta, pois, quis significar que a nação do Veltro era entre os céus, e a terra, era o mundo /.../” (8). Aliás, Vasco Graça Moura assim traduz o v. 105 antes citado: “e seu país será de céu a céu” (9).

O galgo matará a loba e a mandará de volta para o Inferno, “de onde foi expelida pela inveja primeira” (là onde 'nvidia prima dipartilla- v.111), i.e., pela inveja de Lúcifer, no princípio do mundo, com relação ao homem: “Lúcifer, invejando a felicidade do homem destinado a sucedê-lo na glória que havia perdido, por sua rebelião, tentou os nossos primeiros pais, da transgressão dos quais nasceu a avareza, e os outros vícios, de que ela é raiz”, nas palavras do referido Mons. Pinto de Campos (10).

Para concluir, devo lembrar que o número 3, e seus múltiplos desempenham um papel importante no poema. A “Divina Comédia” é composta de três partes-- Inferno, Purgatório e Paraíso-- cada uma delas formada por 33 Cantos. Mas o Inferno possui 34 Cantos, justamente por causa deste canto introdutório. Além disso, o poema adota a “terza rima”, com estrofe de três versos, e cada uma de suas partes possui nove subdivisões. Por aí se vê que a cosmovisão religiosa de Dante, fundada em Deus-- que não é um mas três (a Santíssima Trindade) -- está associada também à tradição esotérica...
---------------
(*) A tradução em português, que se baseia nos autores citados nas Notas aos comentários dos diversos Cantos, não tem a pretensão de estabelecer um equivalente poético em nossa língua mas tão somente indicar o que dizem os versos originais. A estes se dará absoluta prioridade neste trabalho, a fim de se levar sempre em conta a sua (bela) sonoridade, que é intraduzível.


NOTAS

(1) Cf por exemplo Tavares, Hênio—“Teoria Literária”- 4ª. ed.. Belo Horizonte: Editora Bernardo Álvares S.A., 1969- p.203-204
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 344
(3) A sinestesia é definida por Hênio Tavares, op cit., p.233, como “a evocação de impressões sensoriais pela palavra”, termo que pode abranger também “a transposição dos sentidos, que se misturam“, caso ilustrado pelo autor com o poema “A voz dos aromas” de Martins Fontes
(4) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 345
(5) “Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”. 2a ed., rev. e aum.- Nova Fronteira, 1986, p. 830.
(6) Alegoria, segundo Hênio Tavares, op. cit., p. 386, “É uma sequência de metáforas, ou seja, a exposição do pensamento ou da emoção sob ampla forma tropológica e indireta, pela qual se representa um objeto para significar outro./.../ Uma figura de mulher, com uma balança numa das mãos e uma espada na outra, é a alegoria de Têmis, ou seja, a Justiça.” O mesmo autor ainda define “metáfora” como “uma comparação elíptica” citando como exemplo o verso de Gonçalves Dias-- “A vida é combate”, o qual se transforma em “comparação” (ou símile) se for assim expresso: “A vida é como combate”.
(7) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. 346-347
(8) Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.1- São Paulo: Edit das Américas, s.d.- Inferno- tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos. “Introdução ao Canto 1º”, p. 1-73 (cf. especialmente p.60-62)
(9) Dante Alighieri- “A Divina Comédia”. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2005, p.37
(10) Dante Alighieri- “Obras Completas”, v.1- Edit das Américas, op cit., pp. 143, 134 e 138 (“Comentários ao Canto 1º”)