Beatriz e Virgílio |
No final daquele dia, do início da viagem pelo mundo dos mortos (Sexta-feira Santa), Dante expressa suas dúvidas a Virgílio. Não sente que essa viagem esteja suficientemente justificada, nem se sente autorizado a fazê-la, pois ele não é Enéas (“o pai de Sílvio”), nem S.Paulo (“o Vaso de Eleição”), que a fizeram antes dele, quando vivos. Estes eram pessoas especiais. O primeiro foi o escolhido por Deus (chamado de “o adversário de todo o mal”: l'avversario d'ogne male- v.16) para fundar Roma e o segundo, para reforçar a fé dos homens. E quanto a ele?
Virgílio, para afastar aquilo que qualifica como covardia (viltade- v.45) na alma de Dante, inicia sua resposta lhe dizendo como foi solicitado a vir em seu socorro, quando seu acesso ao bel monte (ou dilettoso monte, cf. Canto I) era impedido pela loba. Ele se encontrava “entre aquelas almas suspensas” (Io era tra color che son sospesi- v.52), i.e., no Limbo, onde ficam os pagãos justos, e foi lá visitado por Beatriz, que o mandou ir em socorro de Dante. Reproduz então o diálogo que manteve com Beatriz (v.43-126), o qual abrange 83 dos 142 versos do Canto. Contém diálogos dentro do diálogo padrão, que é o mantido entre Dante e Virgílio. Assim, respondendo a Dante, Virgílio incorpora a sua conversa com Beatriz, que por sua vez, quando fala, reproduz o que a “gentil Senhora”, no Céu, disse a Lúcia (v.98-99), e o que esta lhe disse (v.103-108), sugerindo que fosse procurar Virgílio. O autor da “Eneida” pergunta a Beatriz a razão de ela não ter sido mais prudente, descendo para o Inferno, desde o Paraíso. Beatriz lhe responde que as coisas dali lhe são inócuas, as chamas não têm o poder de afetá-la. Pelo que ela diz, ficamos sabendo que se desenrolou no céu esta cena delicada, imaginada pelo Dante-autor: a “gentil Senhora” (Nossa Senhora), compadecendo-se da situação aflitiva de Dante, chama Lúcia (ou Luzia, “cujo nome deriva de luz” (1), a santa protetora da visão, de quem Dante era devoto) e lhe diz:
/.../ --Or ha bisogno il tuo fedele
di te, e io a te lo raccomando-- (v.98-99)
(“Agora precisa de ti aquele que te é fiel,/ e eu o confio a ti”).
Lúcia então vem até onde estava Beatriz, sentada ao lado de Raquel (a amada de Jacob, irmã de Lia, conforme a Bíblia), e
Disse:-- Beatrice, loda di Dio vera,
ché non soccorri quei che t’amò tanto,
ch’usci per te de la volgare schiera?
Non odi tu la pieta del suo pianto,
non vedi tu la morte che’l combatte
su la fiumana ove ‘l mar non ha vanto?—(v. 103-108)
( “Disse: -- Beatriz, vero louvor a Deus,/ por que não socorres aquele que te amou
tanto,/ que por tua causa afastou-se da multidão vulgar?/ Não ouves o tormento do seu pranto?/ não o vês lutando contra a morte/ junto ao rio implacável como o mar?”).
Então, Beatriz imediatamente vai ao encontro de Virgílio, para pedir a sua intervenção, pois confia “no seu falar honesto”. Essa é a explicação para Virgílio estar lá na selva oscura, no momento de perigo, e auxiliar Dante, retirando-o do caminho da loba, que impedia a sua subida na montanha. Virgílio assim não compreende a tibieza de seu discípulo, quando “três damas benditas” do Céu, e ele próprio, estão buscando o seu bem. O Canto termina quando Dante, desse modo encorajado, decide reiniciar a viagem.
Destaque-se, nesse final do Canto, o símile contido nos versos 127-130, que expressa a mudança de ânimo de Dante, após Virgílio lhe mostrar o interesse nele por parte daquelas tre donne benedette:
Quali fioretti dal notturno gelo
chinati e chiusi, poi che ‘l sol li’ mbianca,
si drizzan tutti aperti in loro stelo,
tal mi fec’io di mia virtude stanca,
( “Como florezinhas que, à noite, enregeladas,/ pendem murchas, e à luz do sol/ se endireitam e desabrocham em seus caules,/ assim fiz eu, também, com minhas forças exaustas”).
Qual o sentido do Canto II? Para Dante-autor, engajado na defesa da fé católica, o ser humano deve vencer a sua tibieza, deve empenhar-se na busca da salvação. Pois Dante-personagem --representante do gênero humano-- se mostra, no início, vacilante em empreender a sua jornada espiritual. Segundo Virgílio, isso ocorre com freqüência no homem, essa covardia “o distrai da honrada empresa,/ como os animais vêem fantasmas quando escurece” (sì che d'onrata impresa lo rivolve,/ come falso veder bestia quand'ombra- v.47-48). Os homens são comparados aos animais quando se desviam do bom caminho e vivem na escuridão, i.e. na ignorância (já no v.2 deste Canto Dante refere-se a li animai). Mas Dante afinal decide-se a fazer a viagem, convencido pelas palavras sensatas de Virgílio. Aliás, Virgílio é chamado de “sábio” no v. 36, como o fora no Canto anterior (I,89). Ele representa, como vimos, a Razão humana, enquanto Beatriz é símbolo da Fé. Ela é chamada de “bem-aventurada e bela” (beata e bella-v.53), sua voz é angelical (angelica voce-v.57). Nos versos 55-57 seus olhos, reforçando a conotação celeste, são associados às estrelas:
Lucevan li occhi suoi più che la stella;
e cominciommi a dir soave e piana,
con angelica voce, in sua favella:
(“Seus olhos luziam mais do que a estrela;/ e começou a falar gentil e suavemente,/ com voz angélica, na pátria língua sua:” )
Também nos versos 115-117, quando Beatriz vai pedir a intervenção de Virgílio, este destaca que seus olhos são “cintilantes”:
Poscia che m’ebbe ragionato questo,
li occhi lucenti lagrimando volse,
per che mi fece del venir più presto.
(“Quando ela terminara de falar,/ voltou para o lado seus cintilantes olhos lacrimosos,/ que me fizeram vir mais rápido”) (em socorro de Dante).
No v. 61, Beatriz chama Dante de seu amigo, “não da ventura”, esta assim personificada.
Ocorre nesse Canto a intervenção do primeiro personagem bíblico: Raquel, com quem Jacob queria se casar. Mas o pai dela, em vez de Raquel, lhe deu a irmã, Lia. Segundo notas à tradução de Mandelbaum (2), Raquel é símbolo da Vida Contemplativa e Lia, da Vida Ativa. São personagens também do famoso soneto de Camões, que reproduz o episódio narrado na Bíblia, cujo primeiro quarteto é o seguinte: “Sete anos de pastor Jacob servia/ Labão, pai de Raquel, serrana bela;/ Mas não servia ao pai, servia a ela,/ Que a ela só por prêmio pretendia.”
No Canto II são mencionados também os primeiros personagens mitológicos. Além da musa, referida no v. 7, menciona-se Enéas, filho de Anquises e Vênus. Após a derrota de Tróia ele se estabeleceu na região da atual Itália, sendo considerado fundador mítico de Roma. A menção ao “pai de Sílvio”, como diz a “Eneida”, e à metáfora do “Vaso de Eleição” (3), conforme a Bíblia, ou seja Enéas e S.Paulo, nos remetem às instituições do Império (Romano) e da Igreja, os dois pilares em que se assenta a sociedade humana conforme o ponto de vista de Dante exposto em seus escritos sobre teoria política (cf. mais adiante a referência à alegoria do Velho de Creta nos comentários ao Canto XIV).
Os versos 103-108 citados acima nos fazem lembrar da morte prematura de Beatriz real, a quem o poeta encontrou pela primeira vez ainda na infância, aos 9 anos, amando-a à primeira vista. Ela faleceu aos 24 anos, em 1290. Certamente a morte dessa jovem tão cedo deve ter sido um dos fatores determinantes da concepção da “Divina Comédia”, essa viagem de um ser vivo pelo mundo dos mortos. O poeta então teria a oportunidade de reencontrá-la, ainda que em sonho...
Os versos 37-42, que contêm uma comparação, expressam situações contraditórias, muito freqüentes em nossa vida. Impulsivamente, nos decidimos por alguma coisa. Mas depois, ao refletirmos sobre o tema, mudamos de idéia e já não queremos mais aquilo pelo qual nos decidíramos:
E qual è quei che disvuol ciò che volle
e per novi pensier cangia proposta,
sì che dal cominciar tutto si tolle,
tal mi fec’io ‘n quella oscura costa,
perché, pensando, consumai la ‘mpresa
che fu nel cominciar cotanto tosta.
(“E como quem já não quer o que quer/ e muda o que pretende para buscar novos fins/ retirando-se do que tinha começado, /assim eu me encontrava naquela escura selva,/ porque, com meu pensar, eu anulava a empresa/ de que me encarregara tão rapidamente”).
NOTAS
(1) Dante Alighieri- “Obras Completas, v.2- S.Paulo:Editora das Américas, s.d.-tradução em prosa, introdução e comentários pelo Mons. Joaquim Pinto de Campos- p.9 e p.44
(2) “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”. A verse translation by Allen Mandelbaum. Notes by Allen Mandelbaum and Gabriel Marruzzo with Laury Magnus. Bantam Books,1982- p. 348